Caetano Veloso estreia show de
"Zii e Zie" em São Paulo
Comissão que analisa projetos aspirantes ao benefício da Lei Rouanet diz
que turnê do cantor, no valor de R$ 2 mi, não precisa de incentivo; ministro
deve derrubar decisão
MARCIO AITH
DA REPORTAGEM LOCAL
A Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC), que analisa os projetos
aspirantes ao benefício da Lei Rouanet, negou autorização para que os
produtores do músico baiano Caetano Veloso captem patrocínio para o novo
trabalho do artista, o CD "Zii e Zie".
Em reunião do último dia 21 de
maio, a comissão decidiu que o projeto "Tour Caetano Veloso", no valor de R$
2 milhões, não precisa de incentivo por ser comercialmente viável. O projeto
prevê a realização de shows em 22 capitais.
No entanto, é muito provável que essa decisão seja derrubada nos próximos
dias pelo ministro da Cultura, Juca Ferreira.
Ao ministro cabe rever as decisões da CNIC. No ano passado, ele derrubou
o veto da comissão à turnê da cantora Maria Bethânia, que pedia autorização
para buscar R$ 1,8 milhão em patrocínio.
Naquela ocasião, a CNIC rejeitou o show pelo mesmo motivo que nega agora
autorização para o show de Caetano: a receita de bilheteria "tornaria
desnecessária a utilização de incentivo fiscal na realização do evento".
Ferreira derrubou a decisão e viabilizou o patrocínio de Bethânia, com
dinheiro de renúncia fiscal.
Naquele episódio, como agora, o ministro dizia concordar com o sentido da
decisão do CNIC, mas não com a forma. Segundo Ferreira, a Lei Rouanet não
possui um critério específico para impedir o patrocínio de espetáculos
comercialmente viáveis. Para ele, a orientação da CNIC seria justa, mas não
legal.
Esta suposta omissão legal é justamente um dos motivos pelos quais o
ministro pretende reformar a Lei Rouanet.
A Folha apurou que Ferreira também foi alvo de forte pressão de Paula
Lavigne, ex-mulher e empresária de Caetano, para que a decisão da CNIC fosse
revertida.
Em debate anteontem, Ferreira referiu-se obliquamente à decisão da CNIC
no caso de Caetano. Disse que "estão tentando", sem sucesso, usar o episódio
para causar intriga entre ele e um conterrâneo (Juca Ferreira e Caetano
Veloso são baianos).
Questionado pela Folha sobre o tema, Caetano comentou, por e-mail: "Não.
Não há nenhum estremecimento entre mim e o ministro. Ele foi assistir ao meu
show em Brasília e conversamos bastante".
Caetano Veloso, que faz shows de divulgação do CD "Zii e Zie"
Bob Veloso, o irmão de Caetano que mora em São Paulo, faz parte do time dos
que não gostaram da chamada "fase roqueira" pela qual o artista está
passando. O próprio Caetano se diverte ao relatar que, depois de ver o show
de "Cê", seu álbum anterior, Bob chegou ao camarim e disse um "Não tolerei!"
em seu ouvido.
Mas mudanças nesse comportamento estão previstas para seu novo
espetáculo, que estreia amanhã em São Paulo. Apesar de "Zii e Zie", seu
respectivo álbum, manter a estética experimental de "Cê", Caetano considera
que o caráter de reflexão e de revisão imprimido no repertório de cena torna
o show mais atraente para quem, como seu irmão, não se identifica com a
dureza das músicas novas.
Entraram canções compostas entre 1968 e 1970, como "Não Identificado", "A
Voz do Morto", "Irene" e "Maria Bethânia". As duas últimas foram compostas
para suas irmãs em momentos de profunda tristeza. "A primeira foi feita na
cadeia. A outra, no exílio. Em ambos os casos, eu estava pedindo socorro",
lembra Caetano, em entrevista por telefone à Folha. "São referências ao
período do tropicalismo, da prisão e do exílio."
Essa volta ao final dos anos 1960 traz as discussões políticas de volta
ao primeiro plano. Isso já ficava claro no álbum "Zii e Zie", principalmente
em faixas como "Base de Guantánamo", que muito se aproxima da repercussão de
uma notícia de jornal. Caetano diz não temer que esse caráter imediatista de
algumas letras as tornem menos duráveis.
"Não acho que a ligação com referências a acontecimentos de um período
necessariamente apressem ou certifiquem a obsolescência do que faço", diz.
