Foto: Fernando Young
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por Giuliano Cedroni*
É assim que Caetano Veloso se mostra do alto de seus 66 anos: como se
tivesse acabado de nascer – de novo. Em turnê pelo país com Zii e Zie, seu
novo álbum de rock, está otimista com o Brasil de Lula, FHC, Serra, Dilma,
Aécio, Ciro...
Caetano Veloso morreu. Também sinto muito... Aquele do tropicalismo,
aquele dos Doces Bárbaros, do Cinema Falado, de Transa e Joia, que já não
era o mesmo de Verdade Tropical nem de Qualquer Coisa... Aquele Caetano
morreu. O Caetano dos ternos bem cortados, da apresentação no Oscar, da
Paula Lavigne... Kaput. Talvez ainda reste um pouco do Caetano de Sampa, de
Fina Estampa e Cê... Se bem que também não. O Caetano de hoje, mesmo, já não
é nem o Caetano da entrevista que você tem em mãos, feita no fim de abril. O
Caetano de hoje é o novo, e o novo é para poucos.
Um dos artistas mais completos em atividade no Brasil, Caetano está,
segundo o próprio, entrando na “infância da velhice”. E está muito à vontade
com isso. Nada de lipo, botox ou tinta no cabelo. No lugar de camisas
peroladas, uma jaqueta jeans rasgada. No lugar de sapato bico fino, tênis
baixo. E o baiano nunca esteve tão bonito...
Aos 66 anos, avô duas vezes, Caetano Emanuel Vianna Telles Velloso acaba
de lançar seu álbum de número 42, o Zii e Zie. Musicalmente é uma
continuação do anterior Cê, com a mesma jovem banda intitulada... Cê. Mas as
letras deste de nada lembram as daquele. Se em Cê ele registrava sua
separação de Paula Lavigne, mãe de dois filhos seus, agora ele canta
Guantánamo, Leblon, Lapa, Lula, FHC, canta também outras mulheres e
sobretudo o acerto do rock. Em todos os sentidos.
Caetano recebeu PODER num estúdio de som onde ensaiava para a turnê que
tinha sua estreia marcada pra dali uma semana. Rodeado por garotos – sua
banda é formada por três jovens músicos, dentre eles o brilhante guitarrista
Pedro Sá –, o tropicalista consegue a difícil façanha de transitar entre a
juventude sem parecer ridículo. Ao contrário, Caetano tem no olhar o brilho
de um menino faminto por novas aventuras, com a diferença de que agora é
senhor de seu próprio destino. Falou com pressa, afinal precisava ensaiar, e
nesse momento de sua vida nada é mais importante que sua música. Críticas,
mídia, flashes, nada disso é relevante. Isso sim é poder. E para lhe
adocicar a boca entre uma resposta e outra, a mesma Coca-Cola de sempre.
Veloso falou de Cê & FHC, de Lula & Obama, de Veja & Daslu, de Mangabeira
& Gabeira e de como ele próprio “não seria ninguém sem o samba”. Ouvindo-o,
me dei conta de que seu maior poder é o de se reinventar. Poderia fazer como
a maioria e criar mais do mesmo, nadando nas águas tranquilas de quem domina
um único estilo, um único discurso. Todos os seus colegas fazem isso, até
mesmo seu mestre João Gilberto. Mas não. A cada novo movimento artístico
lançado, Caetano se arrisca e chega junto. Foi assim com o rock dos anos 80,
com o mangue, o rap, o funk carioca. Sem mencionar o baião, o forró, o folk,
o axé, o sertanejo, o jazz, o coco.
Não tem jeito, Caetano não censura nem tem censura. Sofre da total falta
de preconceitos, o que talvez explique o talento de se repensar de forma
verdadeira e periódica. Poucos músicos de destaque no mundo conseguem tal
proeza. Podemos contar nos dedos: Dylan, Madonna, David Bowie, Byrne. Talvez
Bono, quando não está tentando salvar o mundo. No Brasil só mesmo Tom Zé.
