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Arte cravada nas paredes

21/06/2009

 

 

Foto: Juan Esteves

Cícero Dias

Murais pernambucanos formam conjunto precioso e estão espalhados por espaços ao ar livre, instituições públicas e prédios do Recife

Júlio Cavani

Notabilizada por artistas mexicanos da primeira metade do século 20, como Diego Rivera e José Clemente Orozco, a arte muralista tem origens nas pinturas rupestres da pré-história e nas pirâmides egípcias. No Recife, no último mês, o formato voltou chamar atenção por causa da reinauguração de um conjunto de obras recém-restauradas, assinadas por Cícero Dias nas paredes internas da sede da Secretaria da Fazenda em 1948. 

Pela primeira vez, o público tem acesso aos trabalhos, que são considerados os primeiros murais abstratos da América Latina. Com cores e formas inspiradas nas paisagens do interior e do litoral, eles estão espalhados por três andares do edifício, integrados a sua arquitetura modernista. Como nem todos puderam ser recuperados, uma exposição com fotos e esboços montada no térreo mostra como era o conjunto completo.


Cícero Dias. Foto: Juliana Leitao/DP/D.A Press

Em Pernambuco, a arte mural também está presente nas ruas e em diversos espaços públicos, ornamentados por obras com assinaturas de pintores como Ferreira, Jairo Arcoverde, Reynaldo Fonseca, Francisco Brennand, Abelardo da Hora, Lula Cardoso Ayres e Bajado. Algumas se confundem com painéis, que se diferenciam pelo tamanho e por não terem sido feitos diretamente sobre as paredes (como ocorre nos trabalhos de João Câmara e José Cláudio no aeroporto). O muralismo também é uma referência forte para grafiteiros como Derlon e Galo, cujo trabalho consiste em preencher muros ao ar livre.

Segundo Lula Cardoso Ayres Filho, seu pai pode ter sido o maior muralista do Brasil, pois projetou mais de 90 obras com esse perfil. Ele sempre levava em consideração o local onde os murais seriam erguidos na hora de definir os temas ilustrados pelas figuras. Entre seus trabalhos mais vistos estão os do Cinema São Luiz, do antigo aeroporto e da Estação Central do Metrô.

Até por ser especializado em cerâmica, Francisco Brennand é um dos artistas que têm o maior número de murais no estado. Entre seus trabalhos mais famosos estão os construídos na Rua das Flores (a Batalha dos Guararapes), no Edifício Ana Regina (Rua Oliveira Lima), na Rua do Sol (no prédio da antiga Arapuã) e no Museu do Homem do Nordeste, além dos muros internos de sua Oficina Cerâmica na Várzea.

Bajado ficou conhecido por suas pinturas de pequeno porte, mas seus trabalhos mais vistos pelo público, com certeza, são os murais do salão interno do Mercado Eufrásio Barbosa, que emolduram plateias de milhares de pessoas, a cada show. Essas peças representam bem a obra do artista, pois retratam o carnaval de Olinda e o cotidiano da cidade. Um deles mostra casais que dançam em um clube de baile. Outro mostra o Homem da Meia-Noite em primeiro plano, com foliões desvairados no horizonte (pois a embriaguez e a lisergia também fazem parte da cultura olindense).

Aos 84 anos, Abelardo da Hora continua na ativa. Ele acaba de finalizar o projeto de um mural que vai ornamentar as paredes do Hospital Miguel Arraes, ainda em construção. Com o título O mal e a cura, a peça vai ter quatro metros de altura e 20 metros de extensão, e tem a saúde como tema, com representações de atividades médicas e hábitos de cura populares, como ex-votos, rezas e métodos para arrancar dentes com barbantes. 

Abelardo também é autor de murais localizados no Centro do Recife. Um deles retrata o encontro entre Peri e Ceci, personagens do livro O guarani, de José de Alencar, situado no edifício que leva o nome do escritor, localizado em uma rua homônima (na esquina com a Barão de São Borja). O mais conhecido fica no Edifício Joaquim Nabuco, confeccionado em homenagem ao abolicionista e ao fim da escravidão no Brasil. 

(© Diário de Pernambuco)


Quem foi Cícero Dias

Semira Adler Vainsencher

semiraadler@gmail.com

Pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco 

 

 

Verde é a cor da minha memória.

Cícero Dias

 

 

Cícero Dias nasceu no dia 5 de março de 1907, no Engenho Jundiá, no município de Escada, em Pernambuco. Foi o sétimo, dos onze filhos de Pedro dos Santos Dias e Maria Gentil de Barros e, ainda, pelo lado materno, neto do Barão de Contendas. Aos 13 anos de idade, foi para o Rio de Janeiro. Surpreendendo os seus familiares, decidiu tornar-se um pintor.

