Foto: Heribaldo Martins
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O sergipano
Antonio Carlos Viana
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Em seu quinto livro, Cine Privê, o sergipano Antonio
Carlos Viana conquista o pleno domínio da sua técnica ficcional e perde
totalmente a esperança na humanidade
Francisco Quinteiro Pires
No momento em que conquistou o domínio pleno de sua
técnica, o sergipano Antonio Carlos Viana perdeu a esperança. Coletânea
de 20 contos, Cine Privê é a criação de um homem sem nenhum senso de
humor. Viana está mais impiedoso do que nunca - tanto com os personagens
como os leitores. Não há espaço para a catarse. Hoje, ele vê o mundo
como um conjunto de cabeças doentes e de corações prostrados.
Retirada do livro bíblico de Isaías, a epígrafe de Cine Privê (Companhia
das Letras, 128 págs., R$ 32,50) - "Toda a cabeça está enferma, e todo o
coração abatido" - confirma essa percepção negativa. "Uso a epígrafe
como forma de me disciplinar em relação à temática", diz Viana. "Este é
o meu livro mais pessimista, escrito quando sofria graves problemas de
saúde, por isso os personagens estão vivendo uma situação de
abatimento." Não há motivos para esperança. "Pois o ser humano é capaz
de tudo, até da bondade", diz. "Tentei ver um mundo mais florido, mas
quando escrevo só sai coisa pessimista, isso está dentro de mim."
Quando publica uma obra, Viana é incapaz de se reler. Ele segue o
ensinamento de Graciliano Ramos, que comparou o ato de escrever ao
trabalho das lavadeiras de Alagoas, que só penduram as roupas no varal
depois de lavá-las mais de uma vez. Para o romancista alagoano e para
Viana, a palavra serve para dizer e não para enfeitar ou "brilhar como
ouro falso". Seus contos podem, no início, ter dez páginas, mas não
passarão de três. "Meu crítico interno exige que eu seja conciso", diz.
"O conto é como uma flecha que você atira somente para acertar o alvo,
não pode haver descaminhos."
Todos os contos de Antonio Carlos Viana são construídos pelo ritmo e
pela sonoridade. Ele diz que pensa em certas frases de seus textos por
até quatro meses. "Não é a ideia que conta, mas a estrutura frasal",
diz. "Ela tem que ter um ritmo, pois se a frase final não estiver na
cadência do conto, todo o texto se perde." Os contos despertam em Viana
a vontade de buscar a perfeição.
A obsessão pela frase pode ser vista em Tina e As Forças Cósmicas, que
começa da seguinte maneira: "Odeio pessoas místicas." Ela dá o ritmo
para a história sobre um homem que só quer sexo com Tina, a sua
namorada, para quem as coisas possuem um manto esotérico. Ela acha que
as ações são revestidas por uma liturgia. Depois de muito procurar um
final, Viana se surpreendeu com a dimensão da frase conclusiva: "Até
que, numa noite de lua cheia, três bandidos envenenaram seus cães,
invadiram a casa e depois a seviciaram, num ritual que ela desconhecia."
"Esse é um desprezo absoluto de um ser humano por outro", diz.
Os 20 contos apresentam uma vida em degradação. O sexo é mais um dado
nessa decomposição física e espiritual. "Nunca falo do erotismo feliz."
O texto que dá título à coletânea fala de um homem de idade avançada que
limpa cabines de um cinema pornô. Viana "cola" a voz do narrador à do
personagem. "Assim, parece que os pensamentos são arrancados de dentro
da pessoa." Com esse recurso, e por não haver compaixão pelo destino
alheio nas narrativas curtas de Antonio Carlos Viana, gera-se um misto
curioso de distanciamento e densidade: os leitores ficam nauseados, mas
não conseguem largar a leitura, como já disseram mais de uma vez para o
contista.
Não há expectativa de mudanças. Os caminhos de Cine Privê não têm volta.
