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Tereza Costa Rego 80 anos: o tempo é aliado

26/04/2009

 

 

Foto: JC Imagem
 
Às vésperas do seu aniversário, uma das melhores pintoras do Brasil mostra uma vitalidade que não respeita cronologias

Bruno Albertim e Olívia Mindêlo

Amanhece em Olinda. Na Rua do Amparo, Tereza abre os olhos como num dia qualquer. Levanta, balbucia umas palavras na cozinha de temperos e vassouras, manias de uma feiticeira confessa. Cumprimenta os bichos, joga um avental no corpo, sobe ao ateliê. É lá onde vira Tereza Costa Rêgo, uma dessas rubricas imponentes da arte pernambucana. Às vésperas de completar 80 anos, a pintora não quer saber muito de chamego. Adianta que vai estar bem longe na próxima terça, dia do aniversário. Outros artistas que chegaram à idade, como Brennand ou Samico, haviam expressado reação semelhante. No caso de Tereza, a viagem não é propriamente fuga: o tempo tem sido sempre seu parceiro. Sua vitalidade não respeita cronologias. Prefere não se render a rituais ou formalidades da data. “O relógio não a venceu. Ela fez um pacto com os deuses, vai ficar bonita a vida inteira”, corteja o pintor João Câmara, seu amigo há décadas.

Desde que se juntou ao clã de artistas em Olinda, para onde se mudou em 1979, a pintora segue incansável no ateliê suspenso no quintal de casa. “Pintar é um ofício como outro qualquer. A gente acorda, escova os dentes, troca a calcinha e vai trabalhar”, diz Tereza, que tem trabalhado com rigor de camponês e devoção de uma prostituta de Nelson Rodrigues nas sete novas e gigantescas telas para uma exposição em comemoração aos seus 80 anos. A mostra acontece em setembro, no Museu do Estado de Pernambuco.

Quando fala de seu trabalho, é como se revelasse nas entrelinhas o que a mantém de pé, ao longo de uma vida não menos que intensa. Sobe e desce do banco, arrasta suas telas imensas (e pesadas) de um lado a outro. Ignora a idade do corpo. Com a tinta correndo nas veias, leva um pano à boca e lambe os quadros, como a gata faz com a cria. As mãos apressadas esfregam ainda mais o trapo de saliva na tela, conferindo uma atmosfera levemente esfumaçada à composição. É uma forma de, segundo ela, dar vida e dignidade às personagens. Cobri-las com camadas de mistério.

Tudo parte do negro. Tereza não pinta sobre a superfície branca original da prancha, nem desenha antes de tocar o pincel na tela. Primeiro, ocupa todo o tecido com um rolinho de tinta preta e espera. Depois da fase de angústia, ela solta a mão de tinta – mais guiada pela intuição e pelo instinto do que pela razão. A escolha do fundo escuro passa por motivações estéticas: é um recurso utilizado para alcançar um efeito particular, marcado pela dramaticidade cena a cena.

Isso explica o fato de os tons de vermelho e amarelo, insistentes em sua poética, saltarem do quadro, criando no contraste e nas sobreposições um discurso extra. Nessa construção cromática, erguida camada a camada de tinta, também entram branco e verde. O azul lhe é muito raro. “A pintura de Tereza tem uma índole romântica e evocativa. Suas figuras ruborizadas estão mais em ambientes cálidos e internos do que expostas à insolação”, observa Câmara, procurando justificar a ausência da cor celeste.

Custam meses de suor e sono para uma das telas da artista, obcecada pelas grandes dimensões, ficarem prontas. São dois, três metros de largura. Toda vez que Tereza está entregue a algo assim, dorme mal e prefere evitar gente. Para cada criação que vem ao mundo, há um “parto sangrento de fórceps”, como diz. Tem sido assim há muitas semanas, meses costurados, desde que passou a preparar sua nova série, ainda sem título.

Não por acaso, o conjunto pictórico será distribuído na exposição do Museu do Estado. O local é simbólico: foi lá onde ela cresceu, entre as folhas do seu quintal. Foi lá que a tela Mulher e ex-voto lhe rendeu, em 1949, o primeiro prêmio de viagem da Universidade Federal de Pernambuco. Foi lá também que atuou como diretora por 12 anos. Além da individual comemorativa, será lançado um livro-catálogo escrito em tom de crônica biográfica pelo artista e crítico de arte Raul Córdula, que para a pintora, é um dos que melhor exprimem em palavras o seu trabalho figurativo. “Preferia fazer um quadro para ela, mas acho que vou ser mais útil assim”, diz ele.

