Foto: Juan
Esteves
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Cícero Dias |
Murais pernambucanos formam conjunto precioso e estão
espalhados por espaços ao ar livre, instituições públicas e prédios do
Recife
Júlio Cavani
Notabilizada por artistas mexicanos da primeira metade do século 20, como
Diego Rivera e José Clemente Orozco, a arte muralista tem origens nas pinturas rupestres da pré-história e nas
pirâmides egípcias. No Recife, no último mês, o formato voltou chamar
atenção por causa da reinauguração de um conjunto de obras
recém-restauradas, assinadas por Cícero Dias nas paredes internas da sede da
Secretaria da Fazenda em 1948.
Pela primeira vez, o público tem acesso aos trabalhos, que são considerados
os primeiros murais abstratos da América Latina. Com cores e formas
inspiradas nas paisagens do interior e do litoral, eles estão espalhados por
três andares do edifício, integrados a sua arquitetura modernista. Como nem
todos puderam ser recuperados, uma exposição com fotos e esboços montada no
térreo mostra como era o conjunto completo.
Cícero Dias. Foto: Juliana Leitao/DP/D.A Press |
Em Pernambuco, a arte mural também está presente nas ruas e em diversos
espaços públicos, ornamentados por obras com assinaturas de pintores como
Ferreira, Jairo Arcoverde, Reynaldo Fonseca, Francisco Brennand, Abelardo da
Hora, Lula Cardoso Ayres e Bajado. Algumas se confundem com painéis, que se
diferenciam pelo tamanho e por não terem sido feitos diretamente sobre as
paredes (como ocorre nos trabalhos de João Câmara e José Cláudio no
aeroporto). O muralismo também é uma referência forte para grafiteiros como
Derlon e Galo, cujo trabalho consiste em preencher muros ao ar livre.
Segundo Lula Cardoso Ayres Filho, seu pai pode ter sido o maior muralista do
Brasil, pois projetou mais de 90 obras com esse perfil. Ele sempre levava em
consideração o local onde os murais seriam erguidos na hora de definir os
temas ilustrados pelas figuras. Entre seus trabalhos mais vistos estão os do
Cinema São Luiz, do antigo aeroporto e da Estação Central do Metrô.
Até por ser especializado em cerâmica, Francisco Brennand é um dos artistas
que têm o maior número de murais no estado. Entre seus trabalhos mais
famosos estão os construídos na Rua das Flores (a Batalha dos Guararapes),
no Edifício Ana Regina (Rua Oliveira Lima), na Rua do Sol (no prédio da
antiga Arapuã) e no Museu do Homem do Nordeste, além dos muros internos de
sua Oficina Cerâmica na Várzea.
Bajado ficou conhecido por suas pinturas de pequeno porte, mas seus
trabalhos mais vistos pelo público, com certeza, são os murais do salão
interno do Mercado Eufrásio Barbosa, que emolduram plateias de milhares de
pessoas, a cada show. Essas peças representam bem a obra do artista, pois
retratam o carnaval de Olinda e o cotidiano da cidade. Um deles mostra
casais que dançam em um clube de baile. Outro mostra o Homem da Meia-Noite
em primeiro plano, com foliões desvairados no horizonte (pois a embriaguez e
a lisergia também fazem parte da cultura olindense).
Aos 84 anos, Abelardo da Hora continua na ativa. Ele acaba de finalizar o
projeto de um mural que vai ornamentar as paredes do Hospital Miguel Arraes,
ainda em construção. Com o título O mal e a cura, a peça vai ter quatro
metros de altura e 20 metros de extensão, e tem a saúde como tema, com
representações de atividades médicas e hábitos de cura populares, como
ex-votos, rezas e métodos para arrancar dentes com barbantes.
Abelardo também é autor de murais localizados no Centro do Recife. Um deles
retrata o encontro entre Peri e Ceci, personagens do livro O guarani, de
José de Alencar, situado no edifício que leva o nome do escritor, localizado
em uma rua homônima (na esquina com a Barão de São Borja). O mais conhecido
fica no Edifício Joaquim Nabuco, confeccionado em homenagem ao abolicionista
e ao fim da escravidão no Brasil.
(©
Diário de Pernambuco)
Quem foi Cícero Dias
Semira Adler
Vainsencher
semiraadler@gmail.com
Pesquisadora da Fundação
Joaquim Nabuco
Verde é a cor da minha memória.
Cícero Dias
Cícero Dias nasceu no
dia 5 de março de 1907, no Engenho Jundiá, no município de Escada, em
Pernambuco. Foi o
sétimo, dos onze filhos de Pedro dos Santos Dias e Maria Gentil de Barros e,
ainda, pelo lado materno, neto do Barão de Contendas. Aos 13 anos de idade,
foi para o Rio de Janeiro. Surpreendendo os seus familiares, decidiu
tornar-se um pintor.