Zii e Zie vem para provar isso – mais uma vez. E prova também que o garoto
de Santo Amaro da Purificação chegou num altar no qual não se trata tanto do
resultado e sim do processo. His journey is the destination. Enquanto o
camaleão estiver interessado em novos olhares, novos cortes de cabelo, novas
gírias... estaremos salvos. Caetano é o satélite avançado que filtra o
melhor do novo e nos devolve em ondas clássicas. É o surfista prateado do
Brasil. Em um aforismo irresponsável, é o próprio Brasil.
“Acho melhor ser do que não ser.” A frase, que talvez resuma a si
próprio, foi dita num jardim de bambus no Japão, quando Caetano excursionava
com o álbum A Foreign Sound. A cena foi incluída no corte final de Coração
Vagabundo, documentário de Fernando Grostein Andrade que segue o baiano por
shows em São Paulo, Nova York, Tóquio e Osaka. Com estreia marcada para
julho deste ano, o filme traz um retrato inédito do artista em um momento de
profunda transição que, de certa forma, culminou em Zii e Zie. “Eu sou do
sol, quero ser lúcido e feliz”, declara. E é assim que ele se mostrou na
entrevista a seguir, lúcido e feliz.
PODER: No seu novo álbum, tem-se a impressão de que o som é mais
calmo, mas, ao mesmo tempo, as letras são mais amplas e fortes que em Cê. É
isso mesmo?
CAETANO: Não sei se as letras são mais fortes, mas seguramente são
mais amplas. Cê é muito restrito, quase que um tema só. É uma letra, né?
C...
PODER: Você já tocou com bandas grandes e músicos consagrados.
Agora está com três garotos. Como tem sido a experiência?
C: Muito boa. Eles são muito, muito bons e nosso diálogo é muito
claro. O gosto musical, a decisão a respeito de arranjos, a escolha de
canções – qualquer coisa que um de nós diga, os outros três entendem logo.
Não há nem tempo para pensar em como funcionam as diferenças, entendeu? É
muito imediata nossa comunicação: fala, a gente sabe; toca, já entende.
PODER: Na canção “Falso Leblon”, você faz uma descrição
interessante da cultura de baladas, ecstasy e maconha. Voltou a se
interessar pela boemia jovem?
C: Eu nunca me desinteressei dela. Mas não gosto de drogas. Odeio
cocaína. Tudo: odeio a maneira como as pessoas aspiram, odeio o fedor do
corpo de quem cheira. Odeio a cultura de economia paralela ilegal que
cresceu por causa do consumo da cocaína. Da boemia, me interessam as
pessoas.
PODER: Com o aparecimento das drogas sintéticas, o consumo de
cocaína teria diminuído. Mas, agora, os números indicam que voltou com tudo.
Você sente isso nas suas andanças pela jovem boemia?
C: Eu ouvi falar isso que você está dizendo. E fico triste. Veja a
cocaína em forma de crack, por exemplo. O crack é o único negócio que me
balança. Seu efeito é muito rápido e destrói muita gente pobre e desavisada.
Seu aparecimento abalou minha decisão de princípio, que é ser a favor da
legalização das drogas.
PODER: Outro dia, você escreveu no seu blog: “Folha, Veja, Fasano,
Daslu, Sala São Paulo, Museu da Língua Portuguesa. Tudo isso faz pensar o
quanto Sampa é influente e interessante”. Não é novidade que você tem uma
relação conflituosa com a Veja. Mesmo assim acha que a revista faz de São
Paulo uma cidade mais interessante?
C: Não há dúvida e isso não depende de concordância. Mas não estava
ali fazendo qualquer julgamento moral ou político. Muita gente ficou
ofendida por eu incluir não a Veja, mas a Daslu e até o Fasano. Eu acho a
Veja mais complicada do que a Daslu. Mas não estava preocupado com isso. É
apenas uma lista de coisas que mostram a força da cidade.
PODER: Veja criticou duramente seu novo disco...