(© JC Online)


Pintura de carne e osso

Quando Olinda silencia, Tereza despeja nas tintas uma criação guiada pelo instinto

Em um dos ensaios mais detalhados sobre a pintura de Tereza Costa Rêgo, o escritor Raimundo Carrero parece, enfim, desnudar o mistério que as mãos da artista procriam: “(...) não se constrói uma obra de arte com plumas e lantejoulas, mas com dor e sangue”. A afirmação, contida no texto do catálogo da exposição O imaginário do bordel – o parto do porto, parece captar as entrelinhas de um trabalho que se pauta pela intensidade e está longe de ser um Carnaval, apesar de feito em Olinda.

É tanto que, com raras exceções (sua paixão, o Homem da Meia-Noite, por exemplo), a pintora evita retratar a grande festa do Sítio Histórico em suas telas. Prefere a introspecção. Está mais para a Quarta-Feira de Cinzas do que para o Sábado de Zé Pereira. A sua obra nasce quando a cidade silencia e as memórias trancafiadas no subconsciente reprimido ecoam para todos os lados, despejando nas tintas o conflito de ser o produto de dois mundos: o conservador, da aristocracia canavieira, onde foi educada, e o libertário, que a fez deixar tudo para trás para viver o amor e a luta política ao lado do companheiro Diógenes Arruda durante a ditadura militar brasileira, que levou o casal ao exílio (leia matéria da página 7).

Entender esses aspectos ajuda a ir mais fundo na obra, que trava um diálogo íntimo com a sua vida. A pintura de Tereza não é autobiográfica ou confessional, mas está longe de excluir o peso de sua vivência, mesmo quando ela usa a máscara da dramaticidade – aliás, sempre em cena. “Todo pintor se pinta. Eu me pinto. Na mão, no gesto, no sentimento. Todo pintor se expressa. Quem diz que não está mentindo”, pontua o artista e crítico de arte Raul Córdula. Sobre isso, Tereza desconversa um pouco, prefere deixar que os quadros falem por si. As suas mulheres tão recorrentes poderiam ser vistas como seu alterego, mas a artista nega. Prefere se ver nos gatos, acompanhantes fiéis de suas figuras – e dela mesma.

VEIA MODERNISTA

Na história da arte, Tereza se situa numa geração de filhos do modernismo, numa geração de pintores que expressam na arte a ânsia por uma brasilidade, refletida no desejo de ruptura com a linguagem acadêmica. Em Pernambuco, essas questões tomaram feições próprias. Ao mesmo tempo em que os artistas herdaram os ideais das vanguardas europeias e da Semana de Arte Moderna de 1922, criaram uma escola particular – ora dialogando com elementos locais, ora fazendo a ponte com questões comuns aos seres humanos ocidentais do século 20.

Figurativos por excelência, salvo exceções como Montez Magno (abstrato), os pintores pernambucanos desse tempo acabaram por criar uma tradição pictórica, referenciada por nomes como Vicente do Rêgo Monteiro, Cícero Dias e Lula Cardoso Ayres. Integram essa geração, que se firmou a partir das décadas de 1950 e 1960, João Câmara, Ismael Caldas, Delano, José Cláudio, Reynaldo Fonseca, Guita Charifker e a própria Tereza Costa Rêgo – embora tenham entre si idades diferentes. Outros nomes consagrados também os acompanham em rumo semelhante.

A grandiosidade dessa pintura se manifesta em Tereza com mais força na série Sete luas de sangue (2000), ápice de sua maturidade artística. Reconstruindo em grandes painéis lutas históricas do povo brasileiro, sempre regadas a massacres sangrentos, a pintora assumiu a veia política, sem deixar de lado a intensidade poética ou recorrer a discursos panfletários. A Batalha dos Guararapes, a Guerra de Canudos, a luta de Zumbi dos Palmares, a briga por terra e outras questões foram trabalhadas pela artista à luz de uma monumentalidade plástica, capaz de revelar detalhes novos a cada apreciação das obras. Como os grandes pintores históricos do século 19, como os muralistas latino-americanos.

