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Caetano Veloso "na infância da velhice"

22/05/2009

 

 

Foto: Fernando Young

 

por Giuliano Cedroni*

É assim que Caetano Veloso se mostra do alto de seus 66 anos: como se tivesse acabado de nascer – de novo. Em turnê pelo país com Zii e Zie, seu novo álbum de rock, está otimista com o Brasil de Lula, FHC, Serra, Dilma, Aécio, Ciro...

Caetano Veloso morreu. Também sinto muito... Aquele do tropicalismo, aquele dos Doces Bárbaros, do Cinema Falado, de Transa e Joia, que já não era o mesmo de Verdade Tropical nem de Qualquer Coisa... Aquele Caetano morreu. O Caetano dos ternos bem cortados, da apresentação no Oscar, da Paula Lavigne... Kaput. Talvez ainda reste um pouco do Caetano de Sampa, de Fina Estampa e Cê... Se bem que também não. O Caetano de hoje, mesmo, já não é nem o Caetano da entrevista que você tem em mãos, feita no fim de abril. O Caetano de hoje é o novo, e o novo é para poucos.

Um dos artistas mais completos em atividade no Brasil, Caetano está, segundo o próprio, entrando na “infância da velhice”. E está muito à vontade com isso. Nada de lipo, botox ou tinta no cabelo. No lugar de camisas peroladas, uma jaqueta jeans rasgada. No lugar de sapato bico fino, tênis baixo. E o baiano nunca esteve tão bonito...

Aos 66 anos, avô duas vezes, Caetano Emanuel Vianna Telles Velloso acaba de lançar seu álbum de número 42, o Zii e Zie. Musicalmente é uma continuação do anterior Cê, com a mesma jovem banda intitulada... Cê. Mas as letras deste de nada lembram as daquele. Se em Cê ele registrava sua separação de Paula Lavigne, mãe de dois filhos seus, agora ele canta Guantánamo, Leblon, Lapa, Lula, FHC, canta também outras mulheres e sobretudo o acerto do rock. Em todos os sentidos.

Caetano recebeu PODER num estúdio de som onde ensaiava para a turnê que tinha sua estreia marcada pra dali uma semana. Rodeado por garotos – sua banda é formada por três jovens músicos, dentre eles o brilhante guitarrista Pedro Sá –, o tropicalista consegue a difícil façanha de transitar entre a juventude sem parecer ridículo. Ao contrário, Caetano tem no olhar o brilho de um menino faminto por novas aventuras, com a diferença de que agora é senhor de seu próprio destino. Falou com pressa, afinal precisava ensaiar, e nesse momento de sua vida nada é mais importante que sua música. Críticas, mídia, flashes, nada disso é relevante. Isso sim é poder. E para lhe adocicar a boca entre uma resposta e outra, a mesma Coca-Cola de sempre.

Veloso falou de Cê & FHC, de Lula & Obama, de Veja & Daslu, de Mangabeira & Gabeira e de como ele próprio “não seria ninguém sem o samba”. Ouvindo-o, me dei conta de que seu maior poder é o de se reinventar. Poderia fazer como a maioria e criar mais do mesmo, nadando nas águas tranquilas de quem domina um único estilo, um único discurso. Todos os seus colegas fazem isso, até mesmo seu mestre João Gilberto. Mas não. A cada novo movimento artístico lançado, Caetano se arrisca e chega junto. Foi assim com o rock dos anos 80, com o mangue, o rap, o funk carioca. Sem mencionar o baião, o forró, o folk, o axé, o sertanejo, o jazz, o coco.