 

Em 1928, porém, na Cidade Maravilhosa, nenhuma galeria de arte se interessava por arte moderna. Neste sentido, a primeira exposição de Cícero - o mural Eu vi o mundo, que possuía quinze metros de largura - teve lugar em um hospício: foi o único espaço disponível que se conseguiu. Três anos depois, entretanto, ele abriria uma exposição no Salão de Belas Artes, a convite do pintor Di Cavalcanti. Rompendo com a escola clássica, as exposições e trabalhos do artista geravam debates e escândalos, já que poucos os entendiam. Inclusive, houve o caso de um homem que, com o auxílio de uma navalha, tentou destruir as suas obras.

 

Cícero Dias era amigo de Gilberto Freyre e, com o antropólogo, relembraria o seu passado de menino criado em engenho. Por ser simpatizante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), o artista foi perseguido em 1937, quando o então Presidente Getúlio Vargas instalou a ditadura do Estado Novo. E, várias vezes, ele teve o ateliê invadido por tropas policiais. Por essa razão, desgostoso com a realidade, o artista decidiu se mudar para Paris. Nesta cidade, em 1943, ele se casaria com a francesa Raymonde e teria uma filha.

                  

Durante a II Guerra Mundial, cabe registrar também que, por ser brasileiro, depois que o País rompeu relações diplomáticas com a Alemanha nazista e a Itália fascista, Cícero foi preso na cidade alemã de Baden-Baden, juntamente com o escritor João Guimarães Rosa, que fazia parte do mesmo grupo de detentos. Felizmente, entretanto, este grupo foi trocado por espiões nazistas que estavam encarcerados no Brasil. 

 

Cícero Dias foi o autor do primeiro mural abstrato da América Latina. O mural, elaborado em 1948, foi pintado no prédio da Secretaria da Fazenda de Pernambuco. Apesar de viver tão longe do Recife, os seus canaviais, casas-grandes, sobrados, bem como o rio Capibaribe e o mar de Boa Viagem, sempre estavam presentes no imaginário do pintor. Na década de 1960, ele produziria várias telas com retratos de mulheres. Depois dessa fase, pintaria flores, paisagens e personagens diversos.

            

Em sua primeira fase artística, Cícero Dias privilegiou aquarelas e óleos, e produziu os seguintes quadros: Sonho de uma prostituta (1930-1932), Engenho Noruega (1933), Lavouras (1933), Porto (1933) e Ladeira de São Francisco(1933). Durante a segunda fase (1936-1960), onde prevaleceram a figuração e a abstração, se destacaram as seguintes obras do artista plástico: Mulher na janela (1936), Mulher na praia (1944), Mulher sentada com espelho (1944),Composição sem título (1948), Exact (1958), Entropie (1959). Por fim, em sua terceira fase (1960-2000), onde a mulher era um símbolo constante, ele pintaria a Composição sem título, em 1986.  

Considerado como um dos pioneiros do modernismo no Brasil, Cícero Dias foi amigo de vários artistas modernistas, tais como o compositor Heitor Villa-Lobos, o artista plástico Ismael Nery e o poeta Murilo Mendes. E, na França, fez amizade com várias personalidades ilustres, a exemplo dos poetas André Breton e Paul Eluard, e do pintor Pablo Picasso, que se encontrava asilado em Paris antes do fim da Guerra Civil Espanhola. Este último tornara-se padrinho de sua filha e, junto a ele, Cícero acompanharia a elaboração do quadro Guernica, o famoso épico sobre aquela guerra. Além disso, pode-se dizer que Picasso exerceu uma influência marcante nos trabalhos do artista pernambucano.

No ano 2000, o pintor esteve no Recife para uma justa homenagem: a inauguração de uma praça com o seu nome. Vale lembrar, contudo, que o logradouro público foi projetado pelo próprio artista. E, em fevereiro de 2002, ele retornaria ao Recife para o lançamento do livro Cícero Dias:uma vida pela pintura, de autoria do jornalista Mário Hélio. Na ocasião, expôs algumas de suas obras na Galeria Portal, em São Paulo. Neste mesmo ano, aos 93 anos de idade, inspirado em sua obra Eu vi o mundo ele começava no Recife, o artista criaria um trabalho relevante para o Recife: o piso da Praça do Marco Zero, uma bela e enorme rosa dos ventos plantada no centro da cidade.

 

O artista plástico conservou-se lúcido, saudável e produtivo até o fim de sua vida. No dia 28 de janeiro de 2003, aos 95 anos, ele faleceu em sua casa, na Rue Long Champ, em Paris, onde residia há quarenta anos. Junto ao pintor, estavam presentes a esposa, Raymonde, a única filha, Sylvia, e seus dois netos. Cícero Dias foi sepultado no cemitério de Montparnasse, na capital francesa.

 

(© Fundaj)


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