“Fiel à tradição pictórica muralista, a artista executou painéis de extraordinária beleza e força poética, dominados por vermelhos, profundos, carnais, e amarelos, ferozes e caniculares, a falar de terras, histórias, dias ensolarados e mistérios, riquezas e misérias, violências, encantos, temores, tragédias”, escreveu Marcus de Lontra Costa, então diretor do Mamam, que sediou a exposição pela primeira vez, em 2000. Sobre a obra, o ex-governador do Estado Miguel Arraes chegou a dizer pessoalmente à artista: “Fiquei perturbado com as telas. Você disse o que nós não estamos conseguindo dizer em palavras faz tempo”.

As sete grandes telas estão guardadas em sua casa, à espera de que um dia alguma instituição reconheça o seu valor.

(© JC Online)


Nova série traz o punho da amante e da cronista

A série inédita, a ser exposta em setembro no Museu do Estado, é composta por sete pinturas, incluindo uma de 12 metros referente à passagem do Apocalipse, cuja concepção pictórica gira em torno de uma cobra dividida em cinco partes. Segundo a descrição de Tereza, o bicho está cercado por 500 figuras minúsculas, além de um trecho transcrito do texto bíblico. É a obra preferida da artista, que ainda guarda a tela a “sete chaves”. Aliás, o número tem a ver com a sua mais cara superstição. Basta relembrar que o conjunto mais expressivo de sua carreira se chama Sete luas de sangue, espécie de balanço histórico dos 500 anos do Brasil, tecido com a ótica dos vencidos.

Na mostra individual do Mepe, a sequência épica vai acompanhar a nova série, ao lado de outra bastante representativa: Imaginário do bordel (2003), habitada pelas suas inconfundíveis mulheres flagradas no momento de descanso. Como nas duas coleções anteriores, o punho de cronista e historiadora se mantém vivo nessa nova leva de quadros, embora de forma mais diluída. Não há um tema determinado, como as lutas históricas (Sete luas de sangue) ou os bordéis, mas é possível identificar elementos recorrentes, que atestam a fidelidade de Tereza a certos signos: as mulheres, os bichos, o vermelho, o povo.

Aqui, o olhar documental está tecido ainda mais sob tramas metafóricas. Uma mulher em posição fetal se contorce no ventre do tatu, atravessado por uma espada de cima a baixo – uma citação à descoberta do País. Noutra tela, um rinoceronte reina sob o sol rubro – uma alusão à invasão holandesa, talvez. Há ainda a pintura Uma mulher vestida de sol, já exposta no Museu do Homem do Nordeste, em comemoração aos 80 anos do escritor Ariano Suassuna. De certa maneira, Tereza dá continuidade à obra de uma vida.

Na individual, entram em cena ainda uma escultura de madeira, um tatu (mais ilustrativa), e os trabalhos mais antigos da artista, entre pinturas, gravuras e desenhos da época em que as lições da Escola de Belas Artes condicionavam suas mãos. A exposição deve trazer uma confirmação: companheiro da artista e da mulher em sua jornada, o tempo tem sido também grande cúmplice da sua obra, que fica melhor a cada ano que passa.

(© JC Online)


Terezinha, Joana e Tereza

Condenada à vida da alta sociedade, a artista largou tudo para viver na clandestinidade e se reinventar como mulher

Tereza é uma tríade. Filha da aristocracia rural já decadente, cresceu como a Terezinha Barros Costa Rêgo destinada a uma vida mais de tafetá e porcelanas que de pele, alma e secreções. Casou-se segundo a genética social para seguir, como ela gosta de dizer, enfeitando o piano da sala. Mas, se destino existe, quis ele que Tereza cruzasse a existência com Diógenes Arruda. Descobriu o amor, suas nuances, imposições e glândulas. Também a pobreza, a discriminação e o exílio ao lado do companheiro e personagem de primeira hora do comunismo no Brasil. Fez-se então Joana, nome de guerra e paz durante a clandestinidade, até se consagrar como Tereza Costa Rêgo. Um calibre grosso, artista sem necessidade de maiores apresentações. Uma mulher que pariu a si própria por pelo menos três vezes.