Uma vez perdida a inocência, ela não será mais resgatada. Se a
ingenuidade infantil aparece, ela vem carregada de ambiguidade, como em
Minha Avó Inocência. "Esse conto é ambíguo porque não sabemos se o neto
de Inocência contribui, de modo consciente, para a morte da avó." O pai
do menino desejava que Inocência morresse para herdar o dinheiro que ela
deixaria. "Os personagens nunca recuperam a bondade."
(©
Estadão)
O contista condenado à disciplina
Antonio Carlos Viana vendeu até cachorro-quente em posto do INPS para ter
tempo de ler e escrever
Francisco Quinteiro Pires
À semelhança dos santos, os artistas estão condenados a levar, com o tempo,
uma vida ascética. Ao escolher a dedicação integral à literatura - "minha
existência se deu em função da criação ficcional" -, Antonio Carlos Viana
teve de lidar com a disciplina e as privações. Nascido na zona rural de
Sergipe, em 1946, ele descobriu a ficção dentro de um baú de livros
proibidos, mantido em casa. A curiosidade infantil o levou até a saga O
Tempo e o Vento, de Erico Verissimo.
Depois de completar o curso de letras em Sergipe, ele se mudou para o Rio,
onde fez o mestrado. Percebendo-se "cru", foi morar em Teresópolis. Comprou
uma "carrocinha de cachorro-quente" que estacionava, no começo da manhã, em
frente à fila de um posto do antigo INPS (Instituto Nacional de Previdência
Social). Tinha 28 anos, era casado e estava atrás de um tempo maior para ler
e escrever. "Não sei como tive esse rasgo de coragem, mas foi uma
experiência que valeu a pena", diz. "Naquelas madrugadas em que empurrava o
carrinho com a ajuda da minha mulher, eu vi a miséria toda do Brasil, por
isso eu não podia ter esperança." Viana abandonou o trabalho como vendedor
de rua quando publicou o primeiro dos seus cinco livros de contos - Brincar
de Manja (1974), seguido por Em Pleno Castigo (1981), O Meio do Mundo e
Outros Contos (1999), Aberto Está O Inferno (2004) e Cine Privê.
Viana dedicou suas teses acadêmicas às obras do dramaturgo Nelson Rodrigues,
do poeta João Cabral de Melo Neto e do ensaísta e ficcionista Paul Valéry.
Realizou o seu doutorado na Universidade de Nice (França). No mestrado,
Viana estudou a dramaturgia do autor de Vestido de Noiva. "Ele me ensinou
que a tragédia está ligada ao fato de os personagens rejeitarem o próprio
corpo. Eles não aceitam o sexo, querem a pureza." O escritor sergipano diz
que seus contos são dramáticos, por conterem um "fundo social". "A tragédia
é inevitável, o drama pode ser resolvido."
Provocado pela reportagem do Estado, Antonio Carlos Viana admite, no
entanto. que "a miséria social pode transformar o drama em tragédia". E
lembra o enredo do conto de abertura de Cine Privê, que relata a expulsão
pelo poder público de famílias pobres que ocupavam uma área de preservação
ambiental. "Se o governo quisesse, mudaria o enredo dramático de Santana
Quemo-Quemo."
Viana diz que esse conto já estava finalizado, quando assistiu pela
televisão a uma desapropriação em Aracaju. "O que mais me assustou é que o
governo mandou, com a polícia, uma banda de música." As famílias puderam
escutar Amigos para Sempre, enquanto eram desalojadas. Essa cena absurda foi
incluída no enredo. "Pensei muito antes de colocá-la, porque o leitor
poderia pensar que era mentira." Às vezes, a realidade é maior do que a
ficção.
Trecho
Quando seu Manuel volta para casa, Doralice o recebe com nojo na cara. Diz,
mal ele abre a porta, que sente cheiro de bicho no cio, basta ele dobrar a
esquina. Grita que não consegue tomar o café na mesma mesa que ele e vai
para o outro cômodo, onde a filha embola na cama de vento. Cresceu assim,
sem nenhuma autonomia. Ele vai direto para um cercadinho de plástico, toma
um banho preocupado em poupar a água do balde enquanto esfrega energicamente
a bucha no corpo com sabão de coco e ainda dá graças a Deus por estar
empregado. Acontece que a mulher deu para gritar demais com ele ultimamente:
"Sai pra lá, seu Sujismundo". Seu Manuel ficou muito triste. Se ela soubesse
como ele sofre com aquela vassoura na mão e a pet cheia de desinfetante que
ele mesmo prepara, não faria isso. Quando não consegue mais conter a raiva,
seu Manuel retruca na hora: "Pois é a porra dos outros que enche a sua boca
de comida!". Só assim Doralice se cala, ela odeia palavrão.
