Foto: JC Imagem
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Às vésperas
do seu aniversário, uma das melhores pintoras do Brasil mostra uma
vitalidade que não respeita cronologias
Bruno Albertim e Olívia Mindêlo
Amanhece em
Olinda. Na Rua do Amparo, Tereza abre os olhos como num dia qualquer.
Levanta, balbucia umas palavras na cozinha de temperos e vassouras, manias
de uma feiticeira confessa. Cumprimenta os bichos, joga um avental no corpo,
sobe ao ateliê. É lá onde vira Tereza Costa Rêgo, uma dessas rubricas
imponentes da arte pernambucana. Às vésperas de completar 80 anos, a pintora
não quer saber muito de chamego. Adianta que vai estar bem longe na próxima
terça, dia do aniversário. Outros artistas que chegaram à idade, como
Brennand ou Samico, haviam expressado reação semelhante. No caso de Tereza,
a viagem não é propriamente fuga: o tempo tem sido sempre seu parceiro. Sua
vitalidade não respeita cronologias. Prefere não se render a rituais ou
formalidades da data. “O relógio não a venceu. Ela fez um pacto com os
deuses, vai ficar bonita a vida inteira”, corteja o pintor João Câmara, seu
amigo há décadas.
Desde que se
juntou ao clã de artistas em Olinda, para onde se mudou em 1979, a pintora
segue incansável no ateliê suspenso no quintal de casa. “Pintar é um ofício
como outro qualquer. A gente acorda, escova os dentes, troca a calcinha e
vai trabalhar”, diz Tereza, que tem trabalhado com rigor de camponês e
devoção de uma prostituta de Nelson Rodrigues nas sete novas e gigantescas
telas para uma exposição em comemoração aos seus 80 anos. A mostra acontece
em setembro, no Museu do Estado de Pernambuco.
Quando fala
de seu trabalho, é como se revelasse nas entrelinhas o que a mantém de pé,
ao longo de uma vida não menos que intensa. Sobe e desce do banco, arrasta
suas telas imensas (e pesadas) de um lado a outro. Ignora a idade do corpo.
Com a tinta correndo nas veias, leva um pano à boca e lambe os quadros, como
a gata faz com a cria. As mãos apressadas esfregam ainda mais o trapo de
saliva na tela, conferindo uma atmosfera levemente esfumaçada à composição.
É uma forma de, segundo ela, dar vida e dignidade às personagens. Cobri-las
com camadas de mistério.
Tudo parte do
negro. Tereza não pinta sobre a superfície branca original da prancha, nem
desenha antes de tocar o pincel na tela. Primeiro, ocupa todo o tecido com
um rolinho de tinta preta e espera. Depois da fase de angústia, ela solta a
mão de tinta – mais guiada pela intuição e pelo instinto do que pela razão.
A escolha do fundo escuro passa por motivações estéticas: é um recurso
utilizado para alcançar um efeito particular, marcado pela dramaticidade
cena a cena.
Isso explica
o fato de os tons de vermelho e amarelo, insistentes em sua poética,
saltarem do quadro, criando no contraste e nas sobreposições um discurso
extra. Nessa construção cromática, erguida camada a camada de tinta, também
entram branco e verde. O azul lhe é muito raro. “A pintura de Tereza tem uma
índole romântica e evocativa. Suas figuras ruborizadas estão mais em
ambientes cálidos e internos do que expostas à insolação”, observa Câmara,
procurando justificar a ausência da cor celeste.
Custam meses
de suor e sono para uma das telas da artista, obcecada pelas grandes
dimensões, ficarem prontas. São dois, três metros de largura. Toda vez que
Tereza está entregue a algo assim, dorme mal e prefere evitar gente. Para
cada criação que vem ao mundo, há um “parto sangrento de fórceps”, como diz.
Tem sido assim há muitas semanas, meses costurados, desde que passou a
preparar sua nova série, ainda sem título.
Não por
acaso, o conjunto pictórico será distribuído na exposição do Museu do
Estado. O local é simbólico: foi lá onde ela cresceu, entre as folhas do seu
quintal. Foi lá que a tela Mulher e ex-voto lhe rendeu, em 1949, o primeiro
prêmio de viagem da Universidade Federal de Pernambuco. Foi lá também que
atuou como diretora por 12 anos. Além da individual comemorativa, será
lançado um livro-catálogo escrito em tom de crônica biográfica pelo artista
e crítico de arte Raul Córdula, que para a pintora, é um dos que melhor
exprimem em palavras o seu trabalho figurativo. “Preferia fazer um quadro
para ela, mas acho que vou ser mais útil assim”, diz ele.