C: Eu não li. Até quero ler. Eu leio a Veja às vezes, sabia? Quando
viajo de avião eu compro. Porque é uma revista boa, dá pra ler. A gente fica
com raiva de umas coisas, ri de outras. Você tem a Veja que fala do nosso
disco, Pedro [Sá, guitarrista da banda]?. Me empresta? Eu vi você falar um
pouco mas não sei o conteúdo...
PODER: No release do álbum à imprensa, você diz que o disco saúda
a era FHC-Lula e a ambição do Brasil de ter uma ascendência no cenário
internacional. Ao mesmo tempo, estamos vivendo um período de descrença nos
políticos...
C: Uma descrença nos nossos parlamentares, né? Por outro lado, nunca
vi político tão bem aprovado e tão bem equilibrado quanto o Lula. FHC,
enquanto foi bem avaliado pela população, também era assim. O aspecto
ideológico, a ideia de melhorar a sociedade, isso veio com a esquerda – que
sempre esteve muito descolada da prática real. O Lula faz bem essa jogada de
representar os anseios da esquerda e ser superpragmático. Ele e FHC marcam
um nível muito elevado entre governantes.
PODER: No passado, eram da mesma turma.
C: No conjunto, é muito bom que FHC tenha vencido as eleições por
causa da criação do Plano Real, e que Lula tenha mantido isso. Acho muito
cafona o José Dirceu falar em herança maldita, já que o governo Lula
continuou a política econômica que foi instaurada antes. Henrique Meirelles
é uma figura mais representativa daquilo que Lula combatia quando estava na
oposição do que qualquer outra do governo FHC. O antagonismo PT-PSDB é
superficial, eleitoral e fingido de ambas as partes. Tudo bem, política tem
esses componentes também, mas não submeto minha observação a essa mascarada
PODER: Esses aspectos são mais importantes do que a discussão da
lama no Congresso?
C: O Brasil produziu figuras políticas como Marina Silva e Fernando
Gabeira. São figuras que, independentemente do que vem acontecendo no plano
mais genérico, têm uma responsabilidade ética, têm ideias às quais devem
lealdade. E são acompanhadas, conscientemente, por grandes grupos da
sociedade. Isso é uma coisa nova, boa, diferentemente do acompanhamento
meramente fisiológico e do acompanhamento ao estilo torcida ideológica, como
a esquerda fazia antes.
PODER: Você parece otimista diante do nosso cenário político...
C: Estou dizendo que esses aspectos são melhores do que esses outros,
horrendos, de que todo o mundo fala.
PODER: A farra das passagens aéreas no Senado acabou atingindo o
próprio Gabeira. Acha que ele se saiu bem fazendo um mea-culpa?
C: Gabeira agiu como sempre age. É até muito notável que ele seja
parlamentar há tanto tempo e tão pouco da cultura atrasada politicamente o
tenha contaminado. Todos no Brasil sabem quem é o Gabeira. E a Marina Silva
também – é um grande quadro. Depois, é importantíssimo que o Lula tenha
finalmente convidado o Roberto Mangabeira [Unger] para o governo.
PODER: Você o apoiava antes, não é?
C: Desde os anos 80 que apoio o Mangabeira. A imprensa se recusava a
botar minhas declarações. Por mais de dez anos cortaram o nome dele das
minhas entrevistas. Você que é da imprensa deve dizer: não é inacreditável?
PODER: Se te dessem poder para mudar a estrutura política do país,
você teria hoje alguma ideia aprumada do que fazer?
C: Não, mas o Roberto Mangabeira tem. Não estou dizendo que suas
ideias se tornariam benéficas – mas ele tem ideias e elas são interessantes.
PODER: O que você achou da sugestão, um tanto irônica, do senador
Cristovão Buarque de fazer um plebiscito para decidir se o Congresso deve ou
não continuar existindo?
C: Não sou muito plebiscitarista não. Porque você não pode ficar
fazendo plebiscito para tudo, senão vira a ditadura da maioria. Não é assim.