Depoimentos
Antonio Carlos Viana é desses grandes escritores brasileiros que se escondem
na província e a obra se torna de difícil acesso, mesmo publicada por uma
editora importante. Ele tem o domínio da história curta e sabe desenvolver o
enredo com incrível capacidade. Cine Privê se constitui num desses exemplos,
com uma narrativa habilidosa, fruto de seu domínio técnico. Porque aquilo
que em Viana pode parecer simples é algo que exige domínio e trabalho. Ele
escreve com simplicidade e sofisticação; elabora os elementos internos do
texto - cenas, cenários, diálogos -, mas o resultado chega ao leitor de uma
forma pura, às vezes até ingênua. Se oferece à leitura sem qualquer
dificuldade. É aí que reside sua força principal. Sem dúvida.
RAIMUNDO CARRERO, ESCRITOR E JORNALISTA
Desde Brincar de Manja, em 1974, Antonio Carlos Viana se mantém fiel a
algumas diretrizes básicas, mas pouco a pouco vem alargando os limites de
seu universo ficcional. Seus contos são relatos de pequenas derrotas, de
gente à margem do fluxo principal da vida. Se nos primeiros livros quase
sempre o narrador era uma criança, nos mais recentes a galeria de
personagens se diversifica, e o tema da velhice, da lenta decadência dos
corpos e espíritos, ganha força. Permanece constante a secura do estilo, a
linha narrativa nítida, a trama mínima, a ausência de sentimentalismo. A
adjetivação é parca e de uma precisão clínica. Sua coletânea mais recente,
Cine Privê, contém alguns de seus melhores contos. Em duas narrativas
notáveis, Duas Coxinhas e um Guaraná e O Terceiro Velho da Noite, acontecem
mais peripécias do que é comum em suas histórias. Mais típica da arte de
Viana é O Amor de Isa e Nane, em que o leitor é inteiramente absorvido por
uma história em que, a rigor, nada acontece.
PAULO HENRIQUES BRITTO, POETA E TRADUTOR
Acho que quem primeiro me falou dos contos de Antonio Carlos Viana foi o
Humberto Werneck. Ah! Não lembro se foi o Raimundo Carrero. O fato é que
fui, num salto, ao seu livro Aberto Está o Inferno. Meu Cristo! Viana vai na
veia. No sangue da palavra, assim: Graciliano. Cirúrgico. Cada palavra, um
fogo. Um tiro certeiro. E os ambientes que ele cria? E as sombras
nordestinas? E o coração dos personagens? Trevas e trevas, ave! Desses
escritores raros - que o Brasil tem, amém. E às vezes nem lembra que tem. É
preciso acordarem a gente para que a gente perceba. A lista é infinda, ora
veja: o curitibano Jamil Snege, o chapadense Ricardo Guilherme Dicke, já
falecidos. O poeta paraense Max Martins, morto recentemente. Todos fora do
eixo. E geniais no seu ofício. Toda vez que quero ganhar fôlego
adulto-maduro, releio a obra dessa gente. Grande, grande! Assim como o
sergipano Viana, hoje e sempiternamente.
MARCELINO FREIRE, ESCRITOR
Dizer que os contos de Antonio Carlos Viana são econômicos é dizer pouco. Há
alguns anos, quando o conheci, ele me contou que, terminada a redação de uma
história, ele a erguia no ar e lhe dava "uma boa chacoalhada"; as palavras
supérfluas caíam por terra, e então, só então, a coisa estava feita. Vai
nisso algo do contista nato, avesso às larguezas do romance, bem como do
leitor de João Cabral, que Viana estudou num doutorado distante. Mas não há
como não notar nesse método de finalização algum elemento de dureza, até
mesmo de violência, que surpreende num homem tão contido e cortês e que
talvez provenha da matéria dos contos, infiltrando-se em cada frase, em cada
modulação de tom de seus narradores. Nesse trâmite, a própria violência se
"refina", não se manifesta à bruta, e surpreende o leitor por ângulos
inesperados, quando o pior já parecia ter passado, como num jogo de
perversas caixinhas chinesas que Viana não abandona antes de chegar à
última. Então, só então, o conto está acabado e a coisa está feita.