(©
JC Online)
Pintura de carne e osso
Quando
Olinda silencia, Tereza despeja nas tintas uma criação guiada pelo
instinto
Em um dos ensaios mais detalhados sobre a pintura de Tereza Costa
Rêgo, o escritor Raimundo Carrero parece, enfim, desnudar o mistério
que as mãos da artista procriam: “(...) não se constrói uma obra de
arte com plumas e lantejoulas, mas com dor e sangue”. A afirmação,
contida no texto do catálogo da exposição O imaginário do bordel – o
parto do porto, parece captar as entrelinhas de um trabalho que se
pauta pela intensidade e está longe de ser um Carnaval, apesar de
feito em Olinda.
É
tanto que, com raras exceções (sua paixão, o Homem da Meia-Noite,
por exemplo), a pintora evita retratar a grande festa do Sítio
Histórico em suas telas. Prefere a introspecção. Está mais para a
Quarta-Feira de Cinzas do que para o Sábado de Zé Pereira. A sua
obra nasce quando a cidade silencia e as memórias trancafiadas no
subconsciente reprimido ecoam para todos os lados, despejando nas
tintas o conflito de ser o produto de dois mundos: o conservador, da
aristocracia canavieira, onde foi educada, e o libertário, que a fez
deixar tudo para trás para viver o amor e a luta política ao lado do
companheiro Diógenes Arruda durante a ditadura militar brasileira,
que levou o casal ao exílio (leia matéria da página 7).
Entender esses aspectos ajuda a ir mais fundo na obra, que trava um
diálogo íntimo com a sua vida. A pintura de Tereza não é
autobiográfica ou confessional, mas está longe de excluir o peso de
sua vivência, mesmo quando ela usa a máscara da dramaticidade –
aliás, sempre em cena. “Todo pintor se pinta. Eu me pinto. Na mão,
no gesto, no sentimento. Todo pintor se expressa. Quem diz que não
está mentindo”, pontua o artista e crítico de arte Raul Córdula.
Sobre isso, Tereza desconversa um pouco, prefere deixar que os
quadros falem por si. As suas mulheres tão recorrentes poderiam ser
vistas como seu alterego, mas a artista nega. Prefere se ver nos
gatos, acompanhantes fiéis de suas figuras – e dela mesma.
VEIA
MODERNISTA
Na história
da arte, Tereza se situa numa geração de filhos do modernismo, numa geração
de pintores que expressam na arte a ânsia por uma brasilidade, refletida no
desejo de ruptura com a linguagem acadêmica. Em Pernambuco, essas questões
tomaram feições próprias. Ao mesmo tempo em que os artistas herdaram os
ideais das vanguardas europeias e da Semana de Arte Moderna de 1922, criaram
uma escola particular – ora dialogando com elementos locais, ora fazendo a
ponte com questões comuns aos seres humanos ocidentais do século 20.
Figurativos
por excelência, salvo exceções como Montez Magno (abstrato), os pintores
pernambucanos desse tempo acabaram por criar uma tradição pictórica,
referenciada por nomes como Vicente do Rêgo Monteiro, Cícero Dias e Lula
Cardoso Ayres. Integram essa geração, que se firmou a partir das décadas de
1950 e 1960, João Câmara, Ismael Caldas, Delano, José Cláudio, Reynaldo
Fonseca, Guita Charifker e a própria Tereza Costa Rêgo – embora tenham entre
si idades diferentes. Outros nomes consagrados também os acompanham em rumo
semelhante.
A
grandiosidade dessa pintura se manifesta em Tereza com mais força na série
Sete luas de sangue (2000), ápice de sua maturidade artística. Reconstruindo
em grandes painéis lutas históricas do povo brasileiro, sempre regadas a
massacres sangrentos, a pintora assumiu a veia política, sem deixar de lado
a intensidade poética ou recorrer a discursos panfletários. A Batalha dos
Guararapes, a Guerra de Canudos, a luta de Zumbi dos Palmares, a briga por
terra e outras questões foram trabalhadas pela artista à luz de uma
monumentalidade plástica, capaz de revelar detalhes novos a cada apreciação
das obras. Como os grandes pintores históricos do século 19, como os
muralistas latino-americanos.
