Patativa do Assaré, poeta lírico, fez também versos políticos
22/05/2009
Foto: Divulgação
Essa a faceta que mais se destaca no documentário de
Rosemberg Cariry, que fez sucesso no Festival Cine Ceará há dois
anos
Não se sabe se Patativa do Assaré - Ave Poesia, de
Rosemberg Cariry, terá em outros Estados a mesma força que teve em sua
terra natal. Foi apresentado, há dois anos no Cine Ceará, o festival de
Fortaleza, e recebeu rara consagração popular. O público aplaudiu várias
vezes durante a projeção e emocionou-se demais. Agora é ver se essa
emoção viaja bem do Nordeste ao Sudeste. Em tese, não tem por que não
viajar. Afinal, somos todos brasileiros e a mensagem de Patativa,
nascido Antonio Gonçalves da Silva, profundamente regional, não deixa de
ser universal.
Tanto é que seus versos têm sido estudados em outros países, inclusive
na douta França, como o filme registra. Mas, no fundo, esses depoimentos
têm apenas caráter ilustrativo. Indicam que a arte popular pode ser
apreciada por pessoas de cultura mais, digamos, formal, mesmo que se
expressem em outro idioma. Mas o que interessa de fato é a força da arte
de Patativa e o diretor, nascido na região, tem a sabedoria de deixar
que ela fale por si e disponha de tempo para se expressar.
Como documento, Patativa é bastante completo. Cariry busca as imagens do
artista onde pôde encontrá-las. Há, claro, entrevistas que fez com ele,
já velho, mas usa também trechos de Super-8, filmagens em 16 mm e 35 mm
e até em vídeo. Esse ecletismo não cai mal a um filme que deseja
destacar o caráter multifacetado do artista. Patativa foi um lírico, mas
também um cantador antenado com seu tempo - e consciente das carências
da sua região. Como aliás não poderia deixar de ser, nascido em família
pobre e carente, numa casa de muitos irmão e pouca comida.
Nessa vertente, o documentário encontra seu caminho, sua opção ao
interpretar a vida do homem. O Patativa que aqui surge tem, como se
disse, muitas faces. Mas delas, a que mais sobressai é a face política.
Como se o filme fizesse uma leitura de esquerda do personagem, viés que
não deforma a sua trajetória. Patativa, de fato, sempre protestou contra
a miséria de sua gente e chegou a fazer versos em prol da reforma
agrária. Mas tudo isso seria inócuo não fosse a vivacidade dos seus
versos. E é sempre essa força que imanta o filme, nos momentos políticos
ou não. L.Z.O.
Serviço
Patativa do Assaré - Ave Poesia (Brasil/ 2007, 84 min.) - Documentário.
Dir. Rosemberg Cariry. Livre. Cotação: Bom
A mais documentada das cantoras fala de sua
relação com o que se filma sobre ela
Lauro Lisboa Garcia
Diretores de teatro têm experiências memoráveis de
trabalhar com Maria Bethânia. Fauzi Arap, Gabriel Villela e Bia Lessa
que o digam. Mas os cineastas parecem não ficar atrás. Dentre as grandes
personalidades da música brasileira, ela é a cantora mais contemplada
com documentários. Isso desde Bethânia Bem de Perto (de Eduardo Escorel
e Julio Bressane) e Saravá (do francês Pierre Barouh), ambos de 1969.
Outro gringo que se encantou com a cantora foi Georges Gachot, que
realizou Maria Bethânia - Música É Perfume, em 2005. Além desses, está
disponível em DVD Pedrinha de Aruanda, de Andrucha Waddington.
Com a mesma intensidade que vem produzindo um CD (ou dois) atrás de
outro, a presença de Bethânia nas telas não para aí. Além de dois filmes
sobre os Doces Bárbaros (o de Jom Tob Azulay em 1976 e o de Andrucha em
2002), ela aparece em documentários mais recentes, dando depoimentos
como em Vinicius, ou discutindo a relação entre música e letra em
Palavra (En)Cantada, de Helena Solberg.
Para quem gosta, ela acha que fazer cinema deve ser prazeroso. "Mas ao
fazer Quando o Carnaval Chegar, com Cacá Diegues, quase morri, era
estranhíssimo", lembra, rindo. "Eu, Chico (Buarque) e Nara (Leão),
quando fomos à casa de Cacá brindar o fim das filmagens, falamos: nunca
mais a gente faz isso", conta. "A gente ria muito da gente o tempo
inteiro." Cacá dizia a ela que no cinema tinha de "fazer pequeno",
porque na tela tudo vira grande demais. "Sou uma mulher cheia de gestos
que, como dizia Flávio Império, se levantar a mão fura o telhado.