O primeiro parto se deu num 28 de abril, há quase 80 anos. Filha mais nova de cinco irmãos intelectualizados, habituados ao convívio pessoal com personagens da política e da arte, Terezinha teve como segunda morada a eterna lista das mais elegantes da sociedade pernambucana. Imposição do talento, começou a pintar ainda criança. Fez o que faziam as finas. Foi para a Escola de Belas Artes. Mas a mesma família que patrocinava as lições a proibia de ver modelos nus. “Eu fui criada com muita repressão, tinha muito medo quando era criança. Medo das freiras do colégio. Se eu tirasse 9,5, levava um carão. Depois, na ditadura, tinha medo da polícia”, lembra.

Repressão entranhada, seu primeiro nu só foi pintado depois dos 50 anos. A tela Mulher nua com gatos, de 1983, é pioneira. Insígnia da sua obra, a nudez viraria uma obsessão, lastreada pela paixão estética e pelo protesto tardio. “A nudez é a coisa mais pura, mais linda do ser humano”, defende Tereza. Mas, evocação do passado de freiras e bedéis, dualidade primeira, a nudez na obra de Tereza nunca está totalmente impune. É o que disse o escritor Raimundo Carrero, no texto de apresentação da série Imaginário do bordel: “...Nos quadros de Tereza, há sempre um impedimento, uma dificuldade, uma imposição...”

A pintora lembra da primeira vez em que entrou num bordel. Foi em sua própria e aristocrática casa no bairro das Graças, entre os irmãos e os 11 empregados. “Gostava de deitar no colo de meus irmãos, aparentemente para cochilar, ficava escutando as histórias. Eu sabia o nome das mulheres, das donas das pensões: Alzira, Djanira, Edite, Maria Maga... O Chantecler, o Bar do Grego, a Festa da Mocidade...”. Mais tarde, sua memória de historiadora abrigou relatos da comemoração do fim da Segunda Guerra num bordel de Paris. “Comecei a achar que todas as coisas importantes só podiam acontecer no puteiro”, diz. Mas ela nunca chegou de fato a pisar num bordel. Havia, claro, o risco crucial de desidealizá-lo. Arquétipos, afinal, são matéria-prima preciosa.

O segundo parto de Tereza aconteceu em 1962, quando ela conheceu Arruda. Um dos fundadores do PC do B, o pernambucano já era um personagem envolto em certa mística. Em sua fase vermelha, Jorge Amado dedicou ao “camarada Diógenes Arruda” uma das obras da trilogia Os subterrâneos da liberdade. Era irmão de uma amiga de Tereza. “Encontrei com ele, achei simpático e tal... Tinha ouvido muito falar nele. Era uma figura muito lendária, aqui no Recife se falava muito. Ele me disse que na hora que me viu pensou: ‘Eu vou casar com essa mulher de qualquer jeito. Uma loucura, porque eu era uma pessoa com um carro preto e um chofer, toda arrumada”.

Mas não foi a mítica ou a militância que os uniu. A imposição foi mais hormonal. Tereza diz ter ficado refém daquele cheiro. “Eu não disse que sou um bicho? Foi uma coisa muito violenta. Fiquei doida e ele também, e a danação foi enorme. Foi forte demais e resolvi me separar”, diz ela, que conheceu cada naco de carne do preconceito.

Com duas filhas, foi para a casa da mãe e viu portas, uma a uma, se fecharem. “Até os cronistas sociais, que viviam me paparicando, me viraram a cara. O único que sempre me foi fiel foi Alex”, conta. Animal de raça, a atração por Arruda era mais forte. “Foi mais que uma paixão, foi uma doença grave.”

Uma amiga traiu Tereza. Entregou a correspondência entre ela e Diógenes ao então marido. “Aí perdi todos os direitos do que eu queria dizer a ele, de que a gente tinha duas filhas e que eu queria um desquite civilizado. Ele ficou doido, porque nunca pensou na vida que eu pudesse ir embora. O divórcio foi da Idade Média. Eu perdi as meninas e tudo.”

Sua mãe morreu pouco depois. Culpa que ela nunca apagou. “Tenho certeza que ela morreu por minha causa. Nunca tinha sofrido antes”. Com propriedades pelo Brasil, inclusive a mansão de praia onde Ruy Guerra filmou Os cafajestes, os irmãos estavam em São Paulo. Vieram ao funeral num avião fretado.