“Fiel à
tradição pictórica muralista, a artista executou painéis de extraordinária
beleza e força poética, dominados por vermelhos, profundos, carnais, e
amarelos, ferozes e caniculares, a falar de terras, histórias, dias
ensolarados e mistérios, riquezas e misérias, violências, encantos, temores,
tragédias”, escreveu Marcus de Lontra Costa, então diretor do Mamam, que
sediou a exposição pela primeira vez, em 2000. Sobre a obra, o ex-governador
do Estado Miguel Arraes chegou a dizer pessoalmente à artista: “Fiquei
perturbado com as telas. Você disse o que nós não estamos conseguindo dizer
em palavras faz tempo”.
As sete
grandes telas estão guardadas em sua casa, à espera de que um dia alguma
instituição reconheça o seu valor.
(©
JC Online)
Nova série traz o punho da amante e da cronista
A
série inédita, a ser exposta em setembro no Museu do Estado, é
composta por sete pinturas, incluindo uma de 12 metros referente
à passagem do Apocalipse, cuja concepção pictórica gira em torno
de uma cobra dividida em cinco partes. Segundo a descrição de
Tereza, o bicho está cercado por 500 figuras minúsculas, além de
um trecho transcrito do texto bíblico. É a obra preferida da
artista, que ainda guarda a tela a “sete chaves”. Aliás, o
número tem a ver com a sua mais cara superstição. Basta
relembrar que o conjunto mais expressivo de sua carreira se
chama Sete luas de sangue, espécie de balanço histórico dos 500
anos do Brasil, tecido com a ótica dos vencidos.
Na
mostra individual do Mepe, a sequência épica vai acompanhar a
nova série, ao lado de outra bastante representativa: Imaginário
do bordel (2003), habitada pelas suas inconfundíveis mulheres
flagradas no momento de descanso. Como nas duas coleções
anteriores, o punho de cronista e historiadora se mantém vivo
nessa nova leva de quadros, embora de forma mais diluída. Não há
um tema determinado, como as lutas históricas (Sete luas de
sangue) ou os bordéis, mas é possível identificar elementos
recorrentes, que atestam a fidelidade de Tereza a certos signos:
as mulheres, os bichos, o vermelho, o povo.
Aqui, o olhar documental está tecido ainda mais sob tramas
metafóricas. Uma mulher em posição fetal se contorce no ventre
do tatu, atravessado por uma espada de cima a baixo – uma
citação à descoberta do País. Noutra tela, um rinoceronte reina
sob o sol rubro – uma alusão à invasão holandesa, talvez. Há
ainda a pintura Uma mulher vestida de sol, já exposta no Museu
do Homem do Nordeste, em comemoração aos 80 anos do escritor
Ariano Suassuna. De certa maneira, Tereza dá continuidade à obra
de uma vida.
Na individual, entram em cena ainda uma escultura de madeira, um
tatu (mais ilustrativa), e os trabalhos mais antigos da artista,
entre pinturas, gravuras e desenhos da época em que as lições da
Escola de Belas Artes condicionavam suas mãos. A exposição deve
trazer uma confirmação: companheiro da artista e da mulher em
sua jornada, o tempo tem sido também grande cúmplice da sua
obra, que fica melhor a cada ano que passa.
(©
JC Online)
Terezinha, Joana e Tereza
Condenada à vida da alta sociedade, a artista largou tudo
para viver na clandestinidade e se reinventar como mulher
Tereza é uma tríade. Filha da aristocracia rural já
decadente, cresceu como a Terezinha Barros Costa Rêgo
destinada a uma vida mais de tafetá e porcelanas que de
pele, alma e secreções. Casou-se segundo a genética social
para seguir, como ela gosta de dizer, enfeitando o piano da
sala. Mas, se destino existe, quis ele que Tereza cruzasse a
existência com Diógenes Arruda. Descobriu o amor, suas
nuances, imposições e glândulas. Também a pobreza, a
discriminação e o exílio ao lado do companheiro e personagem
de primeira hora do comunismo no Brasil. Fez-se então Joana,
nome de guerra e paz durante a clandestinidade, até se
consagrar como Tereza Costa Rêgo. Um calibre grosso, artista
sem necessidade de maiores apresentações. Uma mulher que
pariu a si própria por pelo menos três vezes.
O primeiro parto se deu num 28 de abril, há quase 80 anos.
