Foto: Divulgação
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Há 25 anos, surgia a Mundo Livre S/A, a banda,
que, ao lado de Chico Science & Nação Zumbi, deflagrou o movimento mangue e
pôs Pernambuco no mapa da música pop mundial
José Teles
teles@jc.com.brA Mundo Livre S/A completa 25 anos como uma das bandas
mais respeitadas e influentes do País. Este ano, músicos e fãs comemoram os
15 anos do lançamento do disco Samba esquema noise (Banguela/Warner), que
com Da lama ao caos, de Chico Science & Nação Zumbi, colocaram a música
pernambucana em destaque no mapa da música pop mundial. Liderada pelo
compositor, cantor, cavaquinista, guitarrista e ativista Fred “Zeroquatro”
Montenegro, é uma das poucas bandas engajadas politicamente, mas que não
deixa de lado diversão e arte, espírito que renovam a cada disco. O próximo
já está sendo cerzido bem ao estilo MLS/A: independente, sem a pressão de
diretores artísticos que metem a mão para moldar ao seu gosto o trabalho
alheio.
Mundo Livre S/A possi uma longa história de coerência e alguns paradoxos
nos primeiros capítulos. O líder do grupo, Fred, foi estudante de colégio
militar, em plena ditadura. A idéia de tocar em banda surgiu, em 1982,
enquanto Zeroquatro (os dois últimos números de sua RG) e amigos estavam
assistindo a uma banda de churrascaria, em Piedade, que deixava aos poucos
de ser um balneário de veraneio.
A estreia do grupo aconteceu tocando para amigos numa festa de 15 anos,
num edifício em Candeias, bairro onde moravam e também chamado por eles de
Ilha Grande (pois era distante de tudo). A primeira fita demo foi gravada
num estúdio evangélico: “A gente chegou lá e na porta tinha o aviso: Casa de
Deus. Eu bati na porta e perguntei se Deus estava”, conta Fred Zeroquatro,
que NA época era também chamado pelos amigos pelo apelido de Rato.
O músico lembra que foi naquela churrascaria que tocou pela primeira vez
numa guitarra elétrica. “A turma da gente costumava ir para a praia, curtir
uma e tocar violão. Ali perto havia esta churrascaria que tinha um banda que
tocava músicas de sucesso, porém, tarde da noite, eles mudavam o repertório,
era Rolling Stones, Credence, coisas assim, e aí a gente ia lá e ficava
assistindo. Uma noite o guitarrista perguntou se algum de nós queria tocar
enquanto ele dava uma paradinha, eu subi e toquei. Pisei na pedaleira, era
uma guitarra Gianinni, modelo Les Paul, cantei Hey hey my my, de Neil Young.
Sai de lá com a idéia de montar uma banda. A gente começou a juntar dinheiro
para comprar os instrumentos.”
Aquela não foi a primeira vez que Fred Zeroquatro tocou em público. No
tempo em que sua família morava em Jaboatão Velho, o futuro guitarrista e
cavaquinista da Mundo Livre S/A, com oito anos de idade, apresentou-se para
os pais dos colegas no Clube Jaboatonense tocando piano: “Naquele tempo era
moda os pais quererem que os filhos aprendessem algum instrumento. Tomei
lições de piano, aprendi a ler música. Hoje não sei mais nada, esqueci tudo.
Fui crescendo e me desinteressando desta coisa formal. Dos oito aos 12 anos
ouvia muito música no rádio, Pinduca, Tim Maia. Lembro que meu primeiro
compacto foi dos Golden Boys, com Fumacê”, continua Zeroquatro. Se um disco
mudou o roteiro de uma vida, foi 10 anos depois, de Jorge Ben (ainda sem o
Jor no sobrenome): “Quando ouvi Tábua de esmeralda cismei de aprender
violão”, conta Zeroquatro. Alguns anos mais tarde, outro disco marcante:
London calling, do The Clash.
(©
JC Online)
Zeroquatro quase virou suco
Foto: Eduardo Queiroga
Fred, líder da banda, conta como foram difíceis os primeiros passos antes de
surgir a Mundo Livre. Até ser motoboy em São Paulo estava valendoJosé
Teles
teles@jc.com.br
A Mundo Livre S/A não passava sequer pelo pensamento de Fred Zeroquatro
quando ele compôs a primeira música e passou pelos festivais colegiais. A
primeira melodia foi para uma letra de um amigo surfista, Pepê (Pedro César,
um dos diretores do filme Fábio fabuloso). A segunda, para uma letra de um
amigo do amigo, Marcelo Pereira (hoje editor do Caderno C), para um festival
do Colégio São Luís). Só depois ele montou a primeira banda, com amigos de
Candeias. Era a Trapaça, com Avron (guitarra), Neguinho (baixo). “A gente
fazia um estilo pós-punk, quer dizer, fomos pós antes de ser punks”, ri
Zeroquatro.
