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Sopro de vida no barro

05/06/2009

 

 

Fotos: Pierre Verger/Divulgação

Vitalino tinha 37 anos quando foi fotografado por Verger, antes de ser reconhecido na década de 1950
 
Mostra com 140 fotos do Mestre Vitalino, feitas pelo francês Pierre Verger em 1947, entra em cartaz

Júlio Cavani // Diario

Ao retratar a arte do Mestre Vitalino com imagens em preto & branco, o fotógrafo Pierre Verger faz o barro se confundir tanto com as texturas da pele do escultor quanto com a terra de onde ele retira a matéria-prima usada na modelagem, em uma comunhão de tons que traduz as relações do homem com a natureza e os sentidos culturais e sociais expressos pela tradição das esculturas de cerâmica de Caruaru.

O Instituto Cultural Banco Real inicia uma exposição que apresenta ao público 140 fotos, a maioria inéditas, resultantes do encontro entre os dois artistas.

Foi em 1947 que Pierre Verger (1902-1996) encontrou Vitalino Pereira dos Santos (1909-1963), que ainda não era famoso na época e vivia na informalidade no Alto do Moura, onde produzia as peças junto com seus filhos para vender na Feira de Caruaru. O fotógrafo francês havia acabado de chegar no Brasil e passou seis meses em Pernambuco.

"Vitalino tinha 37 anos em 1947 e só começou a ser reconhecido na década de 1950. O olhar especial de Verger o identificou antes", informa o antropólogo Raul Lody, curador da exposição. Segundo o pesquisador, as fotos formam uma "grade etnotecnológica", pois retratam detalhes de cada passo do processo de produção dos bonecos e animais de barro. Além de ser carregada de expressividade plástica e estética, a série preserva a descrição visual dos procedimentos de extração do barro, a modelagem das figuras, a pintura delas e a comercialização na feira.

Um conjunto de fotos distribuídas em uma mesma parede promove uma espécie de catalogação dos temas clássicos de Vitalino, onde podem ser identificados verdadeiros ícones do imaginário nordestino dos bonecos de barro, como os bois e vacas, os cangaceiros, a ciranda, os músicos populares, os próprios artesãos do barro, o caçador que sobe em uma árvore para atirar em uma onça e outros hábitos e rituais do cotidiano. O escultor também demonstra um desapego em relação ao preservacionismo folclórico ao reproduzir também a presença de elementos modernos em seu meio, como uma motocicleta pilotada por um senhor de chapéu e gravata. "Ele era um repórter de sua realidade", considera Lody.

A exposição tem uma cenografia formada por detalhes em argila e exibe ainda vídeos formados por filmes antigos que registraram a feira de Caruaru e o próprio Mestre Vitalino em movimento, filmados em super 8 por cineastas como Fernando Spencer. Na trilha sonora da sala, o público ouve músicas tocadas pelo próprio Vitalino, que integrava a banda de pífanos Zabumba do Mestre Vicente, gravada na década de 1950 pelo musicólogo Aloysio de Alencar Pinto.

A exposição celebra os 100 anos de Vitalino e envolve ainda um seminário com depoimentos do filho do artista, Manuel, em três palestras nos dias 8 de junho (19h), 8 de julho (19h) e 8 de agosto (10h). Todas as imagens têm formato quadrado, pois Verger sempre fotografava com uma câmera Rolleiflex. Das 140 fotografias da série, pertencentes à Fundação Pierre Verger (Bahia), 109 estão nas paredes e as outras 31 são vistas apenas nos monitores de vídeo. A maioria nunca havia sido revelada e permanecia arquivada em negativos. A figura de uma mão que amassa o barro recebe um destaque especial na mostra, pois sintetiza o ofício do mestre.

Serviço

Exposição Arte do barro e o olhar da arte: Vitalino e Verger
Quando: Em cartaz até 30 de agosto
Onde: Instituto Cultural Banco Real (Avenida Barão do Rio Branco, Marco Zero, Bairro do Recife)
Informações: 3224-1110

(© Diário de Pernambuco)


A arte do barro de Vitalino por Verger

Mostra do ICBR traz 109 fotos de Pierre Verger sobre trabalho do mestre de Caruaru

Flávia de Gusmão

Um encontro de mestres, ambos com a letra V, Vitalino e Verger. Um, artista do barro, o outro, artista da foto etnográfica, ambos afinados com o preto, o branco, o sépia, os dois marcados pelo sentimento de terroir: aquele produto único que se obtém apenas sob ideais condições humanas, topográficas, tecnológicas e climáticas. Impossível de ser repetido em quaisquer outras circunstâncias, pelo menos não da mesma forma. É disso que trata a exposição A arte do barro e o olhar da arte – Vitalino e Verger, que segue em cartaz para visitação pública até o dia 30 de agosto.

A mostra traz 109 fotos assinadas pelo fotógrafo Pierre Verger, que praticamente marcam a estréia dele no Brasil. Apesar de ter escolhido como porta de entrada a cidade de Salvador, que também se tornou sua cidade ‘natal’ e seria sua última parada (ele faleceu na capital baiana em 11 de fevereiro de 1996, aos 94 anos), ele logo veio a Pernambuco (em 1947), onde teve estada relativamente longa: pouco mais de seis meses.