Filha mais nova de cinco irmãos intelectualizados,
habituados ao convívio pessoal com personagens da política e
da arte, Terezinha teve como segunda morada a eterna lista
das mais elegantes da sociedade pernambucana. Imposição do
talento, começou a pintar ainda criança. Fez o que faziam as
finas. Foi para a Escola de Belas Artes. Mas a mesma família
que patrocinava as lições a proibia de ver modelos nus. “Eu
fui criada com muita repressão, tinha muito medo quando era
criança. Medo das freiras do colégio. Se eu tirasse 9,5,
levava um carão. Depois, na ditadura, tinha medo da
polícia”, lembra.
Repressão entranhada, seu primeiro nu só foi pintado depois
dos 50 anos. A tela Mulher nua com gatos, de 1983, é
pioneira. Insígnia da sua obra, a nudez viraria uma
obsessão, lastreada pela paixão estética e pelo protesto
tardio. “A nudez é a coisa mais pura, mais linda do ser
humano”, defende Tereza. Mas, evocação do passado de freiras
e bedéis, dualidade primeira, a nudez na obra de Tereza
nunca está totalmente impune. É o que disse o escritor
Raimundo Carrero, no texto de apresentação da série
Imaginário do bordel: “...Nos quadros de Tereza, há sempre
um impedimento, uma dificuldade, uma imposição...”
A pintora lembra da primeira vez em que entrou num bordel.
Foi em sua própria e aristocrática casa no bairro das
Graças, entre os irmãos e os 11 empregados. “Gostava de
deitar no colo de meus irmãos, aparentemente para cochilar,
ficava escutando as histórias. Eu sabia o nome das mulheres,
das donas das pensões: Alzira, Djanira, Edite, Maria Maga...
O Chantecler, o Bar do Grego, a Festa da Mocidade...”. Mais
tarde, sua memória de historiadora abrigou relatos da
comemoração do fim da Segunda Guerra num bordel de Paris.
“Comecei a achar que todas as coisas importantes só podiam
acontecer no puteiro”, diz. Mas ela nunca chegou de fato a
pisar num bordel. Havia, claro, o risco crucial de
desidealizá-lo. Arquétipos, afinal, são matéria-prima
preciosa.
O segundo parto de Tereza aconteceu em 1962, quando ela
conheceu Arruda. Um dos fundadores do PC do B, o
pernambucano já era um personagem envolto em certa mística.
Em sua fase vermelha, Jorge Amado dedicou ao “camarada
Diógenes Arruda” uma das obras da trilogia Os subterrâneos
da liberdade. Era irmão de uma amiga de Tereza. “Encontrei
com ele, achei simpático e tal... Tinha ouvido muito falar
nele. Era uma figura muito lendária, aqui no Recife se
falava muito. Ele me disse que na hora que me viu pensou:
‘Eu vou casar com essa mulher de qualquer jeito. Uma
loucura, porque eu era uma pessoa com um carro preto e um
chofer, toda arrumada”.
Mas não foi a mítica ou a militância que os uniu. A
imposição foi mais hormonal. Tereza diz ter ficado refém
daquele cheiro. “Eu não disse que sou um bicho? Foi uma
coisa muito violenta. Fiquei doida e ele também, e a danação
foi enorme. Foi forte demais e resolvi me separar”, diz ela,
que conheceu cada naco de carne do preconceito.
Com duas filhas, foi para a casa da mãe e viu portas, uma a
uma, se fecharem. “Até os cronistas sociais, que viviam me
paparicando, me viraram a cara. O único que sempre me foi
fiel foi Alex”, conta. Animal de raça, a atração por Arruda
era mais forte. “Foi mais que uma paixão, foi uma doença
grave.”
Uma amiga traiu Tereza. Entregou a correspondência entre ela
e Diógenes ao então marido. “Aí perdi todos os direitos do
que eu queria dizer a ele, de que a gente tinha duas filhas
e que eu queria um desquite civilizado. Ele ficou doido,
porque nunca pensou na vida que eu pudesse ir embora. O
divórcio foi da Idade Média. Eu perdi as meninas e tudo.”
Sua mãe morreu pouco depois. Culpa que ela nunca apagou.
“Tenho certeza que ela morreu por minha causa. Nunca tinha
sofrido antes”. Com propriedades pelo Brasil, inclusive a
mansão de praia onde Ruy Guerra filmou Os cafajestes, os
irmãos estavam em São Paulo. Vieram ao funeral num avião
fretado.