Só não havia lugar para Tereza. Foi obrigada a embarcar num voo comercial da extinta Pan Air. “No velório, as pessoas falavam com um, com outro, quando chegavam perto de mim, voltavam. Uma mulher que nem lembra fez isso comigo. Hoje faz a maior festa quando me vê”.

Vivendo na clandestinade com Arruda em São Paulo depois do golpe de 1964, percebeu que o companheiro era irreversível em sua vida. “Vendi um vestido para conseguir me manter por alguns meses”, lembra. A vida clandestina durou até 1969, quando o companheiro foi preso. Nesse tempo, Tereza formou-se em história pela USP. Deu aulas para vestibulandos. Apesar das notícias de tortura, ela tinha certeza de que ele sairia vivo da prisão. “Era muito doloroso, não podia chegar perto dele. Eu não existia oficialmente em sua vida”, conta.

A certeza da sobrevivência veio inusitadamente. “Fui a todas as macumbas possíveis”, lembra. Em Santos, um pai de santo reconheceu a foto do companheiro. “É Arruda?! Fomos companheiros de sindicato!”, disse o homem. “Ele queimou uma pólvora e um mapa se formou no chão. Ali, o homem me mostrou que íamos para o exílio”, diz, com um riso contido na boca. “Eu passava o dia chorando, antes de Diógenes aparecer. Era aquele vazio, aquelas roupas de ouro não me vestiam mais, não tinha nada a ver com aquilo, aquelas mulheres high society, aquelas coisas de filantropia de que eu tenho horror. Era melhor eu ir e ser feliz e depois voltar, porque aí eu voltava com condições de ajudar. E eu voltei”, avalia Tereza, hoje proa de duas filhas, três netos e uma bisneta. “Apesar de aristocrática, a família da minha mãe sempre teve vida intelectual ativa. Por isso, nunca se viu naquela vida fútil”, diz a filha e jornalista Maria Tereza Rozowykwiat..

EXÍLIO

Exilado, o casal seguiu para o Chile. Mas o golpe que matou Allende atingiu também Arruda, abrigado na embaixada da Argentina. Numa noite em que corria do toque de recolher, descobriu que estava grávida quando o sangue desceu pelas pernas. Abortou.

O golpe de Pinochet os levou a Paris, residência por seis anos. Vinte e sete telas ficariam perdidas no Chile. Acabou empreendendo um doutorado sobre a história do proletariado brasileiro na Sorbonne. Nunca foi, aliás, a simples companheira de Arruda. “Eu era – e ainda sou – militante. Nunca participei de operações arriscadas. Era a motorista do partido”, lembra. Outra de suas funções: disfarçar companheiros clandestinos. Colocou muita peruca na cabeça de quem ia pro Araguaia.

Durante toda a existência clandestina, usou o nome de Joana. “O partido me pediu para escolher um nome e eu escolhi esse. Além de salvaguardar Tereza, a identidade batizou também sua neta. Na casa da filha Tereza, uma tela traz o grande suvenir do período: a assinatura Joana. A outra filha, Laura, herdou a vocação para a pintura.

Com a anistia, voltaram ao Brasil em 79. No dia 25 de setembro, foram ao aeroporto de São Paulo encontrar o companheiro João Amazonas, recém-chegado do exílio. Saíram em carros separados. De lá, Arruda saiu para o hospital. Chegou morto de um infarto.

De volta à terra uterina, Tereza encontrou Olinda, sua última e definitiva pátria. “Quando acabou o exílio, que eu voltei, eu não vim para o Recife, nem para o Brasil, eu vim para Olinda, lucidamente. Quando Diógenes morreu, eu fiquei muito só, com uma dor muito grande, aí percebi que eu era uma pessoa muito forte. Então eu resolvi voltar, minhas filhas estavam aqui”, diz Tereza, que se define como filha de Olinda e da Joana encarnada no exílio. “Eu sempre fui a irmã dos meus filhos, a mulher do meu marido, a companheira de Arruda, a militante do partido. Olinda me deu minha identidade como artista”, diz ela, que de sua janela, todos os anos, reúne os amigos, uns copos de uísque e muitas conversas para saudar, no Carnaval, o Homem da Meia-noite. O calunga, confidencia a artista, é seu noivo. Encanta todas as mulheres que nela habitam.