"A qualquer momento, mesmo daqui a décadas, com Cuba reintegrada aos outros
países da América, ou com um mundo totalmente diferente de tudo isso, essa
canção não terá necessariamente que ser algo obsoleto somente por que a
prisão fechou."
Outra canção que também está no repertório, "Três Travestis" foi
resgatada por Caetano no ano passado graças a um episódio que envolveu o
jogador Ronaldo. O cantor diz tê-la mantido no show, mesmo tanto tempo
depois daquela notícia, por querer manter o clima sexualmente dúbio que o
disco já imprimia, em canções como "Tarado ni Você" e "A Cor Amarela".
"No show, o sexo fica ainda mais adolescente", diz. ""Cê" era muito
hetero, apesar das referências pansexuais ou homossexuais que ele continha.
Agora não. Tem uma coisa de final dos anos 60 e início dos anos 70."
A turnê de Caetano Veloso para lançar seu "Zii e Zie" começou no Rio de
Janeiro, em 8 de maio, onde ele também lançou "Obra em Progresso", projeto
em que mostrava as primeiras músicas desse disco, que na época nem nome
tinha.
Em seguida, ainda durante o mês de maio, ocorreram apresentações em
Brasília, Belém, Maceió, Fortaleza e Juazeiro do Norte e Salvador.
Com dois shows agendados no Credicard Hall, ele estreia amanhã em São
Paulo. Até o fechamento desta edição, ainda havia ingressos disponíveis para
as duas datas.
Depois, o cantor baiano segue com a equipe para: teatro do Sesi de Porto
Alegre, nos dias 24 e 25; teatro Positivo, em Curitiba, no dia 27; e
Chevrolet Hall, em Belo Horizonte, no dia 3 de julho.
Termina a série de shows confirmados em Vitória, no dia 5 de julho. Novas
cidades no Brasil e no exterior ainda devem ser agregadas, mas não há a
quantidade definida nem um roteiro predeterminado.
Ao lado da BandaCê -formada por Pedro Sá, Marcelo Callado e Ricardo Dias
Gomes-, Caetano alterna músicas do novo disco, que vão compor metade do
show, e sucessos como "Trem das Cores" e "Eu Sou Neguinha".
Juca Ferreira diz que decisão de
comissão em negar patrocínio a Caetano foi erro
Para ministro da Cultura, não é contraditório usar a lei para beneficiar
nomes consagrados em vez de artistas iniciantes
MARCIO AITH
DA REPORTAGEM LOCAL
"Não sou masoquista para trabalhar só com artistas malsucedidos. O
ministério não tem vocação para irmã Dulce ou para Madre Teresa de Calcutá."
Com essas palavras o ministro da Cultura, Juca Ferreira, indicou à Folha
que irá rever a decisão que proibiu produtores do músico Caetano Veloso
de captar patrocínio da Lei Rouanet para divulgar o novo CD do artista, "Zii
e Zie".
Em reunião em maio, a Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC)
decidiu que o projeto, no valor de R$ 2 milhões, não precisa da Rouanet por
ser comercialmente viável. A CNIC é um órgão colegiado que pertence ao
Ministério da Cultura. O ministro pode, a seu critério, rever as decisões da
comissão. Ferreira negou ter sofrido pressões da empresária Paula Lavigne,
ex-mulher e empresária de Caetano, para que a decisão fosse revertida:
"Ela não fez nenhum sauê, apenas ligou para mim e perguntou qual critério
tinha sido utilizado para Caetano que ela não percebia que tinha sido usado
para outras pessoas". Leia a seguir a entrevista.
FOLHA- O sr. vai rever o veto a Caetano Veloso? JUCA FERREIRA
- A produção de Caetano entrou com o recurso, que vai ser analisado pelo
ministério. Estou acompanhando. Evito ao máximo rever decisões da CNIC. Só
quando ocorre um erro muito contundente procuro chamá-los à razão.
FOLHA- Que erro foi esse?
FERREIRA - O que houve é o seguinte. Não é possível aplicar um
critério para um artista e não aplicar para outro. A lei atual não tem
nenhum critério que diga que os artistas bem-sucedidos não podem ter seus
projetos aprovados, e nem a nova deverá ter. No ano passado, quando eu
intervim para aprovar o show da Maria Bethânia [a CNIC também tinha negado
acesso da cantora à Rouanet], já tínhamos aprovado projetos da Ivete
Sangalo, artista mais bem-sucedida comercialmente em todos os tempos. Não
podemos sair discricionariamente decidindo, sem critérios legais.