Imagina eu fazendo cinema. Dona Tizuka Yamazaki me convidou agora para
fazer uma pajé num projeto deslumbrante dela. Queria demais fazer, mas
falei adeus, cinema", diz, bem-humorada.
Não tendo de interpretar personagem para as câmeras é outra história.
"Foi muito lindo, comovente, cantar Motriz em Pedrinha de Aruanda, na
gare onde eu e Caetano pegávamos a motriz em Santo Amaro. Toda essa
coisa da minha terra é muito poético na minha cabeça." Assim como não
costuma ouvir muito os próprios discos, Bethânia diz que não gosta de se
ver filmada. "Tem flashes do Gachot, como aquele amanhecer sobre o túnel
com minha voz, que eu adoro. Mas nem meus DVDs eu assisto. Aprovo o
áudio e caio fora."
Ela diz que fica feliz de ver o cinema mais voltado para a música hoje.
"A música no Brasil tem uma penetração como nenhuma outra expressão
artística. É natural isso. E de um tempo para cá, o cinema começou olhar
para a música de uma maneira mais cinematográfica mesmo. Depois do
sucesso de 2 Filhos de Francisco e Cazuza, isso ficou mais à vista."
Versificando registra a arte de cantadores de feira e rua, sambistas de
partido alto, rappers e outros inventores da rima popular
Luiz Zanin Oricchio
Entre todos os documentários tendo por tema a música popular brasileira,
faltava um que falasse do verso improvisado. É o tema de Versificando, de
Pedro Caldas, que documenta os diversos registros pelos quais essa arte
difícil se manifesta.
Ela pode vir de cantadores de feiras e das ruas do Nordeste. Pode aparecer
no canto dos violeiros do interior do País. Pode estar nos fundos de quintal
ou nas quadras de escolas de samba. Pode se expressar na voz dos rappers e
dos praticantes do hip-hop freestyle. A ideia de base é sempre a mesma. Há
um mote, em cima do qual os cantadores glosam. Desafiam-se uns aos outros,
porque essa arte tem o formato de luta. Ok, de uma luta simulada, mas que
pode parecer bem pesada e, ao fim da qual, os "inimigos" se reconciliam.
O outro mote de Versificando, aquele que fica em pano de fundo, mas de
qualquer forma muito presente, é o ambiente onde se exerce essa arte. Sim,
ela é expressão de todo o Brasil, mas acontece, se realiza, na cidade de São
Paulo. É, por paradoxo, a megalópole, cuja dimensão incontrolável a todos
devora, que também pode abrigar as manifestações de todo um país com as
dimensões do Brasil. São Paulo é um ponto de encontro, uma síntese
tamanho-família e muitas vezes mal-ajambrada. Mas onde se podem acomodar a
cultura de migrantes de várias origens.
Basicamente, Versificando é um filme para ser curtido, visto e ouvido. Se
você prestar atenção, verá o quanto de habilidade e de arte exige um desafio
como o de fazer versos, antecipando-se à resposta do rival e tendo, como diz
um deles, "apenas 30 segundos para pensar". Mesmo que adivinhemos que a
prática continuada ensine alguns macetes, como as rimas mais fáceis e mais
óbvias. Mas, ainda assim, há um resto, um quantum de imprevisibilidade que
torna essas práticas fascinantes. Sentimos que, por calejados que eles
sejam, sempre há um momento em que estão andando na corda bamba. E que podem
vacilar, e cair. Esse desafio ao perigo, que existe em todo improviso, do
verso ao jazzístico, é que encanta o público. Não por acaso, esses
cantadores fazem sucesso quando se exibem em palcos ou em praça pública.
Basta ir à Praça da Sé, em São Paulo, para vê-los em ação. Sempre há gente
ao redor.
Assim, se o filme é feliz ao mostrar os improvisadores e sua arte, parece
menos bom ao tentar explicações sociológicas e históricas. A presença,
esporádica é verdade, de "especialistas", como historiadores ou
antropólogos, parece mal colocada. Não se encaixam na proposta e nem
iluminam o fenômeno. Mesmo porque, para fazê-lo, seria necessária uma longa
cadeia de explicações, que remontaria, provavelmente, ao canto medieval e
sua tradição de invenção na hora, as maneiras como chegaram ao Brasil e aqui
se aclimataram, etc. Como o filme não alimenta essa ambição, a sua parte,
digamos assim, "teórica", parece um tanto deslocada. Quebra o ritmo.
Dessa maneira, o melhor mesmo é curtir os versos e os personagens que os
criam, sem se preocupar muito com a busca de origens ou explicações de ordem
sociológica para a canção. Estas caberiam em outro projeto. Que, aliás, já
foi esboçado em Palavra (En)Cantada, de Helena Solberg.
Serviço
Versificando (Brasil/2009, 52 min.) - Documentário. Dir. Pedro Caldas.