SAMUEL TITAN JR., CRÍTICO LITERÁRIO(©
Estadão)
Atualização em 07.06.2009:
Criação de um mundo
enfermo
O sergipano
Antonio Carlos Viana se consagra como um dos maiores autores brasileiros
hoje com a coleção de contos Cine privê
Schneider Carpeggiani
carpeggiani@gmail.com
O escritor
sergipano Antonio Carlos Viana também ficou perplexo com a tragédia do
Voo AF 447, no percurso entre Rio de Janeiro e Paris. Mas não só pelos
mortos, também pelo assombro da mídia. “Os sites de notícia ficam
mostrando fotos dos passageiros o tempo inteiro. Por que não mostraram
as fotos dos mortos das cheias recentes aqui no Nordeste? Quando houve
as enchentes em Santa Catarina, os noticiários filmaram galpões cheios
de mantimentos, o que não aconteceu no Piauí. É curioso como a morte tem
relevância pela classe social e até pela região onde a pessoa mora”,
afirmou o autor em conversa com o JC por telefone.
“É por
isso que sou um descrente”, continuou. Tamanha descrença é a bílis do
novíssimo livro de contos Cine privê. A epígrafe é tirada de Isaías e
introduz o conteúdo à nossa frente mais como ameaça do que como convite
– “Toda a cabeça está enferma, e todo coração abatido”. “É exatamente o
que eu sinto em relação ao mundo, que ele está doente. As pessoas estão
se desumanizando”, acredita.
A
desumanização do homem tematiza Cine privê em duas dezenas de histórias
que flagram personagens perdidos num ambiente barra-pesada. Há as
crianças que acompanham, na mesma tarde, seu barraco ser derrubado e sua
mãe enlouquecer, a mulher que paga com o corpo o tratamento nos dentes,
o adolescente que mata a mãe e sai para comer coxinha na padaria, e o
conto-título, que revela o dia a dia de um homem que limpa as cabines de
um cinema erótico e é rejeitado pela esposa evangélica. “Eu escrevo
muitos contos e vou procurando agrupá-los numa temática só. Eu gosto de
construir universos. Minha ideia era reunir uma série de histórias com
final infeliz”.
Cine
privê não é um livro revolucionário por sua técnica e muito menos pela
reviravolta nas histórias – no microcosmo desses personagens há poucas
chances de mudanças. O que impressiona na narrativa de Viana é a
segurança com que ele conduz suas tramas. Em seu texto, não há palavras
fora de lugar, tudo é enxuto, preciso. “Às vezes corto 60% do que
escrevo”, afirma o autor, nos passando a estranha impressão de que
escrever é apagar. É possível traçar diálogos com Dalton Trevisan, com o
melhor de Rubem Fonseca e com O estrangeiro de Camus, no entanto o mal
aqui não é tratado como elemento estrangeiro, mas como o nativo.
O livro
também impressiona pelo ritmo certo que pontua cada uma das histórias.
No conto de abertura Santana queno-queno, a velocidade é vertiginosa
para acompanhar a derrubada da casa e da dignidade dos personagens. Em
seguida, Cine privê é lento, demorado, como se quisesse detalhar cada
uma das cabines que seu personagem principal precisa limpar diariamente.
“Minha fixação pelo ritmo vem da minha leitura de poesia”, explica o
autor, que fez doutorado sobre a obra de João Cabral de Melo Neto.
Cine
privê é a leitura incômoda que posiciona de vez Carlos Viana como um dos
maiores nomes da literatura brasileira hoje.
» Cine
Privê (Antonio Carlos Viana): R$ 32 (preço médio), Companhia das Letras
(©
JC Online)
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