(© JC Online)


ENTREVISTA » TEREZA COSTA RÊGO

A voz da arte que sangra

Um dia antes de Tereza Costa Rêgo conceder esta entrevista aos repórteres Bruno Albertim e Olívia Mindêlo, a pressão arterial da artista saiu da rotina. Depois de gravar um vídeo relacionado aos seus 80 anos, ela chorou o dia inteiro. Visitou-lhe a insegurança típica dos grandes artistas, lacrimosos como meninos às vésperas de uma nova estreia. Entre planos pictóricos das telas que gesta para a exposição comemorativa de suas oito décadas, passou a limpo tudo o que viveu e tem vivido. Não é pouco, o que a afasta do rol das existências mais ordinárias. No mundo, uma estrela se acende a cada vez que surge alguém com tanto para contar. E Tereza não é só uma pintora, uma grandiosa pintora. É uma personagem da história brasileira. Herdou e ampliou o modernismo no Brasil, amou como poucos sabem – ou teriam a coragem de amar. Conheceu as veias internas da ditadura e do exílio ao lado do companheiro, bicho humano e político como ela, Diógenes Arruda, figura central da história do comunismo no Brasil. Afinal, como lhe disse uma amiga: Tereza não escolheu o ninho, mas o voo. Confira uma parte da conversa com essa artista que nunca hesitou em pular da janela. A vitalidade é o seu saldo.

JORNAL DO COMMERCIO – Qual seu sentimento em relação aos 80?

TEREZA COSTA RÊGO – Essa história de 80 anos era uma coisa que eu não tinha registrado. Sou muito diferente das pessoas dessa idade. Para mim, esse número “oito” nunca cairia na minha frente e, de repente, quando fui conversar com o rapaz que está fazendo o meu livro, lembrei. Fiquei muito indignada, porque não tinha 80 anos... Mas fui fazer as contas e tinha. Passei uma noite angustiada, um mês sem dormir. Agora, a minha cabeça é muito doida, porque o corpo velho pede socorro de vez em quando. Estou me adaptando a esta nova fase, um pouco perturbada ainda. É uma idade que marca o princípio do fim. É muito difícil você fazer 90 anos. E não pretendo morrer nem tão cedo, vou aperrear muita gente ainda, dar muita risada. Minha cabeça vai muito rápido, eu só tenho amigo jovem, doido...

 

JC – Como você percebe sua vitalidade?

TEREZA – Sou capaz de subir uma ladeira correndo e eu me sinto igual, sexualmente igual. Só que eu tenho um bom senso suficiente para saber até aonde a pessoa deve ir e até aonde ela não deve mais. Sou uma pessoa bastante... não é sexual, mas sensual. Eu aliso as coisas. Quando vejo uma coisa que eu gosto, é como se eu alisasse, como se fosse um estímulo.

 

JC – Sua obra tem uma sensualidade, um erotismo...

TEREZA – Eu não vejo como erotismo, não. Acho que é sensualidade, que é diferente. Sensualidade é uma coisa muito ligada com o corpo. Erotismo é mais uma coisa elucubrada na cabeça. Eu me sinto muito bicho. Mais do que gente. Um gato andando, dormindo, é de uma sensualidade enorme. O movimento do gato, as mãos... Para mim, nesse movimento do gato, ou de outro animal qualquer, eu vejo a curva. A curva é uma coisa que leva ao prazer, mas não ao erótico, é um prazer suave. As pessoas não separam, é tudo uma coisa muito séria. Acho, então, que a minha pintura beira mais essa sensualidade.

 

JC – Se fosse um bicho, qual seria?

TEREZA – Um gato.

 

JC – Eles estão em suas telas.

TEREZA – É. O gato é um bicho aparentemente muito manso, mas de vez em quando ele arranha. Eu me sinto um pouco isso. Se me aperrear muito, eu arranho.

 

JC – Você uma vez falou que cada pintura é como um parto sangrento de fórceps. Criar é doloroso?