FOLHA - A empresária Paula Lavigne pressionou-lhe para rever a
decisão sobre Caetano?
FERREIRA - Ela não fez nenhum sauê, apenas ligou para mim e
perguntou qual critério tinha sido utilizado para Caetano que ela não
percebia que tinha sido usado para outras pessoas. Eu, da mesma maneira que
ela, também estranhei. Eu e Caetano nem tratamos do assunto.
FOLHA- Sobre o que o senhor conversou com Caetano?
FERREIRA - Falamos de uma série de coisas, menos do projeto. Eles
[Caetano e Paula Lavigne] têm agido com uma delicadeza enorme. Eu é que
estou mobilizado porque esse assunto surge neste momento final de discussão
para a reforma da Lei Rouanet. Estamos ganhando a opinião pública, trazendo
os artistas para uma escala de confiança maior. E não é justo que [a CNIC]
tome essa decisão. Podem estar querendo me atritar com Caetano. Estão
tentando arregimentar artistas consagrados contra a reforma.
FOLHA - O senhor diz que não há critério legal para negar o projeto
de Caetano Veloso. Se não existe critério, por que musicais como "Peter Pan"
e "Miss Saigon", e exposições como "Leonardo da Vinci" e "Corpo Humano"
foram negados?
FERREIRA - Não vou aqui discutir casos.Frequentemente há erros, eu
tenho dito isso. É justamente a falta de critérios que cria ambiente para
julgamentos subjetivos. Um dos objetivos da reforma da lei é adotar
critérios previamente legitimados pela discussão pública.
FOLHA - Não há uma contradição entre o espírito da reforma da Lei
Rouanet, baseada no uso de dinheiro público para quem precisa, e a decisão
de estender a lei a Caetano, um artista consagrado?
FERREIRA - De modo algum. O show já está em turnê, cobrando um
preço. Seus produtores se dispuseram a reduzi-lo para pouco menos da metade
se for incorporado dinheiro público. Ao que parece, o ingresso cairia para
R$ 40 inteira, e R$ 20 meia. Isso possibilita a ampliação de pessoas na
plateia. Atende a uma demanda nossa, a de que um artista bem-sucedido amplie
seu público. Não é contraditório. Queremos uma política cultural sólida, mas
não faremos isso sem os grandes artistas brasileiros. A única coisa que
apontamos é que, da maneira como a lei é hoje, os artistas novos, de
diversos Estados, não têm acesso à lei. Não sou masoquista para trabalhar só
com artistas malsucedidos. O ministério não tem vocação de irmã Dulce nem de
Madre Teresa de Calcutá. Um artista conhecido pode ter dificuldade de
conseguir patrocínio para uma obra experimental, ou pode ser do interesse
público abaixar os preços de um espetáculo popular. Deve-se avaliar
economicamente cada projeto, o que hoje a lei sequer prevê. A discussão não
está aí.
FOLHA- Qual é a discussão?
FERREIRA - Mais de 20% dos recursos da lei vazam por meio de
serviços de "garantias", assim, com aspas, de aprovação de projetos no
Ministério e de captação em departamentos de marketing de empresas. A
sociedade não aguenta mais negociações por baixo da mesa.
Caetano Veloso estreia show em SP e
enfeita a tradição com novos adereços
Foto:
Fabiano Cerchiari/UOL
MARIANA TRAMONTINA
Da Redação
Se a asa-delta posicionada ao fundo do palco no novo show de Caetano
Veloso pretende levar para a estrada a cidade do Rio de Janeiro, que muito
inspirou o disco "Zii e Zie", também mostra que a musicalidade do cantor
pode voar alto e sem rédeas. O baiano estreou seu novo repertório em São
Paulo nesta sexta-feira (12), mostrando toda sua liberdade para testar
sonoridades. Ele repete a apresentação neste sábado (13) no Credicard Hall,
a partir das 22h.
Ao subir as cortinas, Caetano Veloso já estava no palco para saudar o samba
em "A Voz do Morro", através de uma homenagem a Paulinho da Viola. Logo na
primeira faixa, o baiano indicou que, seguindo a trilha de "Cê", seu novo
show continua livre de receitas ortodoxas. À frente da Banda Cê, ele
misturou seus versos com trechos de Psirico ("Cole na Corda") e Fantasmão
("Tem Que Ser Viola" e "Kuduro") emaranhados por uma psicodelia atual e
cheia de distorção, arriscando pisar em territórios explorados por nomes
jovens como Animal Collective.