Só não havia lugar para Tereza. Foi obrigada a embarcar num
voo comercial da extinta Pan Air. “No velório, as pessoas
falavam com um, com outro, quando chegavam perto de mim,
voltavam. Uma mulher que nem lembra fez isso comigo. Hoje
faz a maior festa quando me vê”.
Vivendo na clandestinade com Arruda em São Paulo depois do
golpe de 1964, percebeu que o companheiro era irreversível
em sua vida. “Vendi um vestido para conseguir me manter por
alguns meses”, lembra. A vida clandestina durou até 1969,
quando o companheiro foi preso. Nesse tempo, Tereza
formou-se em história pela USP. Deu aulas para
vestibulandos. Apesar das notícias de tortura, ela tinha
certeza de que ele sairia vivo da prisão. “Era muito
doloroso, não podia chegar perto dele. Eu não existia
oficialmente em sua vida”, conta.
A certeza da sobrevivência veio inusitadamente. “Fui a todas
as macumbas possíveis”, lembra. Em Santos, um pai de santo
reconheceu a foto do companheiro. “É Arruda?! Fomos
companheiros de sindicato!”, disse o homem. “Ele queimou uma
pólvora e um mapa se formou no chão. Ali, o homem me mostrou
que íamos para o exílio”, diz, com um riso contido na boca.
“Eu passava o dia chorando, antes de Diógenes aparecer. Era
aquele vazio, aquelas roupas de ouro não me vestiam mais,
não tinha nada a ver com aquilo, aquelas mulheres high
society, aquelas coisas de filantropia de que eu tenho
horror. Era melhor eu ir e ser feliz e depois voltar, porque
aí eu voltava com condições de ajudar. E eu voltei”, avalia
Tereza, hoje proa de duas filhas, três netos e uma bisneta.
“Apesar de aristocrática, a família da minha mãe sempre teve
vida intelectual ativa. Por isso, nunca se viu naquela vida
fútil”, diz a filha e jornalista Maria Tereza Rozowykwiat..
EXÍLIO
Exilado, o casal seguiu para o Chile. Mas o golpe que matou
Allende atingiu também Arruda, abrigado na embaixada da
Argentina. Numa noite em que corria do toque de recolher,
descobriu que estava grávida quando o sangue desceu pelas
pernas. Abortou.
O golpe de Pinochet os levou a Paris, residência por seis
anos. Vinte e sete telas ficariam perdidas no Chile. Acabou
empreendendo um doutorado sobre a história do proletariado
brasileiro na Sorbonne. Nunca foi, aliás, a simples
companheira de Arruda. “Eu era – e ainda sou – militante.
Nunca participei de operações arriscadas. Era a motorista do
partido”, lembra. Outra de suas funções: disfarçar
companheiros clandestinos. Colocou muita peruca na cabeça de
quem ia pro Araguaia.
Durante toda a existência clandestina, usou o nome de Joana.
“O partido me pediu para escolher um nome e eu escolhi esse.
Além de salvaguardar Tereza, a identidade batizou também sua
neta. Na casa da filha Tereza, uma tela traz o grande
suvenir do período: a assinatura Joana. A outra filha,
Laura, herdou a vocação para a pintura.
Com a anistia, voltaram ao Brasil em 79. No dia 25 de
setembro, foram ao aeroporto de São Paulo encontrar o
companheiro João Amazonas, recém-chegado do exílio. Saíram
em carros separados. De lá, Arruda saiu para o hospital.
Chegou morto de um infarto.
De volta à terra uterina, Tereza encontrou Olinda, sua
última e definitiva pátria. “Quando acabou o exílio, que eu
voltei, eu não vim para o Recife, nem para o Brasil, eu vim
para Olinda, lucidamente. Quando Diógenes morreu, eu fiquei
muito só, com uma dor muito grande, aí percebi que eu era
uma pessoa muito forte. Então eu resolvi voltar, minhas
filhas estavam aqui”, diz Tereza, que se define como filha
de Olinda e da Joana encarnada no exílio. “Eu sempre fui a
irmã dos meus filhos, a mulher do meu marido, a companheira
de Arruda, a militante do partido. Olinda me deu minha
identidade como artista”, diz ela, que de sua janela, todos
os anos, reúne os amigos, uns copos de uísque e muitas
conversas para saudar, no Carnaval, o Homem da Meia-noite. O
calunga, confidencia a artista, é seu noivo. Encanta todas
as mulheres que nela habitam.
