Documentário e celebrações marcam histórias e lembranças de Patativa
do Assaré, poeta cearense popular gravado por Luiz Gonzaga e Fagner
Monique Cardoso
Fortaleza
As
gaiolas abertas que deixam ao passarinho o direito de escolher se quer ir ou
ficar, como na casa do poeta popular Patativa do Assaré (05/03/ 1909 –
08/06/2002), estão por toda a parte, em instalações artísticas de efeito
visual rústico e geométrico ao mesmo tempo. O universo do repentista,
cordelista e cantador de viola do sertão do Cariri, cujo centenário se
comemora este ano, ilustra os cenários do Festival de Moda do Ceará,
realizado há 28 anos em Fortaleza. Na quarta-feira, a feira recebeu uma roda
de amigos de Patativa para lembrar sua obra. O encontro pega carona nas
atividades do Ano da França no Brasil e a ponte foi feita enquanto Patativa,
gravado por Luiz Gonzaga e Fagner, ainda estava vivo. Em meados dos anos 80
sua obra chegou à cadeira de Literatura Popular Universal, no departamento
de língua portuguesa da Sorbonne. Este mês, o documentário Patativa do
Assaré – Ave Poesia, de Rosemberg Cariry, estreia do Rio e em São Paulo.
Dezenas de ações comemorativas estão programadas até o fim do ano, não só no
Ceará, mas no Rio, em Brasília e São Paulo. Nenhum fora do estado vai contar
com a presença do agricultor Geraldo Gonçalves, 72 anos, filho de Patativa.
Quem circulou pela feira em Fortaleza poderia até se confundir, tamanha a
semelhança com o pai, enfatizada pelo chapéu e os óculos escuros.
– Eu não tenho leitura, só posso falar que ele era um pai maravilhoso,
que não deu estudo aos filhos, mas ensinou o caminho do bem – garante seu
Geraldo, que recorda a rigidez do pai. – Até morrer, mesmo com os filhos
velhos, ele dava bronca e puxava a nossa orelha quando achava que não
agíamos certo.
Com a música e a poesia, Patativa conquistou uma vida melhor para a
família, embora modesta. Um dos poucos bens comprados com os direitos
autorais de suas músicas é a casa que a família mantém em Fortaleza. Embora
se arrisque a cantar entre os amigos, seu Geraldo não se aventurou a seguir
os passos de seu pai.
– Nenhum dos filhos herdou seu dom – comenta. – Ele fazia versos em casa,
junto à família. Fez um poema para mim quando eu tinha 5 anos, mas só
entendi o que significava depois de adulto.
Um dos principais estudiosos de sua obra, o jornalista e professor de
filosofia Cândido BC Neto, diz que o poeta, morto aos 93 anos, nunca foi tão
estudado quanto agora. Com extenso trabalho em cultura popular, BC Neto
destaca que o enfoque sociológico sobre a vida e produção artística de
Patativa tem ganhado mais projeção.
– Seus poemas foram resultado de uma observação precisa da natureza, do
homem, da política, das desigualdades sociais – resume Neto. – Tinha um
nível de conhecimento fantástico do mundo.
Antônio Gonçalves da Silva perdeu o pai ainda criança, ficou cego de um
olho, envelheceu trabalhando no cabo da enxada. Lia, mas não sabia escrever.
Dominava, porém, o vernáculo como poucos em sua terra, a pequena Assaré, no
Cariri, sul do Ceará. Começou a cantar versos ainda criança. Aos 18 anos
ganhou o apelido, Patativa, ave dona de canto melodioso e triste para marcar
seu território. Em 1956 começou a sair do anonimato, quando Luiz Gonzaga
gravou sua toada de retirante Triste partida. O reconhecimento veio no fim
dos anos 70, quando Fagner, um de seus admiradores, o apresentou ao Brasil
numa turnê. O cantor e compositor gravou, entre outras, Sina , de autoria
dele, e produziu seus discos. A visão de mundo de Patativa rompeu as
fronteiras do Cariri graças à capacidade que tinha de reunir admiradores. As
Diretas Já e a reforma agrária são algumas das críticas sociais que ele
tomava como temas.
