17/06/2009
Projeto que celebra os 40 anos de contrato de Caetano Veloso com a mesma
gravadora cobre desta vez o período de 1983 a 1994 e inclui um CD de
raridades
Lauro Lisboa Garcia
Demorou, mas saiu a terceira das quatro caixas que celebram os 40 anos
de contrato de Caetano Veloso com a gravadora Universal (que já foi CBD,
Philips e Polygram). O projeto que tinha começado em 2006 sob a
coordenação de Charles Gavin passou agora às mãos de Alice Soares e
Rodrigo Faour. Como todos os álbuns de Caetano já tiveram várias edições
em CD, o atrativo diferencial de 40 Anos Caetanos é a compilação de
raridades que acompanha cada caixa.
Esta terceira cobre o período de 1983 a 1994, em que Caetano realizou
álbuns marcantes como Uns (83), Velô (84), ambos com nova mixagem,
Caetano (1987), Estrangeiro (1989) e Circuladô (1991). Também se reuniu
a Gilberto Gil para comemorar tardiamente os 25 anos de Tropicália, que
acabou saindo no 26º aniversário do movimento, e os 50 anos de idade de
cada um. Tropicália 2 reunia Olodum, Jimi Hendrix e Riachão, parcerias
inéditas dos dois, reflexões sobre a miséria em forma de rap (Haiti),
Cinema Novo, poesia concreta e um clássico instantâneo de Caetano: Desde
Que o Samba É Samba.
Uma vez tropicalista, sempre tropicalista. Nesse aspecto, esta fase de
Caetano, até a imersão latina de Fina Estampa (1994), não difere das
demais. Nos dois álbuns revisionistas que gravou quase todos só com voz
e violão - Caetano Veloso e Totalmente Demais (ambos de 1986), o
repertório mescla clássicos da canção americana, brasileira, portuguesa,
argentina e britânica com composições autorais e reinterpretações de
contemporâneos como Cazuza e Arnaldo Brandão.
O Caetano de 1987 é o mais sombrio dessa fase, quando perdeu o pai e
desfez o casamento com Dedé Gadelha. A morte e a separação se refletem
na tristeza de José e Noite de Hotel, além da releitura de Fera Ferida
(Roberto e Erasmo Carlos). Outros destaques são O Ciúme e as mais
ensolarados Eu Sou Neguinha?, Depois do Ilê Passar e Vamo Comê, com Luiz
Melodia.
Outros climas envolvem Uns e Velô, claramente influenciados pela onda
roqueira dos anos 80. No primeiro tem Cuba, Você É Linda, bossa nova,
samba-enredo (É Hoje), mas também tem Eclipse Oculto e Marina Lima. Velô
traz frevo e concretismo, uma nova e sensacional versão samba-reggae de
Nine Out of Ten, protesto político (Podres Poderes), samba-rap (Língua,
com Elza Soares), o ídolo Ritchie na viajante Shy Moon, a reflexiva O
Homem Velho e a obra-prima O Quereres, recapitulada ao vivo em
Totalmente Demais.
Há força política também em Estrangeiro, que retoma referências
tropicalistas e lembranças da infância, como na bela Genipapo Absoluto,
canções em homenagem a suas duas mulheres (Dedé e Paula Lavigne) e
Meia-Lua Inteira (Carlinhos Brown). Circuladô faz par com Estrangeiro,
ambos produzidos por Arto Lindsay, em vários aspectos temáticos, com
destaque para Fora da Ordem. A versão ao vivo, em álbum duplo de 1992,
inclui interpretações pungentes para Jokerman (Bob Dylan) e Debaixo dos
Caracóis dos Seus Cabelos (que Roberto Carlos fez para ele em seu
período de exílio).
A compilação de raridades, Certeza da Beleza, não é tão interessante
quanto às das duas caixas anteriores. Tem gravações que Caetano fez para
trilhas de novelas - Isto Aqui o Que É (Ary Barroso), Preciso Aprender a
Só Ser (Gilberto Gil), Cidade Maravilhosa (André Filho) -, cinema
(Falou, Amizade), minissérie (Milagres do Povo), programa infantil
(Acalanto, de Edu Lobo e Paulo César Pinheiro) e mais uma da série de
novos frevos Asas da América (Noites Olindenses, de Carlos Fernando). As
demais são duetos com Chico Buarque, Beto Guedes, Mestre Marçal, Luiz
Caldas, Carlos Mendes, Péricles Cavalcanti, Telma Costa, entre outros.
Anterior ao período de 1983-1994 é As Várias Pontas de Uma Estrela,
parceria e dueto com Milton Nascimento, de1982, que não coube na caixa
anterior.