Mas eu gosto de Cristovão, acho ele bacana, aquela ênfase na educação... É
um velho negócio brasileiro, isso de que a educação vai resolver tudo. É
importante mesmo. Se alguém pegar esse assunto com garra e disser que vai
botar isso para funcionar, pode representar uma grande mudança para o
Brasil. Agora, isso de plebiscito para ver se tem ou não Congresso, não acho
interessante. Tem de mudar as regras a partir de como elas são. Congressista
não tem de ter muita vantagem, tem de ter é desejo de contribuir. Sua
atuação não deveria representar uma subida na escala social e econômica. Não
deveria ter esse apelo. Você deveria querer ser deputado para contribuir na
organização das coisas.
PODER: O cenário das próximas eleições para presidente apresenta
até agora quatro candidatos: Serra, Aécio, Dilma e Ciro. Tem alguma
preferência?
C: Não. Já votei no Ciro. Gosto dele desde que foi prefeito de
Fortaleza. Mas, quanto mais se aproximou do poder central, mais apareceram
nele características que me deixariam preocupado caso ele tivesse poderes
mais amplos. Eu o achei um pouco destemperado e um pouco como se estivesse
deslumbrado demais consigo mesmo. Sinto dizer isso, porque quero bem a ele
demais. Eu o sinto de longe como um amigo. Estou dizendo isso com
sinceridade. Agora, de alguma forma, Lula está certo: os candidatos são
todos bons, todos de esquerda. Não acho que ser de esquerda é
necessariamente bom, não. Mas, no caso dos quatro, são quatro bons
candidatos de esquerda.
PODER: Vivemos hoje uma terrível crise financeira mundial e uma
das grandes frases do Lula sobre o assunto foi aquela em que, ao lado do
primeiro-ministro Gordon Brown, culpou os brancos de olhos azuis. O que
achou da declaração?
C: Li um artigo da Maureen Dowd, do New York Times, que achei muito
interessante. Até traduzi e botei no meu blog. Apesar de dizer que o Lula
estava querendo competir com o papa em falar besteira (o papa tinha dito que
a camisinha espalha a Aids), ela termina constatando que a sua fala tinha
tocado em um nervo sensível e real. Lula tem isso, né? Ele está sempre
correndo o perigo de passar do limite. Tem realmente uma intuição rica e
profunda. A história dele, a personalidade, tudo contribui para que ele
tenha isso.
PODER: Na semana seguinte Obama o encontra e diz que ele é o
cara...
C: This is my man! E depois fala que ele é boa pinta. Não é, né?...
PODER: Qual o sentido de um sujeito como Obama assumir a
Presidência dos EUA?
C: Tem um valor simbólico tal como o caso de Lula e, por outro lado,
significa de fato a disposição da revolução americana, que é uma revolução
em curso. Os EUA são um país revolucionário. E que permanece fiel aos
princípios da sua revolução, na medida do possível. A eleição de Obama vai
contra tudo o que Bush representou e que estava já demasiado longe dos
ideais da revolução.
PODER: Com Obama, os EUA estão tentando se reinventar. O Brasil
também tem essa capacidade?
C: O Brasil tem mostrado ao longo do tempo muita incompetência. Mas
desenvolveu uma superação disso que aos meus olhos é consideravelmente
rápida. Você devia ler – e recomendar a todos que lessem – uma entrevista
recente do Mangabeira na Gazeta Mercantil. Ele fala sobre como uma crise
pode ser uma oportunidade para o Brasil. Eu, de minha parte, observo que o
Brasil partiu de situações bastante desvantajosas e convive com situações
especialmente desvantajosas. O próprio fato de falarmos português é uma
enorme desvantagem comparativa. No entanto, é também uma bênção. Se não
tivessem sido os portugueses os colonizadores do Brasil, não haveria o
samba. E eu não posso me imaginar sem o samba. Nem a mim, nem ao Oscar
Niemeyer, nem a Marilena Chauí.
* O jornalista e roteirista Giuliano Cedroni é diretor de conteúdo da
Prodigo Films. Ele assina o roteiro de Coração Vagabundo, documentário sobre
Caetano Veloso com estreia marcada para julho.