– Patativa era um poeta engajado, 24 horas, no seu humanismo radical e na
sua imensa sede de justiça e de liberdade – define o cineasta Rosemberg
Cariry.
O documentário Ave poesia, que venceu o Cine Ceará do ano passado, reúne
imagens gravadas por Rosemberg em película e vídeo ao longo de 30 anos. São
apresentações em público, entrevistas e registros de sua vida na roça, com a
mulher, Dona Belinha.
– No segundo semestre, lançaremos o DVD do filme, incluindo extras com
Patativa recitando poemas e uma das visitas que ele faz à casa do meu pai,
onde conta piadas, relembra cantorias e casos – adianta o cineasta.
Em 1998, o professor BC Neto – que, como Rosemberg se tornou amigo de
Patativa nos anos 70 – levou seu nome ao conselho da Universidade Estadual
do Ceará. Na época pró-reitor de extensão, propôs dar-lhe o título de doutor
Honoris Causa. Hoje diversas universidades reconhecem o valor de sua obra,
estudado na Sorbonne na década de 80 por iniciativa do francês Raymond
Cantel, pesquisador do cordel brasileiro. Em Assaré, um memorial guarda o
acervo do poeta e extensa bibliografia sobre ele. A casinha de taipa onde
nasceu acaba de ser restaurada para se tornar o Museu do Poeta Agricultor,
onde estão suas ferramentas de trabalho e as muitas gaiolas que mantinha
abertas.
– É importante observar que Patativa produziu poesia enquanto fato
histórico – define BC Neto. – Agradou do camponês mais humilde aos
intelectuais. No palco, usava a linguagem de matuto, mas tinha um português
perfeito. Conversando com o povo da roça, sempre falava os versos como se
estivesse diante de uma grande plateia.
(©
JB Online)
O mistério do monumento da cultura popular
Rodrigo de Almeida
"A minha rima faz parte das obras da Criação", dizia, décadas atrás, o
poeta Patativa do Assaré, ao tentar explicar a força natural dos poemas que
lhe escorriam dos lábios. Ao seu modo, era um recado duplo, uma demonstração
mista de humildade e altivez. A humildade era imaginar que somente uma
explicação divina daria conta da inspiração saída de um agricultor que
frequentou a escola por apenas quatro meses e, cego de um olho desde a
infância, passaria a ler e produzir versos e músicas pelo resto da vida. (A
visão do outro olho seria perdida na velhice). A altivez: o mérito de elevar
a própria poesia ao campo da Criação. Uma audácia típica de um monumento.
Da vaidade, porém, ele escapava com exemplar hospitalidade. Recebia em
sua casa, praticamente com a mesma graça, de gente inexpressiva como o
signatário a nomes luminares, como o ex-governador Tasso Jereissati, o
jornalista Elio Gaspari e os professores Gilmar de Carvalho e Tadeu Feitosa
(dois dos seus maiores amigos e estudiosos de sua obra).
Mas o que dizer de seu mistério? Patativa pôs no mapa da cultura a
pequena Assaré, reuniu a oralidade dos cantadores com os versos dos bons
poetas, retratou como poucos as aflições que atormentam o sertanejo, deu
grandeza épica ao cotidiano nordestino, virou objeto de teses acadêmicas,
foi midiático e cravou seu nome e sua terra na cultura popular brasileira.
Não fosse o olhar enviesado de quem vê este popular à distância, o ano do
seu centenário seria celebrado com mais fervor.
Ninguém é perfeito: Patativa não chegou aos 100 anos. Morreu aos 92 com
mais de 10 secas nas costas e mil poemas na cabeça. Tinha leitura, mas não
muita. Gostava de Bandeira e Drummond, mas se queixava da falta de métrica e
de rimas: "Assim qualquer garoto faz". Não conhecia João Cabral de Melo
Neto. Aprendeu poesia pela tradição oral, ouvindo um cordel. Aquilo calou
fundo. Embora não militante, não panfletário, fazia uma poesia cidadã. A
terra era sua matéria-prima. O homem, seu protagonista. Mas o melhor aparece
ao falar da beleza da vida: "Saudade é um aperreio/ Pra quem na vida gozou,/
É um grande saco cheio/ Daquilo que já passou."
(©
JB Online)