TEREZA – Não acredito nesse negócio de inspiração. Isso é uma invenção. Acredito que a pintura é como qualquer ofício. Tenho o ofício de pintar. Só sinto não poder fazer isso, porque preciso trabalhar no museu (do Mamulengo, em Olinda). O verdadeiro pintor tem aquele ofício em que trabalha. Por exemplo, o marceneiro. Ele faz 30 cadeiras, mas tem uma que é melhor do que as outras. Não é porque naquele dia ele tivesse um sopro divino, não. A prática vai levando ao aprimoramento e acho que a pessoa sempre tem condições de melhorar. Como não tenho nenhuma pretensão de morrer cedo, espero melhorar mais a cada dia.

 

JC – Como tem sido sua rotina de trabalho como pintora?

TEREZA – Suicida.

 

JC – Fale melhor sobre isso.

TEREZA – É quando vem a história dos 80 anos. Não tenho idade para fazer as coisas que faço. Eu vou para supermercado, para banco, arrumo minha casa, moro sozinha. E me sinto muito doida, porque pinto quadros muito grandes, não é? Outro dia, fui correndo para o ateliê e escorreguei. Aí compreendi que realmente podia ter acontecido de eu meter a cara na escada. Essa exposição (do Museu do Estado de Pernambuco) me deu um limite de tamanho de quadro. Por exemplo, estou pintando um quadro de 12 metros. Não tenho mais força para isso. Percebo que daqui a quatro anos não vou poder mais. Não quer dizer que um quadro menor não seja bom, que vá piorar minha pintura. Essa loucura desses quadros grandes eu faço mais à mão, do que com o pincel. É um ato quase sexual para mim. A arte é uma coisa muito física, sangra.

 

JC – Por que essa obsessão por grandes dimensões?

TEREZA – Eu pintava quadros pequenos quando fiz Escola de Belas Artes. Aí quando houve a campanha política de Miguel Arraes, nos anos 80, fui para as ruas com a Brigada Portinari, uma coisa muito importante nessa história de pintura. A gente não tinha compromisso com uma tela de três metros, ou se ia estragar. Você pintava a parede com um pincel grosso e a mão ia sozinha. Então, eu percebi que o que eu fazia gestualmente era muito melhor do que pintura e desenho. Eu sou da Escola de Belas Artes, consigo fazer uma mão assim, assim ou assim. Isso às vezes fica acadêmico e tenho que lutar contra. Não tenho uma pintura acadêmica, tenho uma pintura mais modernista. Com a Brigada Portinari, comecei a perceber que meu movimento maior era muito mais sincero, muito mais espontâneo e melhor como forma. Porque para mim pintura é cor, textura e forma. A história do quadro acho que é secundário.

 

JC – Mas seus quadros são muito narrativos.

TEREZA – São. Câmara diz que meus quadros são na primeira pessoa do singular, mas eu não acho isso, não. Mas também não deixa de ser narrativo. Aquela série, por exemplo, Sete luas de sangue, não tem nada de pessoal. De toda forma, todo artista se põe no meio.

 

JC – Quando você atentou para o fato de que não queria ser mais uma pintora acadêmica?

TEREZA – Na Escola de Belas Artes era assim: modelo de gesso, pintura de natureza morta, paisagem. A gente tinha nota. Tinha que fazer paisagem com os coqueirinhos levando vento. Mas a escola tinha mudado um pouco. Quando eu entrei, já tinha Vicente do Rêgo Monteiro e Lula Cardoso Ayres, os professores que mais me influenciaram lá. Então comecei a fazer algumas deformações, sair da regra três e os professores acharam que estava muito melhor do que antes. Eu comecei a me soltar e isso me fazia muito bem. Nessa época, pintava muita criança, marinheiros, umas figuras. Eu pintava de forma muito sazonal, para uma exposição, para o salão, mas eu não era uma profissional, que acorda, lava os dentes e vai para o ateliê pintar.

 

JC – Mas a sua pintura não é uma atividade diária, é?

TEREZA – Não consigo, porque trabalho, sou diretora do Museu do Mamulengo. E às vezes venho tão envenenada do museu que não tenho condições de mais nada, arreio. É na sexta, no sábado e no domingo que pinto mais. Gosto de pintar de manhã, não gosto de pintar à noite. A cor muda muito. Eu gosto de acordar de madrugada. As minhas melhores coisas são feitas de madrugada. Agora não tenho tanta coragem de me acordar tão cedo, mas a luz da madrugada me inspira. Depois, o silêncio. O silêncio da madrugada é uma coisa muito bonita. Eu ouço o silêncio. Ouço muito. As árvores balançando e entre as árvores, o silêncio.