Não tem jeito, Caetano não censura nem tem censura. Sofre da total falta de preconceitos, o que talvez explique o talento de se repensar de forma verdadeira e periódica. Poucos músicos de destaque no mundo conseguem tal proeza. Podemos contar nos dedos: Dylan, Madonna, David Bowie, Byrne. Talvez Bono, quando não está tentando salvar o mundo. No Brasil só mesmo Tom Zé. Zii e Zie vem para provar isso – mais uma vez. E prova também que o garoto de Santo Amaro da Purificação chegou num altar no qual não se trata tanto do resultado e sim do processo. His journey is the destination. Enquanto o camaleão estiver interessado em novos olhares, novos cortes de cabelo, novas gírias... estaremos salvos. Caetano é o satélite avançado que filtra o melhor do novo e nos devolve em ondas clássicas. É o surfista prateado do Brasil. Em um aforismo irresponsável, é o próprio Brasil.

“Acho melhor ser do que não ser.” A frase, que talvez resuma a si próprio, foi dita num jardim de bambus no Japão, quando Caetano excursionava com o álbum A Foreign Sound. A cena foi incluída no corte final de Coração Vagabundo, documentário de Fernando Grostein Andrade que segue o baiano por shows em São Paulo, Nova York, Tóquio e Osaka. Com estreia marcada para julho deste ano, o filme traz um retrato inédito do artista em um momento de profunda transição que, de certa forma, culminou em Zii e Zie. “Eu sou do sol, quero ser lúcido e feliz”, declara. E é assim que ele se mostrou na entrevista a seguir, lúcido e feliz.
 

PODER: No seu novo álbum, tem-se a impressão de que o som é mais calmo, mas, ao mesmo tempo, as letras são mais amplas e fortes que em Cê. É isso mesmo?
CAETANO: Não sei se as letras são mais fortes, mas seguramente são mais amplas. Cê é muito restrito, quase que um tema só. É uma letra, né? C...
 

PODER: Você já tocou com bandas grandes e músicos consagrados. Agora está com três garotos. Como tem sido a experiência?
C: Muito boa. Eles são muito, muito bons e nosso diálogo é muito claro. O gosto musical, a decisão a respeito de arranjos, a escolha de canções – qualquer coisa que um de nós diga, os outros três entendem logo. Não há nem tempo para pensar em como funcionam as diferenças, entendeu? É muito imediata nossa comunicação: fala, a gente sabe; toca, já entende.
 

PODER: Na canção “Falso Leblon”, você faz uma descrição interessante da cultura de baladas, ecstasy e maconha. Voltou a se interessar pela boemia jovem?
C: Eu nunca me desinteressei dela. Mas não gosto de drogas. Odeio cocaína. Tudo: odeio a maneira como as pessoas aspiram, odeio o fedor do corpo de quem cheira. Odeio a cultura de economia paralela ilegal que cresceu por causa do consumo da cocaína. Da boemia, me interessam as pessoas.
 

PODER: Com o aparecimento das drogas sintéticas, o consumo de cocaína teria diminuído. Mas, agora, os números indicam que voltou com tudo. Você sente isso nas suas andanças pela jovem boemia?
C: Eu ouvi falar isso que você está dizendo. E fico triste. Veja a cocaína em forma de crack, por exemplo. O crack é o único negócio que me balança. Seu efeito é muito rápido e destrói muita gente pobre e desavisada. Seu aparecimento abalou minha decisão de princípio, que é ser a favor da legalização das drogas.
 

PODER: Outro dia, você escreveu no seu blog: “Folha, Veja, Fasano, Daslu, Sala São Paulo, Museu da Língua Portuguesa. Tudo isso faz pensar o quanto Sampa é influente e interessante”. Não é novidade que você tem uma relação conflituosa com a Veja. Mesmo assim acha que a revista faz de São Paulo uma cidade mais interessante?
C: Não há dúvida e isso não depende de concordância. Mas não estava ali fazendo qualquer julgamento moral ou político. Muita gente ficou ofendida por eu incluir não a Veja, mas a Daslu e até o Fasano. Eu acho a Veja mais complicada do que a Daslu. Mas não estava preocupado com isso. É apenas uma lista de coisas que mostram a força da cidade.
 