(©
Estadão)
Crítica/"Zii e Zie" em São Paulo
Caetano alterna contenção e anarquia
Em show, novas músicas do disco "Zii e Zie" vão da precisão milimétrica
na distribuição dos acordes à confusão sonora
GUILHERME WERNECK
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Pode até ter sido coincidência, mas fez todo o sentido estrear o show "Zii e
Zie" no Credicard Hall em São Paulo numa noite gelada de namorados, no meio
de um feriado em que a cidade fervia com o fim da gestação da Parada do
Orgulho GLBT.
Mais até do que no disco "tios e tias", Caetano Veloso brinca o tempo
todo com signos do masculino e do feminino durante o espetáculo. Em um jogo
que funciona como um discurso político efetivo justamente porque se
desprende de qualquer tentativa discursiva, de fazer uma política outra que
não a do prazer. Esse embaralhamento de gêneros cresce no show em músicas do
"Zii e Zie", como "Tarado ni Você" e "Menina da Ria", só para citar duas com
pólos trocados, até chegar ao ápice numa versão rascante de "Eu Sou
Neguinha", a última antes do bis, que teve "Três Travestis", desta vez sem
citar o Fenômeno do Corinthians.
Essa política privada do prazer passa também por tocar rock com a BandaCê
e revisitar o projeto de modernidade do fim dos anos 60. A conexão é
estabelecida já na primeira música do show, "A Voz do Morto", e segue por
"Não Identificado", "Irene" e "Maria Bethânia", esta última dedicada ao
dramaturgo Augusto Boal, que morreu no último mês de maio: "Foi em São Paulo
que ele [Boal] fez o melhor de seu trabalho e Bethânia e eu aprendemos com
ele".
Dinâmica nervosa
Nessas músicas, a banda formada por Pedro Sá (guitarra), Ricardo Dias
Gomes (baixo e Rhodes) e Marcelo Callado (bateria) se solta. É um contraste
bem interessante com as composições de agora, bem mais cubistas, fraturadas,
com uma dinâmica mais nervosa.
No show fica claro o quanto há de textura e uso inteligente do espaço nas
composições do disco, quase todas no set list da estreia. É notável como
elas alternam momentos de extrema contenção, em que há uma precisão
milimétrica na distribuição dos acordes -similar a de um Battles, por
exemplo-, com momentos de pura anarquia sonora: solos, feedback e Caetano
deixando a frente para sumir no meio da banda.
Há uma evolução grande em termos de composição e sonoridade em relação ao
"Cê". Embora "Odeio" esteja no repertório, o show mostra um Caetano que está
acima do ódio virulento, muitas vezes rancoroso do disco anterior. Em "Zii e
Zie", o clima é de uma leve indecência, transgressora em sua aparente
ingenuidade. No lugar da crise, está a liberdade e um bocado de solidão.
Para quem acha que a nova fase é roqueira demais, houve um tempero sábio
na sexta: "Trem das Cores", "Aquele Frevo Axé", "Incompatibilidade de
Gênios", as lindas versões para o tango "Volver", de Carlos Gardel, e para a
guitarrada quase tecnobrega "Água", de Kassin. Sem falar no final
emocionante com "Força Estranha", em homenagem a Roberto
Carlos.
Avaliação: ótimo
(©
Folha de S. Paulo)
A tropicália vista por dentro
Carlos Helí de Almeida
Prestes a ser resgatada em documentário produzido pela O2 de Fernando
Meirelles e a Record Films, a trajetória da tropicália acaba de ganhar o
testemunho de um dos mais importantes atores da contracultura brasileira.
Conhecido por ter encarnado o personagem que sustenta a narrativa de Meteorango
Kid – O herói intergalático (1969), grande referência do cinema marginal, o
artista baiano multimídia Lula Martins lança agora o livro Mágicas mentiras
(editora Vento Leste), no qual cruza suas memórias com os atropelos da produção
cultural (alternativa) do país nos últimos 40 anos.
– Há muito tempo venho exercendo várias atividades no campo das artes. Por
causa disso, nunca tive uma profissão ou uma especialidade definitiva na vida, e
isso é péssimo para as finanças. Escrevi Mágicas mentiras para, sobretudo,
reunir os meus cacos, tentar dar unidade aos meus trabalhos e a mim – reconhece
Martins, que leva uma vida low profile.