(©
JC Online)
ENTREVISTA » TEREZA COSTA RÊGO
A voz da arte que
sangra
Um dia antes de Tereza Costa Rêgo conceder esta
entrevista aos repórteres Bruno Albertim e Olívia Mindêlo, a pressão
arterial da artista saiu da rotina. Depois de gravar um vídeo relacionado
aos seus 80 anos, ela chorou o dia inteiro. Visitou-lhe a insegurança típica
dos grandes artistas, lacrimosos como meninos às vésperas de uma nova
estreia. Entre planos pictóricos das telas que gesta para a exposição
comemorativa de suas oito décadas, passou a limpo tudo o que viveu e tem
vivido. Não é pouco, o que a afasta do rol das existências mais ordinárias.
No mundo, uma estrela se acende a cada vez que surge alguém com tanto para
contar. E Tereza não é só uma pintora, uma grandiosa pintora. É uma
personagem da história brasileira. Herdou e ampliou o modernismo no Brasil,
amou como poucos sabem – ou teriam a coragem de amar. Conheceu as veias
internas da ditadura e do exílio ao lado do companheiro, bicho humano e
político como ela, Diógenes Arruda, figura central da história do comunismo
no Brasil. Afinal, como lhe disse uma amiga: Tereza não escolheu o ninho,
mas o voo. Confira uma parte da conversa com essa artista que nunca hesitou
em pular da janela. A vitalidade é o seu saldo.
JORNAL DO COMMERCIO – Qual seu sentimento em relação aos 80?
TEREZA COSTA
RÊGO – Essa história de 80 anos era uma coisa que eu não tinha registrado.
Sou muito diferente das pessoas dessa idade. Para mim, esse número “oito”
nunca cairia na minha frente e, de repente, quando fui conversar com o rapaz
que está fazendo o meu livro, lembrei. Fiquei muito indignada, porque não
tinha 80 anos... Mas fui fazer as contas e tinha. Passei uma noite
angustiada, um mês sem dormir. Agora, a minha cabeça é muito doida, porque o
corpo velho pede socorro de vez em quando. Estou me adaptando a esta nova
fase, um pouco perturbada ainda. É uma idade que marca o princípio do fim. É
muito difícil você fazer 90 anos. E não pretendo morrer nem tão cedo, vou
aperrear muita gente ainda, dar muita risada. Minha cabeça vai muito rápido,
eu só tenho amigo jovem, doido...
JC – Como
você percebe sua vitalidade?
TEREZA – Sou
capaz de subir uma ladeira correndo e eu me sinto igual, sexualmente igual.
Só que eu tenho um bom senso suficiente para saber até aonde a pessoa deve
ir e até aonde ela não deve mais. Sou uma pessoa bastante... não é sexual,
mas sensual. Eu aliso as coisas. Quando vejo uma coisa que eu gosto, é como
se eu alisasse, como se fosse um estímulo.
JC – Sua obra
tem uma sensualidade, um erotismo...
TEREZA – Eu
não vejo como erotismo, não. Acho que é sensualidade, que é diferente.
Sensualidade é uma coisa muito ligada com o corpo. Erotismo é mais uma coisa
elucubrada na cabeça. Eu me sinto muito bicho. Mais do que gente. Um gato
andando, dormindo, é de uma sensualidade enorme. O movimento do gato, as
mãos... Para mim, nesse movimento do gato, ou de outro animal qualquer, eu
vejo a curva. A curva é uma coisa que leva ao prazer, mas não ao erótico, é
um prazer suave. As pessoas não separam, é tudo uma coisa muito séria. Acho,
então, que a minha pintura beira mais essa sensualidade.
JC – Se fosse
um bicho, qual seria?
TEREZA – Um
gato.
JC – Eles
estão em suas telas.
TEREZA – É. O
gato é um bicho aparentemente muito manso, mas de vez em quando ele arranha.
Eu me sinto um pouco isso. Se me aperrear muito, eu arranho.
JC – Você uma
vez falou que cada pintura é como um parto sangrento de fórceps. Criar é
doloroso?
