Cantora conclui "Sem Poupar Coração"
depois de fase dedicada aos pais, Dorival e Stella Caymmi, que morreram no
ano passado
"Quero viver como meu pai", diz a carioca, que quer trocar o Rio de Janeiro
por Pequeri, em Minas Gerais, e gravar apenas eventuais discos
LUIZ FERNANDO VIANNA
DA SUCURSAL DO RIO
Nana Caymmi estava chateada, na semana passada, com uma nota de jornal que
via significado de luto no roxo da blusa que ela vestiu para a capa do CD
"Sem Poupar Coração".
"Escolhi uma blusa linda, bem puta, aí dizem que é luto. Fiquei triste",
lamentava, com seu jeito marcante de falar.
A confusão da nota talvez possa ser explicada pelo silêncio que antecedeu
o disco. Nana largou os palcos em dezembro de 2007 para cuidar dos pais.
Dorival Caymmi morreu em 16 de agosto do ano passado, aos 94 anos; Stella
Caymmi, 11 dias depois, aos 86.
"Sou estupidamente passional, emocionalmente destrambelhada, então não
foi fácil enterrar pai e mãe [em pouco tempo], ficar fazendo footing no
cemitério. Pensei: "Vou sentar aqui para ver se tem mais um freguês". O
coveiro já estava me beijando", diz.
Só em dezembro passado, por insistência da novelista Glória Perez, ela
voltou aos estúdios para gravar, com Erasmo Carlos, "Não se Esqueça de Mim",
que está na trilha de "Caminho das Índias" e em "Sem Poupar Coração". Em
janeiro, emendou as outras 13 faixas, todas inéditas ou pouco conhecidas,
algo que não acontecia desde 2001.
"Quando a poeira baixa, é mais fácil. Agora, eu tenho domínio da minha
pessoa. Eu chorava a qualquer palavra, olhava para qualquer coisa e via meu
pai e minha mãe", conta ela, que parou com os shows, ainda com Dorival e
Stella lúcidos, porque percebeu que "vinha bomba pela frente".
"Meu trabalho é muito traiçoeiro. Você tem que estar muito bem, mesmo as
músicas não sendo para sair dançando porque não sou nenhum axé. Eu disse:
"Não vou fazer isso comigo'", recorda.
Segundo a cantora, mesmo que alguns neguem, toda a família Caymmi está
sem chão depois da perda do casal.
"Ninguém está preparado para isso. Eu era grudada neles. Mijava e mandava
a mamãe olhar a cor, para ver se estava bonita. Infelizmente, ela criou os
filhos assim. E tirou os meus filhos de mim, criou os meus filhos, ela se
metia com a vida de todos nós", diz.
Nana se ocupa com o inventário e restaurando quadros. E negocia com o
governo do Rio a entrega ao Museu da Imagem e do Som do acervo do pai.
Para "Sem Poupar Coração", como de hábito, a família se uniu. As
primeiras músicas escolhidas foram as dos irmãos Dori (uma em parceria com
Chico Buarque, "Fora de Hora") e Danilo e a da sobrinha Alice. Os três
também estão no coro, e Dori, em parte dos arranjos do álbum.
A preocupação maior de Nana é com
João Gilberto, seu filho de 42 anos, mas com retardo por causa das sequelas
de um acidente de moto sofrido em 1989. Para dar a ele "qualidade de vida",
pensa em apressar um plano antigo: parar de fazer shows, apenas gravar
eventuais discos, e se mudar para Pequeri (MG) -"a terra da minha mãe e onde
meu pai foi muito feliz".
Saindo de cena
"Só de ver uma jabuticabeira no quintal, você não entende por que vai
ficar [no Rio] numa linha cruzada de fogo. Quero viver como meu pai, ouvir
canto de passarinho, escutar boa música, estar com as pessoas e conversar
sem choques", diz a carioca, que completará 68 anos no próximo dia 29, e,
pela primeira vez, não dividirá a comemoração com o pai, que aniversariava
no dia 30.
Nana se diz satisfeita por ter gravado, nos últimos sete anos, enquanto
ele estava vivo, quatro discos dedicados à obra de Dorival Caymmi -além de
um com músicas de Tom Jobim. Mas reconhece que já era hora de mostrar
canções que fossem novas na sua voz, como "Senhorinha" (Guinga/Paulo César
Pinheiro), dedicada à sua mãe e que estava "grudada" na sua cabeça há 20
anos.
No repertório, montado em poucos meses com o auxílio do produtor José
Milton, estão de autores veteranos como João Donato e Sueli Costa a mais
novos como Simone Guimarães e Márcio Ramos, passando por Rosa Passos e
Fátima Guedes, presenças frequentes nos álbuns de Nana.
"Acham que é fossa o que eu canto, que é para baixo. Deixo cada um dizer
o que quer, mas sabe o que eu quero? Melodia e letras bonitas. Escolho
assim", resume.
CANTORA VÊ MÚSICA EM DECADÊNCIA
Quem já viu Nana Caymmi num palco, cantando de forma nitidamente emocionada,
poderia até desconfiar de suas palavras, não viessem elas de uma pessoa que
é sempre sincera ao extremo: "Pode acreditar que, na minha vida inteira, a
palavra show é dinheiro. Mas para estúdio você me carrega em qualquer lábia.
É um registro. O disco, para mim, é como um livro para o escritor".
Para lançar "Sem Poupar Coração", ela fará shows, mas com parcimônia.
"Não vou sair em campo como se fosse começo de carreira, porque não sou
nenhuma cantora-revelação", avisa.
"Acho que eu tenho direito à aposentadoria. As pessoas não estão
comprando discos como compravam, não temos um programa de elite na TV, a
música nos colégios é uma dificuldade. Quer dizer, música virou merda",
lamenta, à sua maneira.
MARCUS PRETO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Quando ganhou seu primeiro disco de ouro, em 1999, Nana Caymmi viu coroada a
fórmula instrumental que vinha sendo repetida em seus trabalhos havia pelo
menos cinco anos. Nela, quase toda a canção de letra triste era arranjada
para virar bolero. As alegrinhas corriam o mesmo risco. E qualquer sutileza
que surgisse acabava soterrada pela pasteurização do geral.
De lá para cá, nada mais aconteceu nesse quesito. Com arranjos dos mesmos
Cristóvão Bastos e Dori Caymmi de 15 anos atrás, o CD de agora soa como um
disco de 1994. Ainda que o repertório traga grandes canções em potencial
-como a pequena pérola "Pra Quem Ama Demais" ou a doce "Senhorinha"-, elas
não chegam a acontecer plenamente aqui. A voz de Nana quer voar, mas o
instrumental prende a âncora no chão. E isso parece que foi pensado para ser
assim. Tanto que "Fora de Hora", parceria de Dori Caymmi e Chico Buarque
lançada por Nana no filme "Lara", chega ao disco modificada. No cinema, a
voz da cantora flutua livre. Aqui, virou... bolero.
Assim, o álbum novo nasce datado -e, pior, com data retroativa. Uma pena,
pois, ao contrário de seus discos, a voz de Nana não envelheceu. Continua,
aos 49 anos de carreira, tão arrebatadora quanto era antes de os boleros
tomarem conta do pedaço.
E se só isso basta para que seus velhos seguidores não se incomodem com a
falta de novidade, não chega a ser motivo suficiente para que novos fãs se
aproximem. No fim das contas, todo mundo perde.
SEM POUPAR CORAÇÃO
Artista: Nana Caymmi
Lançamento: Som Livre
Quanto: R$ 29, em média
Avaliação: regular
(©
Folha de S. Paulo)