O punk foi adotado pela Trapaça graças a Renato Lins, mais tarde Renato L
(atual secretário de Cultura do Recife): “Renato tinha passado no vestibular
de Engenharia, fez uma viagem para São Paulo, e conheceu um pessoal nas
galerias (prédio onde há uma das maiores concentrações de lojas de disco do
mundo) e trouxe de lá os primeiros LPs do punk nacional, Não São Paulo,
Começo do fim do mundo. A música era feita por uma galera que era muito mais
carente musicalmente. E aí regredimos de pós para punks. Foi aí que nasceu a
Serviço Sujo, Renato criou a Sala 101, que era uma referência ao livro 1984.
A gente era os punks da cidade, tinha uma banda em Boa Viagem, mas ninguém
tinha onde tocar. A maioria desistiu”.
Mas havia mais punks na cidade. Zeroquatro descobriu isto quando conheceu
Nino, que seria vocalista da Câmbio Negro. “Foi a única vez que pintou
polícia na história. A gente saía para fazer pichações, Nino, Lael, um punk
paulista que morava em Afogados. Uma dia levamos um bacolejo, só que a
polícia não entendia bem o que acontecia, e dispensou a gente”. Este grupo
de punks elegeu como inimigos os playboys que se reuniam na Praça do
Entroncamento, e desafiavam os “burguer boys”, como eles chamavam, passeando
entre eles e suas namoradas. Inevitavelmente saía confusão nestas
provocações. Mas a primeira grande encrenca foi numa festa no Colégio
Salesiano: “Fizeram no Salesiano a 1ª Festa Punk do Recife, e não queriam
que a gente entrasse – eu, Nino, Renato. Houve confronto mesmo, a gente
quebrou vidros do colégio, baixou camburão, o maior rolo”.
Era 1983, Nino resolveu formar a Câmbio Negro H.C, com Zeroquatro. Renato
foi vocalista por pouco tempo no grupo. “Os pais de Nino viajaram e deixaram
o apartamento com ele, a gente ensaiava lá, mas não tinha onde tocar. Até
que veio o primeiro convite, do artista plástico Marcos Hanois (já
falecido), que ia fazer uma exposição no Museu do Estado. Eu e Renato
fizemos uma música chamada Nóis sofre mais nóis xinga, um frevo que
criticava o Carnaval. Então Hanois mandou dizer que o pessoal do museu não
aceitavam uma banda punk na exposição. A banda parou de novo, deu um tempo”.
Fred Zeroquatro foi para São Paulo, onde encarou os mais diversos bicos:
“Voltei no início de 1984 e convidei o pessoal da Trapaça para formar uma
banda que não renegasse a coisa libertária do punk, mas que musicalmente
tivesse a ver com uma new wave brasileira”. O primeiro nome que lhe veio à
cabeça foi Ataque Nuclear. Em 84 a Guerra Fria ainda existia e tinha o
seriado Agente 86, em que se falava muito de um mundo livre, que terminou
ficando como o nome da banda, uma conotação meio irônica.
“Tinha um cara chamado Fred (Zeroquatro só lembra do primeiro nome), e a
família dele possuía um imóvel na Rua da Guia. Limpamos o lugar para os
ensaios. A Câmbio Negro ensaiava no andar de cima, a Mundo Livre no de
baixo. A gente já possuía um equipamento, mesa de som, microfones. Foi neste
ano que fizemos o primeiro show na festa de 15 anos de Adriana Vaz, em
Candeias. Tudo adolescente, dançando com a música da gente, autoral. Fiz uma
com o título de Samantha Smith, uma menina americana, que escreveu uma carta
para Iúri Andropov (secretário-geral do Partido Comunista da então União
Soviética) e foi convidada para visitar a Russia, que nunca foi gravada. Mas
não havia espaço para a banda tocar, os instrumentos eram muito ruins,
guitarras toscas, baixo que não afinava. Pensamos em ir para São Paulo,
quando estava perto de comprar as passagens, o lado racional falou mais
alto. A gente sabia que São Paulo sem emprego era pra morar debaixo de
viaduto.”