Na noite do Dia dos Namorados, Caetano não protagonizou suas antigas
declarações de amor sentado num banquinho com violão no colo. Ao contrário,
levou para o palco um pós-rock melancólico carregado por sambas desvirtuados
e celebrou o experimentalismo em versos concretos.
O show é fundamentado quase integralmente no novo disco --das 13 faixas
que compõem o CD, ficaram de fora apenas "Diferentemente" e "Ingenuidade".
Há pontos altos como a interpretação do tributo "Lapa" (quando a asa-delta
passeia por imagens do bairro carioca exibidas em um telão), a circense
"Menina da Ria" ou a contida "Sem Cais" (composta em parceria com o
guitarrista da Banda Cê, Pedro Sá). Mas é em "Perdeu", que abre o disco "Zii
e Zie", que o cantor mostra que seu show não é solo. Ele recua de seu posto
de líder e deixa a riqueza instrumental lapidada por Sá, pelo baixista e
tecladista Ricardo Dias Gomes e pelo baterista Marcelo Callado sobressair.
Mesmo se aventurando por distorções e caprichando em referências atuais,
Caetano não faz um show de rock. Os instrumentais soam baixos, a bateria é
cuidadosa, a guitarra é leve. Quase não há espaço para maiores entusiasmos.
O trio que acompanha Caetano pede por contemplação. É por isso que, em "Por
Quem?", o baiano exercita com certa dramaticidade seu falsete e deixa sua
guitarra falar em cima da triste melodia da música. Até mesmo em "Odeio"
--única faixa de "Cê" presente no show-- o título repetido no refrão é
acompanhado por um coro tímido do público.
Enquanto executa momentos duvidosos --como o discurso militante de "Base de
Guantánamo", que soa apenas como trilha sonora para as imagens de Cuba
exibidas no telão, ou "A Cor Amarela" imbuída num escorregadio sambaxé--
Caetano deixa o público respirar o ar puro de grandes pérolas de sua
discografia, como a suavidade de "Trem das Cores" e "Não Identificado".
Em espanhol, ele retoma uma espécie de "Fina Estampa" com "Volver", de
Carlos Gardel, e faz uma bonita apresentação de "Aquele Frevo Axé",
composição sua gravada por Gal Costa e única cantada num momento banquinho,
voz e violão. E ainda busca novas soluções de arranjo em "Maria Bethânia"
--dedicada à Augusto Boal, primeiro nome a dirigir a cantora em cena, na
década de 1960-- e "Irene".
Trocando poucas palavras com o público e deixando a verborragia para as
letras de suas músicas, Caetano recebeu com sorriso largo os novos e velhos
fãs que deixaram as cadeiras para se amontoar na beira do palco durante o
bis. "Isso é São Paulo", contemplou, antes de tocar uma versão descompassada
de "Incompatibilidade de Gênios", de João Bosco e Aldir Blanc, e emendar
"Manjar de Reis", "Três Travestis" e "Força Estranha", saudando Roberto
Carlos, para fechar a estreia de seu novo show na capital paulista.
Caetano parece gostar do resultado. Cantou sorrindo e se exibindo para o
público em cerca de 1h30 de show. "Eu Sou Neguinha?" ganhou gestos femininos
em sua interpretação. Durante "Água", música de Kassin+2, rebolou, andou de
um lado para o outro e ainda fingiu cair sobre a plateia, brincando com o
episodio em que escorregou do palco no Canecão. Caetano sacramenta o caráter
provocador de seu personagem, seja em suas encenações ou em sua música,
enfeitando a tradição com novos adereços. A obra de Caetano segue em
constante progresso.
Veja o que Caetano Veloso cantou na primeira noite em São Paulo:
“A Voz do Morto”
“Sem Cais”
“Trem das Cores”
“Perdeu”
“Por Quem?”
“Lobão tem Razão”
“Maria Bethânia”
“Irene”
“Volver”
“Aquele Frevo Axé”
“Tarado Ni Você”
“Menina da Ria”
“Não identificado”
“Odeio”
“Falso Leblon”
“Base de Guantánamo”
“Lapa”
“Água”
“A Cor Amarela”
“Eu Sou Neguinha”
bis
“Incompatibilidade de Gênios”
“Manjar de Reis”
“Três Travestis”
“Força Estranha”