06/06/2009
Fotos: Nilton Fukuda/AE
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Elenco durante a apresentação do espetáculo Vestido de Noiva, da
obra de Nelson Rodrigues, no Teatro Vivo
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Aclamado texto de Nelson Rodrigues inspira montagem
onírica e musical do diretor mineiro, que traz para o palco a falsa
angústia e o retrato cru da classe média como se fosse um grande ritual
dançado
Ubiratan Brasil
Buzina de automóvel. Rumor de derrapagem violenta. Som de
vidraças partidas. Silêncio. Assistência. Silêncio - o já clássico
começo da peça Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, inspira os
primeiros segundos da montagem dirigida por Gabriel Villela, no Teatro Vivo. Como um anjo, asas nas costas, ou uma
andorinha, Leandra Leal corre em círculos, rodeando os demais
personagens. Ela vive Alaíde, jovem que acaba de ser atropelada e, à
beira da morte, inicia um processo delirante, alternando realidade,
memória e alucinação, estágios que transformaram o texto de Nelson
Rodrigues em marco da dramaturgia brasileira, ao ser encenado pela
primeira vez em 1943.
"Os três planos estão presentes, mas não divididos em níveis, como fez
Ziembinski em 1943", conta Villela. "O espectador é conduzido para cada
um deles por meio de outros recursos, como a iluminação e a
interpretação." Ele também fundiu os dois primeiros atos, separando-os
do último por um intervalo de 15 minutos. "O primeiro e o segundo atos
da peça acontecem dentro da alucinação - a realidade aparece em alguns
momentos por meio de sons do acidente, batimentos cardíacos da
personagem."
Vestido de Noiva foi o primeiro grande texto essencialmente freudiano de
Nelson Rodrigues, pois as cenas de alucinação e memória são frutos, na
verdade, do subconsciente de Alaíde, mulher que vive um triângulo
amoroso com o marido Pedro (Marcello Antony) e a irmã Lúcia (Vera
Zimmermann). Depois de discutir com Lúcia, Alaíde sai de casa e é
atropelada. Desacordada, ela revive momentos de sua vida como o dia de
seu casamento, o assassinato que supostamente teria cometido contra o
marido e os planos de Pedro e Lúcia de matá-la.
Tais lembranças e alucinações são conduzidas por Madame Clessi (Luciana
Carnieli), prostituta considerada o ideal de mulher por Alaíde, cuja
mente é povoada ainda pelas figuras da mãe, dos médicos, dos jornalistas
que cobrem o acidente, das prostitutas do bordel de Clessi - personagens
vividos por outros seis atores do elenco.
A célebre montagem de Ziembinski para Vestido de Noiva apontou novos
caminhos para o teatro brasileiro. Expôs também o talento de Nelson
Rodrigues, que cutucava o inconsciente humano. Afinal, o sexo para seus
personagens encobria vícios e taras que martelavam o moralismo vigente.
"Enquanto o teatro grego partia da virtude, os dramas de Nelson
Rodrigues partiam da mesquinharia, da sordidez humana", conta Villela,
que se baseou no estudo de um de seus mestres, o crítico Sábado Magaldi,
para definir o espírito do espetáculo.
Como já trabalhou com outras duas obras do dramaturgo (A Falecida e
Valsa nº 6), o diretor sentiu-se familiarizado com o melodrama - não o
tradicional, mas aquele observado por Nelson Rodrigues, que reflete um
temperamento típico carioca dos anos 1940, baseado em extravasamentos
emocionais e exibições exageradas de sentimentos. O melodrama, sob esse
ponto de vista, confunde-se com naturalismo.
E, por não repetir a proposta cênica utilizada por Ziembinski, Gabriel
Villela decidiu privilegiar o trabalho do ator e o texto. Assim, ensaiou
durante três meses com o elenco, estabelecendo um processo criativo em
constante evolução. "Foi um período necessário para, no meu caso,
entender perfeitamente as intenções da Alaíde", conta Leandra Leal,
cujas feições de menina se adaptam perfeitamente à complexa personagem,
mulher que sofre por ter traído a própria irmã. "É rica essa questão de
luta interna dos desejos versus o social e a moral", diz a atriz.
O desenvolvimento foi acompanhado de perto por Marcello Antony, que
transformou Pedro em um homem sarcástico. "Um detalhe importante da
montagem é que todos os personagens são fruto das alucinações da Alaíde
- afinal, a peça inteira se passa depois de seu atropelamento", conta o
ator. "Daí o Pedro ser um homem debochado."
A intenção é a mesma do diretor, que buscou uma leve tonalidade circense
para o espetáculo - Antony, aliás, é visto por ele como um intérprete
tipicamente felliniano. Com isso, Villela retoma uma prática que tornou
clássico seu trabalho, que é filtrar a cultura erudita sob o ponto de
vista popular. Conhecido pelo estilo barroco, em que todos os detalhes
da encenação (dos figurinos aos gestos dos atores) parecem
cuidadosamente bordados, Villela transforma sua 22.ª direção teatral em
um trabalho absorvente.
A sonoridade é um dos destaques - basta observar a forma de falar de
Luciana Carnieli no papel de Madame Clessi. Prostituta do início do
século passado, rodeada de homens poderosos, ela profere as palavras com
uma dicção típica dos antigos atores de rádio, em que todas as sílabas
são devidamente pronunciadas. "Gabriel buscou inspiração também em
cantores famosos, como Vicente Celestino, que carregavam a voz de
sentimentos", conta a atriz.
Também Vera Zimmermann utiliza a voz para mostrar a mudança de Lúcia:
"Ela se transforma aos poucos e, como se trata da mulher com véu, as
palavras são sua principal forma de expressão."
Em cena, aliás, os atores cantam e dançam ao som da trilha marcada por
ritmos como tango e bolero. Em certos momentos, a música começa a se
fracionar, acompanhando o acidente da protagonista. "Usamos o efeito de
um disco pulando para fazer referência à memória em decadência", conta
Daniel Maia, que assina a trilha sonora.
Serviço
Vestido de Noiva. 100 min. 14 anos. Teatro Vivo (290 lug.). Av. Chucri
Zaidan, 860, 7420-1520. 6.ª e sáb., 21h30; dom., 19h. R$ 60 e R$ 70
(sáb.). Até 5/7.
Preste atenção...
... nas peças do figurino. Gabriel Villela comprou o material na loja de
uma peruana, em Paris, especializada em casamentos árabes.
... na enorme gravura de uma flor, copo de leite - para Nelson
Rodrigues, era a imagem que melhor inspirava o sexo feminino.
...na trilha de Daniel Maia, que inclui composições próprias e canções
como La Golondrina (versão Trio Los Panchos), La Traviata e a trilha do
filme ...E o Vento Levou.
... no violão quebrado, utilizado pelo personagem Pedro. Foi Marcello
Antony, quem sugeriu o uso de um instrumento abandonado.
...no cenário de J. C. Serroni, que, em vez de separar, funde os famosos
três planos da peça de Nelson Rodrigues: realidade, alucinação e
memória.
(©
Estadão)
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SITES:
NELSON RODRIGUES - 25 ANOS SEM NELSON
Com relação a este tema, saiba mais (arquivo NordesteWeb)
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