TEREZA – Não
acredito nesse negócio de inspiração. Isso é uma invenção. Acredito que a
pintura é como qualquer ofício. Tenho o ofício de pintar. Só sinto não poder
fazer isso, porque preciso trabalhar no museu (do Mamulengo, em Olinda). O
verdadeiro pintor tem aquele ofício em que trabalha. Por exemplo, o
marceneiro. Ele faz 30 cadeiras, mas tem uma que é melhor do que as outras.
Não é porque naquele dia ele tivesse um sopro divino, não. A prática vai
levando ao aprimoramento e acho que a pessoa sempre tem condições de
melhorar. Como não tenho nenhuma pretensão de morrer cedo, espero melhorar
mais a cada dia.
JC – Como tem
sido sua rotina de trabalho como pintora?
TEREZA –
Suicida.
JC – Fale
melhor sobre isso.
TEREZA – É
quando vem a história dos 80 anos. Não tenho idade para fazer as coisas que
faço. Eu vou para supermercado, para banco, arrumo minha casa, moro sozinha.
E me sinto muito doida, porque pinto quadros muito grandes, não é? Outro
dia, fui correndo para o ateliê e escorreguei. Aí compreendi que realmente
podia ter acontecido de eu meter a cara na escada. Essa exposição (do Museu
do Estado de Pernambuco) me deu um limite de tamanho de quadro. Por exemplo,
estou pintando um quadro de 12 metros. Não tenho mais força para isso.
Percebo que daqui a quatro anos não vou poder mais. Não quer dizer que um
quadro menor não seja bom, que vá piorar minha pintura. Essa loucura desses
quadros grandes eu faço mais à mão, do que com o pincel. É um ato quase
sexual para mim. A arte é uma coisa muito física, sangra.
JC – Por que
essa obsessão por grandes dimensões?
TEREZA – Eu
pintava quadros pequenos quando fiz Escola de Belas Artes. Aí quando houve a
campanha política de Miguel Arraes, nos anos 80, fui para as ruas com a
Brigada Portinari, uma coisa muito importante nessa história de pintura. A
gente não tinha compromisso com uma tela de três metros, ou se ia estragar.
Você pintava a parede com um pincel grosso e a mão ia sozinha. Então, eu
percebi que o que eu fazia gestualmente era muito melhor do que pintura e
desenho. Eu sou da Escola de Belas Artes, consigo fazer uma mão assim, assim
ou assim. Isso às vezes fica acadêmico e tenho que lutar contra. Não tenho
uma pintura acadêmica, tenho uma pintura mais modernista. Com a Brigada
Portinari, comecei a perceber que meu movimento maior era muito mais
sincero, muito mais espontâneo e melhor como forma. Porque para mim pintura
é cor, textura e forma. A história do quadro acho que é secundário.
JC – Mas seus
quadros são muito narrativos.
TEREZA – São.
Câmara diz que meus quadros são na primeira pessoa do singular, mas eu não
acho isso, não. Mas também não deixa de ser narrativo. Aquela série, por
exemplo, Sete luas de sangue, não tem nada de pessoal. De toda forma, todo
artista se põe no meio.
JC – Quando
você atentou para o fato de que não queria ser mais uma pintora acadêmica?
TEREZA – Na
Escola de Belas Artes era assim: modelo de gesso, pintura de natureza morta,
paisagem. A gente tinha nota. Tinha que fazer paisagem com os coqueirinhos
levando vento. Mas a escola tinha mudado um pouco. Quando eu entrei, já
tinha Vicente do Rêgo Monteiro e Lula Cardoso Ayres, os professores que mais
me influenciaram lá. Então comecei a fazer algumas deformações, sair da
regra três e os professores acharam que estava muito melhor do que antes. Eu
comecei a me soltar e isso me fazia muito bem. Nessa época, pintava muita
criança, marinheiros, umas figuras. Eu pintava de forma muito sazonal, para
uma exposição, para o salão, mas eu não era uma profissional, que acorda,
lava os dentes e vai para o ateliê pintar.
JC – Mas a
sua pintura não é uma atividade diária, é?
TEREZA – Não
consigo, porque trabalho, sou diretora do Museu do Mamulengo. E às vezes
venho tão envenenada do museu que não tenho condições de mais nada, arreio.
É na sexta, no sábado e no domingo que pinto mais. Gosto de pintar de manhã,
não gosto de pintar à noite. A cor muda muito. Eu gosto de acordar de
madrugada. As minhas melhores coisas são feitas de madrugada. Agora não
tenho tanta coragem de me acordar tão cedo, mas a luz da madrugada me
inspira. Depois, o silêncio. O silêncio da madrugada é uma coisa muito
bonita. Eu ouço o silêncio. Ouço muito. As árvores balançando e entre as
árvores, o silêncio.