A trajetória da Mundo Livre S/A sofreria mais um percalço, em 1984.
Roubaram todo instrumental do grupo, inclusive microfones e mesa de som:
“Foram uns caras de uma banda punk da Paraíba, amigos da turma do Câmbio
Negro H.C. Não sei se Neguinho, que tocava com a gente, teve participação na
história. Sei que os punks acusavam a gente de traidor do movimento por
causa da mudança de estilo. Fiquei na maior deprê, mas acabei achando que
valia a pena continuar”, conta Fred Zeroquatro, que foi com os amigos
prestar queixa numa delegacia, mas foram desaconselhados pelo delegado: “Ele
disse que seria fácil encontrar a aparelhagem, só que se ia gastar mais
grana do que ela valia”.
Os irmãos Fred, Tony e Fábio estavam trabalhando, pouparam o que recebiam
como salários e compraram novos instrumentos. Neguinho e Avron saíram do
grupo, Carlinhos Freitas, que depois foi da loja Discossauro, entrou para a
banda. Em 1988, Fred Zeroquatro, que trabalhava na Rádio Transamérica, tirou
férias e foi para São Paulo: “A rádio tinha entrado na onda Sullivan e
Massadas. Resolvi pedir demissão, mesmo sem emprego. Todo domingo comprava o
Estadão e na segunda ia procurar trabalho. Fiz uma porção de coisa, fui até
motoboy de locadora de vídeo, quando estava quase o homem que virou suco,
voltei”. Desta vez, obstinado em fazer vingar a banda Mundo Livre S/A. Logo
estava com a formação que gravaria o ansiado primeiro disco, Samba esquema
noise – Fred Zeroquatro, Chef Tony, Fábio Goró, Bactéria Maresia, e Otto.
(©
JC Online)
Primeiro contrato foi assinado na praia
Em 25 anos de carreira, a Mundo Livre S/A tem
dois CDs numa lista dos 100 mais relevantes álbuns brasileiros
José Teles
teles@jc.com.brNão poderia ser
mais manguebeat a assinatura do contrato da Mundo Livre S/A com o selo
Banguela, criado pelos Titãs, e abrigado na Warner Music, aconteceu na
praia, em Candeias, num dia ensolarado, com muita cerveja e caranguejada.
Uma festa com os músicos da banda, Nando Reis e Carlos Eduardo Miranda, que
produziria os três primeiros discos do grupo. Hoje popularizado pela sua
participação no programa Ídolos,o gaúcho Miranda continua um produtor
compulsivo, e sempre atualizado com o que acontece no rock nacional. Naquela
época, começo dos anos 90, escrevia na revista Bizz. Conheceu Chico Science
& Nação Zumbi e a Mundo Livre S/A quando as duas ainda não tinham gravadora.
“Uma coisa que me saltava aos olhos na Mundo Livre, e também para os caras
dos Titãs, era a complexidade do grupo. Se Chico Science não houvesse
assinado com a Sony, mesmo assim a gente teria preferido a Mundo Livre,
porque tinha um trabalho mais profundo. Não deu outra, os caras
corresponderam ao que a gente esperava deles”, comenta Miranda, por
telefone, de São Paulo.
Um pouco antes, quem se decidiu pela Mundo
Livre S/A foi o percussionista Otto, que tocava com a Chico Science & Nação
Zumbi. Otto havia voltado de Paris, e conheceu Chico Science no comitê de
Humberto Costa, que disputava a prefeitura do Recife. “Foi para a campanha
dele que fiz a música que depois foi batizada de Rio, pontes e overdrives.
Passei a frequentar a turma de Fred, Chico, Renato, e a tocar percussão com
a Nação. A primeira vez que toquei com a Mundo Livre foi num show que as
duas bandas fizeram na Soparia. Naquela noite, Fred me convidou para tocar
também com a Mundo Livre”, lembra ele, que ficou revezando-se nas duas. “O
último show que fiz com a Nação Zumbi, foi num projeto Seis e Meia, a gente
abrindo para Arrigo Barnabé, no Teatro do Parque”. A banda gravou o primeiro
e elogiadíssimo CD sem ter um esquema profissional. Foi Otto que levou
Antonio Gutierrez, Guti, a assumir a produção da Mundo Livre S/A. “A reunião
com ele aconteceu na redação da Gazeta Mercantil”, conta o “Bicho que Pula”,
apelido que ganhou pelo excesso de movimentação que fazia no palco.
