Foto: Werther Santana/AE
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Público que assistia ao show no palco Toca Raul da Virada
Cultural
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Artista recriou disco 'Sociedade da Grã-Ordem Kavernista
Apresenta Sessão das 10' na Virada Cultural
Edmundo Leite, do estadao.com.br
SÃO PAULO - Nem
o mais otimista dos fãs poderia esperar tanto. Após as apresentações de Os
Panteras tocando o disco "Raulzito e os Panteras" e Leno Azevedo, com o
cultuado e fantasma "Vida e Obra de Johnny McCartney", intercalado pela
vigorosa presença dos rockabillys Gaspa e Os Alquimistas, entrou ao palco
Edy Star. Todo fã de Raul conhece a figura. Amigo de Raul Seixas desde a
juventude em Salvador, Edy é o único remanescente do grupo que o então
discreto produtor da CBS reuniu para perpetrar uma de suas primeiras
iconoclastias musicais: "Sociedade da Grã Ordem Kavernista Apresenta Sessão
das Dez", disco de 1971 que além de Raul ainda contava com Edy, Sérgio
Sampaio e Miriam Batucada.
Claro que
ninguém cobraria nada se dali não saísse muita coisa, já que no palco
haveria 24 horas de Raul Seixas, com diferentes artistas interpretando todos
os seus discos, música por música. Era jogo amistoso com a torcida a favor.
Vindo especialmente da Espanha, onde mora e trabalha há vários anos, a sua
simples presença era motivo de comemoração. Com sua personalidade festiva
(Raul o chamava de Edy Bofélia) não seria difícil deixar uma lembrança
simpática e carinhosa.
Mas Edy não é
homem de se contentar com pouco nem de meios termos, como mostra a sua
interessante trajetória. E também como se podia ver antes da apresentação,
quando circulava - muitas vezes anonimamente - entre a multidão na Rua
Casper Líbero. Durante o show dos Panteras, chegou a retirar uma faixa que
um fã barbudo de óculos escuros e bandana pendurou em uma pequena árvore,
impedindo que ele visse o show dos conterrâneos enquanto conversava com um
homem que destoava dos milhares ao redor por estar de terno. Nessas
situações não são poucos os que dariam um passo ao lado para evitar
confusão. Mas, mal o sujeito pendurou a faixa, Edy a arrancou prontamente. O
cara foi tirar satisfação e Edy encarou. De passagem, não deu para captar o
diálogo ríspido que se seguiu, mas de longe dava para ver que a faixa não
voltou a atrapalhá-lo.
Encerrado
show de Leno, cabia então a ele relembrar não só o homenageado do dia, mas
também outros dois talentosos falecidos que faziam parte daquilo que nos
dias de hoje seria chamado de coletivo: Sérgio Sampaio e Miriam Batucada.
Apesar da complexidade musical do disco de 1971, seu caráter anárquico
permitiria que não houvesse tanta preocupação com o suporte musical e seria
fácil apostar apenas na reconhecida capacidade cênica de Edy para segurar o
show.
Como dito,
era jogo ganho. Mas em vez de se contentar com um empate ou vitória por um
de diferença, o técnico botou o time para golear. Responsável por
reconstituir as 11 faixas inéditas em shows (a Sociedade Kavernista nunca se
apresentou, e somente o bolero Sessão das Dez foi posteriormente aproveitado
por Raul nos shows de sua fase inicial), o guitarrista Caverna foi
meticuloso na reprodução dos arranjos e garantiu, com dupla de backing
vocals, percussão e naipe de metais acompanhando a base
bateria-baixo-guitarra - uma retaguarda pra lá de sólida para a performance
de Edy.
Todas as
faixas, começando pela carnavalesca "Êta Vida" e terminando com "Dr.
Paxeco", contavam com troca de figurinos de Edy, lembrando as roupas dos
quatro protagonistas na cada do disco: a camisa da seleção brasileira de
Sérgio, o hippie estilizado de Raul, a super-mulher de Miriam e o ídolo da
juventude de Edy. As debochadas vinhetas que separam as faixas ao longo do
disco ("...i rapaz hoje vi meu ídolo da juventude...; ...alô, é Jorginho
Manero, é verdade que agora você é hippie? Podes crê ..." "Eu comprei uma
televisão à prestação..."; "Tem um hippie em pé no meu portão...") foram
reproduzidas com fidelidade e participação de Sylvio Passos, fã-símbolo de
Raul Seixas.
Mesmo não
tendo as letras na ponta da língua (ao contrário do público) e por muitas
vezes tendo que recorrer à leitura de colas no chão do palco, Edy não deixou
a peteca cair por um minuto. Com a seqüência de bolero, xaxado, forró,
marcha, samba, rumba e outros ritmos que o quarteto cantou com suas
diferentes vozes no disco original, Edy botou a multidão majoritariamente
associada ao rock (principalmente por causa da vestimenta preta) para dançar
e rebolar numa incomum celebração musical.
Curiosamente,
a catarse se deu em duas músicas que não eram de autoria de Raul Seixas nem
por ele interpretadas no disco, mas de Sérgio Sampaio, mostrando o quanto
também era genial o cantor e compositor capixaba que, como o homenageado da
maratona, também se perdeu em algum ponto de sua vida. Na primeira delas,
"Todo Mundo Está Feliz", Edy colocou todo mundo pra pular com o poderoso
refrão que podia ser hit em qualquer trio elétrico e que se alterna com a
melodia quase melancólica criada por Sérgio.
Atrás do
palco, os ponteiros do relógio da Estação da Luz estavam próximos de se
juntarem, quando Edy começou a introdução de "Eu Não Quero Dizer Nada",
criando um involuntário trocadilho cênico com os versos "...já é quase meia
noite, no relógio do edifício, onde estou...". Talvez por ser originalmente
cantada pelo próprio Edy no disco, a canção teve uma interpretação
arrepiante na noite de sábado, com os batuques que acompanham o refrão "Você
é tão legal" levando o público a um transe coletivo no centro da cidade. A
goleada estava garantida com dois gols magistrais.
Agora era só
correr por abraço com a anti-burocrata "Dr. Paxeco" e gozação de Edy com uma
das lendas que cercam o mítico álbum levando ao palco uma arpa egípcia
improvisada em tampa de vaso sanitário. Com tudo isso, nem tinha como a
quase imperceptível vacilada de sincronização para o encerramento
performático ao som original da descarga de privada do disco comprometer. E
o bis, claro, não poderia ser mais apropriado: "Todo mundo está Feliz Aqui
na Terra, Todo mundo está Feliz Aqui na Terra..."
(©
Estadão)
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