Livre. Cotação: Regular
Simonal, Titãs, Vanzolini, Raul: a atual tendência é de documentários
musicais
Lauro Lisboa Garcia
Durante um bom tempo a memória da música brasileira ficou relegada a certos
nichos, como museus e acervos particulares. A partir de meados dos anos
1990, o mercado editorial passou a investir com mais dedicação em biografias
e songbooks de grandes nomes e vertentes da MPB. Com igual intensidade o
cinema abraçou o filão nesta década. Sempre se fez filmes sobre música
brasileira, mas atualmente há uma tremenda "ebulição", como diz Walter
Carvalho, que está rodando um documentário sobre Raul Seixas. Hoje estreiam
na cidade Versificando, de Pedro Caldas, e Patativa do Assaré - Ave Poesia,
de Rosemberg Cariry (leia críticas ao lado).
O forte de Patativa do Assaré (1909-2002) era o verso falado, mas ele também
foi cantador e teve pelo menos dois importantes poemas musicados: A Triste
Partida - grande êxito na voz de Luiz Gonzaga (1912-1989) - e Vaca Estrela e
Boi Fubá, propagado por Fagner, clássicos sobre o flagelo da seca no
Nordeste e a triste sina dos retirantes. Além desses, há outros dois
documentários musicais nacionais em cartaz: Simonal - Ninguém Sabe o Duro
Que Dei, de Claudio Manoel, Micael Langer e Calvito Leal, e Titãs - A Vida
Até Parece Uma Festa, de Branco Mello e Oscar Rodrigues Alves.
O crítico Amir Labaki, idealizador do festival É Tudo Verdade, diz que os
filmes mais procurados do evento são os relacionados a música, como Simonal,
exibido em primeira mão na edição de 2008. Em 2004, detectando uma tendência
de crescente interesse do público por esse tipo de produção, Labaki
organizou a mostra retrospectiva Ver a Música. "Fizemos uma pesquisa com
cineastas e críticos de música para eleger os dez clássicos brasileiros do
gênero", lembra. Maria Bethânia, a preferida dos documentaristas (leia
abaixo), estrelava dois dos títulos eleitos.
"Nessa retrospectiva a gente afirmou que há uma tradição importante no
cinema brasileiro de fazer retratos ligados à música, desde Nelson
Cavaquinho, feito por Leon Hirszman em 1969. Mas cadê o documentário sobre
Pixinguinha? E João Gilberto? Apesar de ter uma tradição, não há grandes
documentários apresentando esses personagens para o grande público", diz o
crítico. "Há ainda um continente a ser descoberto, este País é riquíssimo em
música. Então, hoje, que a produção em geral do documentário cresceu, é
natural que se haja um número maior de filmes desse gênero sobre música."
Além disso, Labaki aponta um dado importante de mercado que é o filme sobre
Vinicius de Moraes, de Miguel Faria Junior, de 2005. "Vinicius é o
documentário brasileiro de maior sucesso recente. Conseguiu mais de 250 mil
pessoas em salas de exibição, o que para documentário brasileiro nos últimos
15 anos é um número bastante forte. Além disso, deve ser um dos que mais
venderam DVD. Nelson Freire (de João Moreira Salles) não foi grande sucesso
em sala, mas também vendeu bem em DVD."
Para Roberto Berliner - realizador do premiado A Pessoa É Para o Que Nasce
(sobre as Ceguinhas de Campina Grande) e sócio da produtora TV Zero, que
realizou Simonal -, o importante para despertar maior interesse do público é
retratar artistas que tenham uma boa história para ser contada. "O filme de
Martin Scorsese sobre os Rolling Stones, Shine a Light, foi um fiasco de
bilheteria. Eram shows muito bem filmados, com as melhores câmeras, tudo
perfeito, com tudo pra dar certo. E não deu. Porque só a música não basta.
Sem uma história forte não rola."
O que não falta para o cineasta Walter Carvalho, que codirigiu Cazuza - O
Tempo Não Para, com Sandra Werneck, é componente dramático na biografia de
Raul Seixas (1945-1989). "É um personagem trágico, muito complicado. Por
isso dei o nome do filme de O Início, o Fim e o Meio, tirado de uma música
dele. Não queria terminar o filme como ele terminou", conta. Ele já
entrevistou 54 pessoas e retoma a empreitada no segundo semestre.
Carvalho acredita que haja uma "coincidência" nessa ênfase do cinema
brasileiro atual em contar a história de cantores, grupos e compositores.
Mas aponta também como fator importante as facilidades tecnológicas, com
suportes eletrônicos digitais, para se trabalhar com os arquivos de imagens
e na própria filmagem complementar.