Com a sua icônica máquina Rolleiflex produziu um acervo – que hoje está sob a guarda da Fundação Pierre Verger, em Salvador – de cerca de mil fotografias (a Coleção Pernambuco). Elas são o resumo da força que movia Verger: a paixão pelo retrato, pela captura da singularidade – do indivíduo, dos saberes, do momento. No litoral, fotografou os tipos físicos, edificações, a religiosidade, as profissões, os festejos. Subindo a Serra, em direção a Caruaru, além disso tudo, deparou-se com Vitalino e nos legou a compreensão da dimensão da arte do barro, do processo de amassar com as mãos, modelar, queimar e povoar feiras, coleções, imaginação.

“Nesta exposição, as pessoas sairão encharcadas de Vitalino e Verger”, afirma o antropólogo Raul Lody, curador da Fundação Pierre Verger e também coordenador geral desta exposição no Recife. “Nada está aqui por acaso, tudo é fruto de uma delicada urdidura”, completa. Para apreciar esta coleção praticamente inédita, o visitante irá caminhar por uma trilha de barro e travará com a matéria-prima uma relação multissensorial. A música que o acompanhará neste trajeto é produzida a partir do som dos pífanos – a segunda grande paixão do mestre do barro, que integrava uma banda chamada Zabumba de Mestre Vicente, formada por dois pífanos, sendo o primeiro tocado por ele, o segundo por Manoel Rufino, o tarol por Vicente Teotônio da Silva, o surdo por José Rufino e a zabumba por Pedro Teotônio. A banda de pífanos tantas vezes esculpida pelas mãos do artista. E é esta música, levada na época a propósito de qualquer cerimônia ou festividade, que serve como “trilha sonora”.

Quatro inserts com imagens em movimento (colaboração do cineasta Fernando Spencer) e fotos de Verger repetidas em formatos diferentes, com releitura de closes e variação de ângulos, dão bem a ideia da multiplicidade de olhares contida no olhar de Verger. Mesmo estanques, algumas dessas imagens ganham características de sequência fílmica, tanta a preocupação do fotógrafo de registrar o passo a passo da arte do barro – do buraco cavado no chão para coletar a matéria-prima ao movimento cadenciado das mãos. Se passadas a rápida velocidade, poderiam virar animação. Uma das características de Pierre Verger é que, apesar de se deter sobre um objeto/personagem (barro/artista), ele não esquece de situar o espectador no meio sócio-cultural tridimensionalizado pelo artista. A Feira de Caruaru, por exemplo, patrimônio imaterial do Brasil e cenário vivido com intensidade por Vitalino, ganha uma sequência especial: os homens vestidos com a elegância da época, a montagem das barracas, a diversidade dos produtos, o carinho ancestral pelas figuras de barro.

Numa das fotografias de Verger – a da criança que acaricia com evidente estima um boizinho de barro –, pode ser resumida a própria história de Vitalino Pereira dos Santos. Sua mãe era louceira e vendia utensílios para ajudar no sustento da família. Com as sobras do barro, Vitalino, criança, criava seus animais e figuras humanas para servirem de brinquedo e, por um típico exercício de imitação infantil, acompanhava a mãe à feira e montava a sua própria banquinha para vender a produção. As memórias afetivas, ou a afetividade contida em qualquer memória, são, se não o mote principal de Verger, seguramente o viés por trás do seu registro. O eco de uma delas, por exemplo, veio bater no século 21: o filho de Vitalino, Manuel, foi pura emoção ao se ver retratado criança, como o pai um dia fora, aprendendo o ofício dos bonecos de barro.

“A descoberta de Vitalino se deu num período pós-gerra (2ª Guerra Mundial), quando é natural a busca de referências, de identidades. Era um momento de recuperação da memória”, situa Raul Lody. Hoje, no ano em que se comemora o centenário do artista popular (nascido a 10 de julho de 1909 e falecido em 1963), a exposição do Instituto Cultural Banco Real reafirma a necessidade de preservação desta memória. “Sua maestria possibilitou eternizar no barro moldado, cozido e pintado, as memórias próximas da vida agreste, e com elas a fama e uma valorização no mercado de arte”, resume Raul Lody.

SEMINÁRIO

Durante o período da exposição Arte do barro e o olhar da arte – Vitalino e Verger, o Instituto Cultural Banco Real promove o seminário Encontro com Manuel Vitalino – histórias e memórias de Mestre Vitalino, sob a coordenação de Raul Lody. O seminário acontecerá em três datas distintas e terá três focos. No dia 8 de junho, segunda-feira, às 19h, o público-alvo será formado por profissionais de educação, no dia 8 de julho, também às 19h, artistas plásticos, artesãos e designers serão recebidos para o diálogo e, no dia 8 de agosto, às 10h, é a vez de cineastas, videastas e fotógrafos trocarem idéias sobre a exposição e a arte de Verger e Vitalino. As inscrições são gratuitas e podem ser feitas pelo telefone: 3224-1110.

» Exposição Vitalino e Verger – De 5 de junho a 30 de agosto aberta ao público. Instituto Cultural Banco Real – Av. Rio Branco, 23, Bairro do Recife, fone: 3224-1110.

(© JC Online)


 

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