PODER: Veja criticou duramente seu novo disco...
C: Eu não li. Até quero ler. Eu leio a Veja às vezes, sabia? Quando viajo de avião eu compro. Porque é uma revista boa, dá pra ler. A gente fica com raiva de umas coisas, ri de outras. Você tem a Veja que fala do nosso disco, Pedro [Sá, guitarrista da banda]?. Me empresta? Eu vi você falar um pouco mas não sei o conteúdo...
 

PODER: No release do álbum à imprensa, você diz que o disco saúda a era FHC-Lula e a ambição do Brasil de ter uma ascendência no cenário internacional. Ao mesmo tempo, estamos vivendo um período de descrença nos políticos...
C: Uma descrença nos nossos parlamentares, né? Por outro lado, nunca vi político tão bem aprovado e tão bem equilibrado quanto o Lula. FHC, enquanto foi bem avaliado pela população, também era assim. O aspecto ideológico, a ideia de melhorar a sociedade, isso veio com a esquerda – que sempre esteve muito descolada da prática real. O Lula faz bem essa jogada de representar os anseios da esquerda e ser superpragmático. Ele e FHC marcam um nível muito elevado entre governantes.
 

PODER: No passado, eram da mesma turma.
C: No conjunto, é muito bom que FHC tenha vencido as eleições por causa da criação do Plano Real, e que Lula tenha mantido isso. Acho muito cafona o José Dirceu falar em herança maldita, já que o governo Lula continuou a política econômica que foi instaurada antes. Henrique Meirelles é uma figura mais representativa daquilo que Lula combatia quando estava na oposição do que qualquer outra do governo FHC. O antagonismo PT-PSDB é superficial, eleitoral e fingido de ambas as partes. Tudo bem, política tem esses componentes também, mas não submeto minha observação a essa mascarada
 

PODER: Esses aspectos são mais importantes do que a discussão da lama no Congresso?
C: O Brasil produziu figuras políticas como Marina Silva e Fernando Gabeira. São figuras que, independentemente do que vem acontecendo no plano mais genérico, têm uma responsabilidade ética, têm ideias às quais devem lealdade. E são acompanhadas, conscientemente, por grandes grupos da sociedade. Isso é uma coisa nova, boa, diferentemente do acompanhamento meramente fisiológico e do acompanhamento ao estilo torcida ideológica, como a esquerda fazia antes.
 

PODER: Você parece otimista diante do nosso cenário político...
C: Estou dizendo que esses aspectos são melhores do que esses outros, horrendos, de que todo o mundo fala.
 

PODER: A farra das passagens aéreas no Senado acabou atingindo o próprio Gabeira. Acha que ele se saiu bem fazendo um mea-culpa?
C: Gabeira agiu como sempre age. É até muito notável que ele seja parlamentar há tanto tempo e tão pouco da cultura atrasada politicamente o tenha contaminado. Todos no Brasil sabem quem é o Gabeira. E a Marina Silva também – é um grande quadro. Depois, é importantíssimo que o Lula tenha finalmente convidado o Roberto Mangabeira [Unger] para o governo.
 

PODER: Você o apoiava antes, não é?
C: Desde os anos 80 que apoio o Mangabeira. A imprensa se recusava a botar minhas declarações. Por mais de dez anos cortaram o nome dele das minhas entrevistas. Você que é da imprensa deve dizer: não é inacreditável?
 

PODER: Se te dessem poder para mudar a estrutura política do país, você teria hoje alguma ideia aprumada do que fazer?
C: Não, mas o Roberto Mangabeira tem. Não estou dizendo que suas ideias se tornariam benéficas – mas ele tem ideias e elas são interessantes.
 