JC – Por que
a formação de historiadora?
TEREZA – Fiz
história porque acho importante para todo mundo. Por exemplo, aquela série
histórica Sete luas de sangue. Em muitos dos acontecimentos eu estava
presente. Eu estava presente em 1945, na ditadura de Vargas, na época em que
Dr. Arraes foi preso. Peguei os dois golpes. Então, eu misturo a experiência
vivida. Acho que se um pintor é figurativo ele é um cronista da sociedade,
igual a um cronista social, ele aponta fatos, protestos contra alguma coisa.
JC – Mas sua
obra jamais foi panfletária.
TEREZA – Não.
Eu conheço a arte da Albânia e da China, da própria ex-União Soviética, e
são muito ruins. O realismo socialista é um horror, é uma pintura
absolutamente panfletária. Aquela bandeira vermelha. Já os mexicanos
muralistas não são.
JC – Você se
aproxima mais deles?
TEREZA –
Muito mais, apesar de também serem um pouco panfletários. Eu fazia muito
esforço de fugir disso. Essa pintura panfletária é muito ruim, porque é
acadêmica e óbvia demais. Não tem nenhuma sutileza.
JC – Dos
artistas pernambucanos, alguém influenciou você?
TEREZA – Os
artistas mais importantes de Pernambuco são Ismael (Caldas) e (João) Câmara.
Eles não são acadêmicos, nem abstratos e tiveram a coragem de ter uma forma
nova. Eu sinto alguma identidade com eles.
JC – E de
fora de Pernambuco? Portinari, por exemplo?
TEREZA – Não.
Teve uma época em que tive influência de Portinari. Tenho mais de Matisse.
JC – Como
você vê a arte contemporânea?
TEREZA –
Existe arte de duas qualidades: a boa e a outra. Quer seja abstrata,
surrealista, primitiva, qualquer “ismo”. Da minha geração mesmo, tem
pintores que se perderam e outros que ficaram. Na arte contemporânea tem um
questionamento válido, mas acho que não é artes plásticas. Existem umas
instalações muito fracas. A pessoa não precisa pegar uma peruca, dividir em
vários pedacinhos e dizer que é uma instalação. Respeito muito Zé Patrício,
Marcelo Silveira, Márcio Almeida, Dantas Suassuna, Joelson, Christina
Machado, todos amigos meus, e eu gosto muito da pintura deles. Mas eles não
inventam coisas para dizer que é novo. Tem muita gente com talento em
Pernambuco, agora tem muita porcaria, como também tinha no passado. Hoje,
por exemplo, se eu fosse comprar uma obra, compraria um quadro abstrato de
Burle Max, acho uma maravilha.
JC – E por
que você nunca pintou um quadro abstrato?
TEREZA – Às
vezes eu faço um quadro totalmente abstrato, pronto para botar na parede.
Mas aí olho e vejo que não sou eu.
JC – Você
nunca se satisfaz?
TEREZA – Não,
sempre acho que falta muito, que tem muita coisa para caminhar. No dia em
que um artista disser que chegou no máximo, pode voltar que parou.
JC – Você
consegue expressar adjetivamente a dimensão que você tem?
TEREZA –
Tenho muita vontade de fazer um autorretrato, tenho dois de quando eu era
bem jovem. Sou uma pessoa muito doida e inconveniente, como disse minha
filha Tereza, mas uma coisa é muito forte para mim: a relação de amor que eu
tenho com as pessoas, as coisas, os bichos. O amor é fundamental, o resto
vem depois.
JC – Quais
seus medos e sonhos?
TEREZA –
Esses 80 anos me fizeram ficar com medo. Essas homenagens todas, faço muita
autocrítica, se estou sendo vaidosa, se mereço isso, essas coisas chatas de
quem tem repressão judaico-cristã. E meu grande sonho hoje, depois de tudo
que vivi, é morrer com dignidade e isso significa morrer pintando até o
último dia.
JC – O que é
a morte?
TEREZA – Não
estou preparada. Quando era jovem, tinha fascínio pela morte, mas agora não.
Queria continuar subindo a escada e sinto que tenho que descer. Mas eu não
vou morrer tão cedo.
(©
JC Online)
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