Em 1928, porém, na
Cidade Maravilhosa, nenhuma galeria de arte se interessava por arte moderna.
Neste sentido, a primeira exposição de Cícero - o mural Eu
vi o mundo, que possuía
quinze metros de largura - teve lugar em um hospício: foi o único espaço
disponível que se conseguiu. Três anos depois, entretanto, ele abriria uma
exposição no Salão de Belas Artes, a convite do pintor Di Cavalcanti.
Rompendo com a escola clássica, as exposições e trabalhos do artista geravam
debates e escândalos, já que poucos os entendiam. Inclusive, houve o caso de
um homem que, com o auxílio de uma navalha, tentou destruir as suas obras.
Cícero Dias era amigo
de Gilberto Freyre e,
com o antropólogo, relembraria o seu passado de menino criado em
engenho. Por ser
simpatizante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), o artista foi perseguido
em 1937, quando o então Presidente Getúlio Vargas instalou a ditadura do
Estado Novo. E, várias vezes, ele teve o ateliê invadido por tropas
policiais. Por essa razão, desgostoso com a realidade, o artista decidiu se
mudar para Paris. Nesta cidade, em 1943, ele se casaria com a francesa
Raymonde e teria uma filha.
Durante a II Guerra
Mundial, cabe registrar também que, por ser brasileiro, depois que o País
rompeu relações diplomáticas com a Alemanha nazista e a Itália fascista,
Cícero foi preso na cidade alemã de Baden-Baden, juntamente com o escritor
João Guimarães Rosa, que fazia parte do mesmo grupo de detentos. Felizmente,
entretanto, este grupo foi trocado por espiões nazistas que estavam
encarcerados no Brasil.
Cícero Dias foi o
autor do primeiro mural abstrato da América Latina. O mural, elaborado em
1948, foi pintado no prédio da Secretaria da Fazenda de Pernambuco. Apesar
de viver tão longe do Recife, os seus canaviais, casas-grandes, sobrados,
bem como o rio Capibaribe e
o mar de Boa Viagem, sempre
estavam presentes no imaginário do pintor. Na década de 1960, ele produziria
várias telas com retratos de mulheres. Depois dessa fase, pintaria flores,
paisagens e personagens diversos.
Em sua primeira fase
artística, Cícero Dias privilegiou aquarelas e óleos, e produziu os
seguintes quadros: Sonho de
uma prostituta (1930-1932), Engenho
Noruega (1933), Lavouras (1933), Porto (1933)
e Ladeira de São Francisco(1933).
Durante a segunda fase (1936-1960), onde prevaleceram a figuração e a
abstração, se destacaram as seguintes obras do artista plástico: Mulher
na janela (1936), Mulher
na praia (1944), Mulher
sentada com espelho (1944),Composição
sem título (1948), Exact (1958), Entropie (1959).
Por fim, em sua terceira fase (1960-2000), onde a mulher era um símbolo
constante, ele pintaria a Composição
sem título, em 1986.
Considerado como um
dos pioneiros do modernismo no Brasil, Cícero Dias foi amigo de vários
artistas modernistas, tais como o compositor Heitor Villa-Lobos, o artista
plástico Ismael Nery e o poeta Murilo Mendes. E, na França, fez amizade com
várias personalidades ilustres, a exemplo dos poetas André Breton e Paul
Eluard, e do pintor Pablo Picasso, que se encontrava asilado em Paris antes
do fim da Guerra Civil Espanhola. Este último tornara-se padrinho de sua
filha e, junto a ele, Cícero acompanharia a elaboração do quadro Guernica,
o famoso épico sobre aquela guerra. Além disso, pode-se dizer que Picasso
exerceu uma influência marcante nos trabalhos do artista pernambucano.
No ano 2000, o pintor
esteve no Recife para uma justa homenagem: a inauguração de uma praça com o
seu nome. Vale lembrar, contudo, que o logradouro público foi projetado pelo
próprio artista. E, em fevereiro de 2002, ele retornaria ao Recife para o
lançamento do livro Cícero
Dias:uma vida pela pintura, de autoria do jornalista Mário Hélio. Na
ocasião, expôs algumas de suas obras na Galeria Portal, em
São Paulo. Neste mesmo
ano, aos 93 anos de idade, inspirado em sua obra Eu
vi o mundo ele começava no Recife, o
artista criaria um trabalho relevante para o Recife: o piso da Praça do
Marco Zero, uma bela e enorme rosa dos ventos plantada no centro da cidade.
O artista plástico
conservou-se lúcido, saudável e produtivo até o fim de sua vida. No dia 28
de janeiro de 2003, aos 95 anos, ele faleceu em sua casa, na Rue
Long Champ, em Paris, onde residia há quarenta anos. Junto ao pintor,
estavam presentes a esposa, Raymonde, a única filha, Sylvia, e seus dois
netos. Cícero Dias foi sepultado no cemitério de Montparnasse,
na capital francesa.
(©
Fundaj)
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