PODER: O que você achou da sugestão, um tanto irônica, do senador Cristovão Buarque de fazer um plebiscito para decidir se o Congresso deve ou não continuar existindo?
C: Não sou muito plebiscitarista não. Porque você não pode ficar fazendo plebiscito para tudo, senão vira a ditadura da maioria. Não é assim. Mas eu gosto de Cristovão, acho ele bacana, aquela ênfase na educação... É um velho negócio brasileiro, isso de que a educação vai resolver tudo. É importante mesmo. Se alguém pegar esse assunto com garra e disser que vai botar isso para funcionar, pode representar uma grande mudança para o Brasil. Agora, isso de plebiscito para ver se tem ou não Congresso, não acho interessante. Tem de mudar as regras a partir de como elas são. Congressista não tem de ter muita vantagem, tem de ter é desejo de contribuir. Sua atuação não deveria representar uma subida na escala social e econômica. Não deveria ter esse apelo. Você deveria querer ser deputado para contribuir na organização das coisas.
 

PODER: O cenário das próximas eleições para presidente apresenta até agora quatro candidatos: Serra, Aécio, Dilma e Ciro. Tem alguma preferência?
C: Não. Já votei no Ciro. Gosto dele desde que foi prefeito de Fortaleza. Mas, quanto mais se aproximou do poder central, mais apareceram nele características que me deixariam preocupado caso ele tivesse poderes mais amplos. Eu o achei um pouco destemperado e um pouco como se estivesse deslumbrado demais consigo mesmo. Sinto dizer isso, porque quero bem a ele demais. Eu o sinto de longe como um amigo. Estou dizendo isso com sinceridade. Agora, de alguma forma, Lula está certo: os candidatos são todos bons, todos de esquerda. Não acho que ser de esquerda é necessariamente bom, não. Mas, no caso dos quatro, são quatro bons candidatos de esquerda.
 

PODER: Vivemos hoje uma terrível crise financeira mundial e uma das grandes frases do Lula sobre o assunto foi aquela em que, ao lado do primeiro-ministro Gordon Brown, culpou os brancos de olhos azuis. O que achou da declaração?
C: Li um artigo da Maureen Dowd, do New York Times, que achei muito interessante. Até traduzi e botei no meu blog. Apesar de dizer que o Lula estava querendo competir com o papa em falar besteira (o papa tinha dito que a camisinha espalha a Aids), ela termina constatando que a sua fala tinha tocado em um nervo sensível e real. Lula tem isso, né? Ele está sempre correndo o perigo de passar do limite. Tem realmente uma intuição rica e profunda. A história dele, a personalidade, tudo contribui para que ele tenha isso.
 

PODER: Na semana seguinte Obama o encontra e diz que ele é o cara...
C: This is my man! E depois fala que ele é boa pinta. Não é, né?...
 

PODER: Qual o sentido de um sujeito como Obama assumir a Presidência dos EUA?
C: Tem um valor simbólico tal como o caso de Lula e, por outro lado, significa de fato a disposição da revolução americana, que é uma revolução em curso. Os EUA são um país revolucionário. E que permanece fiel aos princípios da sua revolução, na medida do possível. A eleição de Obama vai contra tudo o que Bush representou e que estava já demasiado longe dos ideais da revolução.
 

PODER: Com Obama, os EUA estão tentando se reinventar. O Brasil também tem essa capacidade?
C: O Brasil tem mostrado ao longo do tempo muita incompetência. Mas desenvolveu uma superação disso que aos meus olhos é consideravelmente rápida. Você devia ler – e recomendar a todos que lessem – uma entrevista recente do Mangabeira na Gazeta Mercantil. Ele fala sobre como uma crise pode ser uma oportunidade para o Brasil. Eu, de minha parte, observo que o Brasil partiu de situações bastante desvantajosas e convive com situações especialmente desvantajosas. O próprio fato de falarmos português é uma enorme desvantagem comparativa. No entanto, é também uma bênção. Se não tivessem sido os portugueses os colonizadores do Brasil, não haveria o samba. E eu não posso me imaginar sem o samba. Nem a mim, nem ao Oscar Niemeyer, nem a Marilena Chauí.
 

* O jornalista e roteirista Giuliano Cedroni é diretor de conteúdo da Prodigo Films. Ele assina o roteiro de Coração Vagabundo, documentário sobre Caetano Veloso com estreia marcada para julho.

(© Poder)


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