Ele ainda não viu Waldick - Sempre no Meu Coração, mas diz que adorou que
Patrícia Pillar o tenha feito. "Imagina se ela fosse esperar conseguir
patrocínio para fazer um filme em 35 mm, em 16 mm. Não faria. O fato de
poder contar com uma tecnologia mais acessível - pelo menos na captação,
depois você se vira -, possibilitou que ela se aproximasse de Waldick
Soriano." Carvalho lembra que desde as expedições de Mario de Andrade
(1893-1945) pelo Nordeste, já havia "uma vontade de trazer a questão da
música popular" do Brasil.
Wladimir Carvalho, irmão de Walter, volta suas lentes para o rock de
Brasília, centrado em Renato Russo. Tom Jobim, Humberto Teixeira, Herbert
Vianna, Bezerra da Silva, Novos Baianos, Nana Caymmi, Elza Soares, Demônios
da Garoa e Miltinho estão entre os retratados em outras produções (leia
quadro ao lado). Daqui a duas semanas entra em cartaz Um Homem de Moral, de
Ricardo Dias, sobre o compositor e cientista Paulo Vanzolini. Em junho
também chegam às telas o ótimo Lóki, de Paulo Henrique Fontenelle, sobre o
mutante Arnaldo Baptista, e Cantoras do Rádio, de Gil Baroni e Marcos
Avellar, com Carmélia Alves, Violeta Cavalcanti, Carminha Mascarenhas e
Ellen de Lima.
A linguagem predominante no setor é dos documentários de longa-metragem, mas
há também os curtas (leia na página ao lado) e biografias dramatizadas em
caprichadas produções, como Noel - Poeta da Vila, de Ricardo Van Steen
(recém-lançado em DVD para venda), e Cazuza - O Tempo Não Para. O maior
sucesso nesse setor foi 2 Filhos de Francisco, a tocante história da dupla
sertaneja Zezé Di Camargo e Luciano filmada por Bruno Silveira. Lançado em
2005, o filme foi visto por 5,4 milhões de espectadores, campeão de
bilheteria absoluto do gênero.
Com orçamento bem mais modesto e dependentes da vontade dos distribuidores,
os documentários não seguem a mesma tendência. "Mas Simonal teve um boca a
boca muito forte, foi ?comprado? pela imprensa e está indo bem de
bilheteria, principalmente no Rio. Com isso, de alguma maneira as pessoas
passam a olhar o documentário de maneira diferente", diz Berliner. "Simonal
teve uma repercussão que raros documentários brasileiros têm e conseguiu uma
inserção de mercado também raríssima, com exibição em mais de dez salas em
São Paulo", aponta Labaki. Para Berliner "é muito saudável tudo isso que
está acontecendo". "Porque estamos dando a esses artistas o espaço nobre que
eles mereciam." colaborou Luiz Zanin Oricchio
MPB Nas Telas
EM CARTAZ
Patativa do Assaré - Ave Poesia, de R. Cariry
Simonal - Ninguém Sabe o Duro Que Dei, de Claudio Manoel, Micael Langer e
Calvito Leal
Titãs - A Vida Até Parece Uma Festa, de Branco Mello e Oscar R. Alves
Versificando, de P. Caldas
PARA ESTREAR
Cantoras do Rádio, de Gil Baroni e Marcos Avellar
Um Homem de Moral (Vanzolini), de Ricardo Dias
Lóki (Arnaldo Baptista), de Paulo Henrique Fontenelle
Herbert de Perto, de Roberto Berliner e Pedro Bronz
Onde a Coruja Dorme (Bezerra da Silva), de Marcia Derraik e Simplício Neto
O Homem Que Engarrafava Nuvens (Humberto Teixeira), de Lírio Ferreira
O QUE VEM POR AÍ
A Música Segundo Tom Jobim, de Nelson Pereira dos Santos
Melodies Between Worlds (Nana Caymmi), de Georges Gachot
O Início, o Fim e o Meio (Raul Seixas), de Walter Carvalho e Evaldo Mocarzel
Filhos de João - Admirável Mundo Novo Baiano, de Henrique Dantas
Maysa - Quando Fala o Coração, de Jayme Monjardim
DESTAQUES EM DVD
Noel - O Poeta da Vila, de Ricardo Van Steen (foto)
O Mistério do Samba, de Carolina Jabor e Lula Buarque de Hollanda
Brasileirinho - Grandes Encontros do Choro Contemporâneo, de M. Kaurismäki
Fabricando Tom Zé, de Décio Matos Jr.
Cartola - Música Para os Olhos, de Lírio Ferreira e Hilton Lacerda
Paulinho da Viola - Meu Tempo É Hoje, de Izabel Jaguaribe
Nelson Freire - Um Filme Sobre Um Homem e Sua Música, de João Moreira Salles
Vinicius, de Miguel Faria Jr.
Cazuza - O Tempo Não Para, de Sandra Werneck e Walter Carvalho