Ao contrário das estrelas visíveis do movimento estético e sonoro que
influenciou todas as atividades culturais entre o final dos anos 60 e os anos
70, Lula Martins trilhou um caminho de bastidor. Filho de poeta e originário de
uma família bem situada no sudoeste da Bahia, o pequeno Antônio Luiz da Silva
Martins frequentou as matinês dos cinemas de Jequié, seu primeiro contato com a
arte audiovisual. Ainda jovem, vagou pelo universo pré-hippie e se envolveu com
as artes plásticas. Participou, inclusive, da Bienal da São Paulo, em meados dos
anos 60.
De volta a Salvador, fez teatro amador, fase que deixou algumas cicatrizes
(físicas), até ser convidado para ser protagonista do premiado Meteorango Kid,
dirigido pelo conterrâneo André Luiz Oliveira. Anos mais tarde, depois de errar
sem rumo profissional e financeiro, veio dar no Rio, onde passou a ganhar a vida
como designer gráfico. Produziu capas de discos de expoentes da música lisérgica
brasileira da época, como o grupo Novos Baianos e artistas como Sivuca, Glorinha
Gadelha, Moraes Moreira, Pepeu Gomes e Baby Consuelo.
Melhor capa de 1972
Durante algum tempo, o design gráfico rendeu louros para Martins. A capa do
disco Acabou chorare (1972), dos Novos Baianos, sempre citado em listas dos
melhores discos brasileiros de todos os tempos, foi a eleita por especialistas a
melhor criação daquele ano. Aproveitou os contatos nos círculos musicais para
produzir discos experimentais. Nos anos 80, uma canção de sua autoria, Rock
Mary, ganhou popularidade na voz de Paulinho Boca de Cantor. Em seguida, caiu no
ostracismo. Mas seu trabalho até hoje é referência para estudiosos da cultura
brasileira, inclusive no exterior.
– Ator, poeta, escultor, diretor, cantor, artista plástico e compositor, Lula
Martins é uma das figuras mais lendárias da contracultura no Brasil. Sua obra é
vasta e profunda. As belas capas de LPs que fez para tantos artistas são
verdadeiros documentos visuais da cultura de vanguarda produzida no país. Sua
obra e sua vida, como um todo, são parte da própria história do Brasil recente –
elogia Narlan Matos, doutorado pela Universidade de Illinois, nos Estados
Unidos, que está produzindo um documentário sobre outra lenda da tropicália, o
artista plástico e designer Rogério Duarte.
Criador de alguns dos mais belos cartazes de filmes brasileiros de todos os
tempos, como o de Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha, Duarte fazia
parte da vanguarda artística em um tempo em que reinava a censura militar.
Arregimentou em torno de si um grupo de resistência cultural que Narlan
identifica como o Grupo de Jequié, formado pela tropa de choque da tropicália.
Este incluiu Edinízio Ribeiro Primo, criador da capa do famoso álbum de Expresso
2222, de Gilberto Gil; Dicinho, ilustrador da capa de Flor do Mal e Gal, de
1969, um dos desaparecidos durante o regime; Cesar Zama, militante underground
que voltou para Jequié onde se tornou advogado; Jorge Salomão, irmão de Waly,
artista performático, e, claro, Lula Martins.
– O documentário sobre o Rogério (Duarte) está sendo dirigido por Daniel
Cortez. Estamos gravando aos poucos. Agora, em junho, vamos para a Bahia
entrevistá-lo. Estou levando os lendários panteras negras junto – informa o
acadêmico. – Já gravamos os depoimentos de nomes com Adriana Calcanhotto,
Caetano Veloso, Jorge Mautner e Galvão, dos Novos Baianos. Estão confirmados as
participações dos Titãs, do Macalé, do Tavinho Paes, e mais muita gente boa.
Na época do lançamento de Mágicas mentiras, Duarte se referiu ao
ex-companheiro de vanguarda como "uma ave rara da nossa constelação". O
brasilianista Chistopher Dunn, co-diretor do Conselho de Estudos Brasileiros da
Universidade de Tulane, nos Estados Unidos, atribui a ele força de símbolo da
resistência nacional, que ganhou representatividade visual em Meteorango Kid.
– Estudiosos e críticos elegem O Bandido da Luz Vermelha como o primeiro
grande filme marginal, mas Meteorango Kid revelou com muito mais força a
marginalidade e desilusão dos jovens brasileiros durante a época mais repressiva
da ditadura – destaca o americano. – É o primeiro filme do desbunde brasileiro,
que teve a ousadia de, em pleno AI-5 de encenar um ritual cotidiano tão
conhecido, mas pouco representado no cinema brasileiro: a preparação cuidadosa e
consumo dionisíaco de um baseado.
(©
JB Online) |
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