O paulista Guti, na época correspondente da
Gazeta Mercantil, conta que desde adolescente gostava de produzir festivais,
e foi um acaso que o levou a largar o jornalismo. “Quando eles me
convidaram, aceitei, mas continuei no jornal. Porém, quando me chamaram de
volta a São Paulo, optei pela Mundo Livre”, conta Guti, que passou a
trabalhar com a banda no lançamento de Samba esquema noise. Segundo ele, no
começo foi fácil produzir a Mundo Livre S/A, mesmo sem experiência, pela
exposição que a nova música pernambucana estava recebendo da mídia. No
entanto, ao mesmo tempo, era difícil, porque o prestígio do grupo era
inversamente proporcional ao seu público. “MTV, Folha de São Paulo, abriam
espaços generosos para as bandas pernambucanas, mas as platéias nos shows
não eram grandes. Aquele era um tempo em que não era comum bandas de rock do
Recife viajarem para São Paulo. Era tudo muito novo, e a gente ainda muito
amador. Em são Paulo, ficávamos na casa de amigos, feito Xico Sá. Aprendemos
fazendo”, continua Guti, que trabalhou com o grupo durante seis anos. “Foi
uma experiência muito boa, mas era complicado pela tensão interna dentro da
banda. Hoje, eu adoraria trabalhar com a Mundo Livre S/A, que mudou
bastante, está mais relaxada, madura, eu me dou bem com os caras, e a cada
dia que passa mais admiro Fred Zeroquatro. Os shows deles são sempre
perfeitos, porém, nos anos 90, era bem diferente. As apresentações oscilavam
na qualidade, e isto dificultava as turnês”, comenta o produtor.
Desde o ano passado, a banda é produzida
por Paulo André Pires, da Astronave, que também produziu Chico Science &
Nação Zumbi. Paulo André é uma entre as várias modificações ocorridas na ML
S/A desde os anos 90. Da formação que, há 15 anos, gravou Samba esquema
noise, os irmãos Montenegro, Fred, Fábio e Tony, mais Bactéria, e Otto, só
restam Fred Zeroquatro e Chef Tony (embora Bactéria não tenha deixado
oficialmente a banda). Otto saiu em 1997: “Foram os dois encontros melhores
de minha vida, Chico e Fred. Mas chegou uma época em que achei que tinha que
ter meu caminho”, conta Otto, que em 1998, lançou o aclamado Samba pra
burro. Saíram, em seguida Marcelo Pianinho, que vive em são Paulo, e depois
Fábio Goró, substituído por Junior Areia. A formação atual da banda é Fred
Zeroquatro, Junior Areia, Tom Rocha, Gustavo Joe e Chef Tony.
Especialista em trabalhar carreiras
internacionais das bandas com as quais trabalha, Paulo André Pires, esteve
com a Mundo Livre S/A em 2008, em shows na Suécia e na Womex, na Espanha.
Este ano, está quase certa a ida do grupo para o Canadá, a fim de tocar no
festival Pop Montreal. “No mercado brasileiro, é um grande desafio uma banda
de médio porte como a Mundo Livre sobreviver, mas ela circula bem mais do
que várias outras bandas. Agora, para a importância que a Mundo Livre tem na
música pernambucana, e na MPB, ela é muito subestimada. A revista Roling
Stone, há dois anos fez uma lista dos cem melhores discos da música
brasileira, e lá estavam o primeiro e o segundo da Mundo Livre. Depois teve
uma lista das pessoas mais importantes da música brasileira e lá estavam
Chico Science e Fred Zeroquatro. Mesmo assim, tem muita gente aqui que faz o
comentário, burro e limitado, de que Fred não tem voz, esquecendo a
importância que ele tem para a música do Brasil”, desabafa o produtor.
Em 2009, a banda não estará ocupada apenas
com turnês. Com o produtor Dudu Marote, já foram gravadas as três primeiras
novas canções do disco de inéditas que lançam no segundo semestre: A neta
cabulosa de James Browse, Black label man e Senhora encrenca. “A gente
mandou uma música para Dudu Marote, ele gostou e convidou a banda para
gravar no estúdio dele, um dos mais modernos do país, sem cobrar nada.
Fizemos estas, de oito que já estão prontas. Não sabemos se interessará a
alguma gravadora. Se não, a gente se vira e vai atrás de grana para lançar o
disco”, diz Zeroquatro, que batizou o CD com o emblemático título para uma
banda que completa 25 anos de estrada: Durar é viver.
(©
JC Online) |
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