 

JC – Por que a formação de historiadora?

TEREZA – Fiz história porque acho importante para todo mundo. Por exemplo, aquela série histórica Sete luas de sangue. Em muitos dos acontecimentos eu estava presente. Eu estava presente em 1945, na ditadura de Vargas, na época em que Dr. Arraes foi preso. Peguei os dois golpes. Então, eu misturo a experiência vivida. Acho que se um pintor é figurativo ele é um cronista da sociedade, igual a um cronista social, ele aponta fatos, protestos contra alguma coisa.

 

JC – Mas sua obra jamais foi panfletária.

TEREZA – Não. Eu conheço a arte da Albânia e da China, da própria ex-União Soviética, e são muito ruins. O realismo socialista é um horror, é uma pintura absolutamente panfletária. Aquela bandeira vermelha. Já os mexicanos muralistas não são.

 

JC – Você se aproxima mais deles?

TEREZA – Muito mais, apesar de também serem um pouco panfletários. Eu fazia muito esforço de fugir disso. Essa pintura panfletária é muito ruim, porque é acadêmica e óbvia demais. Não tem nenhuma sutileza.

 

JC – Dos artistas pernambucanos, alguém influenciou você?

TEREZA – Os artistas mais importantes de Pernambuco são Ismael (Caldas) e (João) Câmara. Eles não são acadêmicos, nem abstratos e tiveram a coragem de ter uma forma nova. Eu sinto alguma identidade com eles.

 

JC – E de fora de Pernambuco? Portinari, por exemplo?

TEREZA – Não. Teve uma época em que tive influência de Portinari. Tenho mais de Matisse.

 

JC – Como você vê a arte contemporânea?

TEREZA – Existe arte de duas qualidades: a boa e a outra. Quer seja abstrata, surrealista, primitiva, qualquer “ismo”. Da minha geração mesmo, tem pintores que se perderam e outros que ficaram. Na arte contemporânea tem um questionamento válido, mas acho que não é artes plásticas. Existem umas instalações muito fracas. A pessoa não precisa pegar uma peruca, dividir em vários pedacinhos e dizer que é uma instalação. Respeito muito Zé Patrício, Marcelo Silveira, Márcio Almeida, Dantas Suassuna, Joelson, Christina Machado, todos amigos meus, e eu gosto muito da pintura deles. Mas eles não inventam coisas para dizer que é novo. Tem muita gente com talento em Pernambuco, agora tem muita porcaria, como também tinha no passado. Hoje, por exemplo, se eu fosse comprar uma obra, compraria um quadro abstrato de Burle Max, acho uma maravilha.

 

JC – E por que você nunca pintou um quadro abstrato?

TEREZA – Às vezes eu faço um quadro totalmente abstrato, pronto para botar na parede. Mas aí olho e vejo que não sou eu.

 

JC – Você nunca se satisfaz?

TEREZA – Não, sempre acho que falta muito, que tem muita coisa para caminhar. No dia em que um artista disser que chegou no máximo, pode voltar que parou.

 

JC – Você consegue expressar adjetivamente a dimensão que você tem?

TEREZA – Tenho muita vontade de fazer um autorretrato, tenho dois de quando eu era bem jovem. Sou uma pessoa muito doida e inconveniente, como disse minha filha Tereza, mas uma coisa é muito forte para mim: a relação de amor que eu tenho com as pessoas, as coisas, os bichos. O amor é fundamental, o resto vem depois.

 

JC – Quais seus medos e sonhos?

TEREZA – Esses 80 anos me fizeram ficar com medo. Essas homenagens todas, faço muita autocrítica, se estou sendo vaidosa, se mereço isso, essas coisas chatas de quem tem repressão judaico-cristã. E meu grande sonho hoje, depois de tudo que vivi, é morrer com dignidade e isso significa morrer pintando até o último dia.

 

JC – O que é a morte?

TEREZA – Não estou preparada. Quando era jovem, tinha fascínio pela morte, mas agora não. Queria continuar subindo a escada e sinto que tenho que descer. Mas eu não vou morrer tão cedo.

(© JC Online)


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