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Quando o Bandeira bate à porta

27/06/2009

 

 

 

Mais de 40 anos depois de sua morte, o poeta pernambucano Manuel Bandeira ainda é pedra de toque para a nova poesia brasileira. Com seu estilo simples e direto, o autor, que "soube estar, a um só tempo, dentro e fora do modernismo", como diz Eucanaã Ferraz, ensina que poesia não é feita só de "rendinhas, sabiás, corações engalanados" – palavras de Angélica Freitas. E, por isso mesmo, tem-se mantido como guia, uma espécie de "estrela da vida inteira", como cita e ao mesmo tempo nomeia Heitor Ferraz, para toda a lírica que se quer agora.

É exatamente essa influência poderosa sobre a nova geração de poetas que estará em pauta na mesa "Evocação de um poeta", sexta, na Festa Literária Internacional de Paraty. Nela, Eucanaã, Heitor e Angélica – mediados pelo também poeta Carlito Azevedo – contam mais detalhes de sua aproximação com a obra bandeiriana. Nestas páginas, os três eleitos narram sua experiência pessoal com o autor de Itinerário de Pasárgada. O que, nos três relatos, aparece sobretudo na forma de uma amizade duradoura, inescapável e deliciosa, com aquele senhor dentuço que carregava um guarda-chuva chamado Irônico e que, até hoje, anda por aí formando poetas.

(© JB Online)


Uma obra exigente, que se entrega aos poucos

Eucanaã Ferraz*

Alguém já disse que há dois tipos de poetas: os que admiramos e os que amamos. Amo e admiro Manuel Bandeira. Talvez não seja pertinente pensar as relações com os poetas a partir dessas categorias – admiração e amor. Mas acho curioso que Bandeira sempre me pareça um autor que está em todos os "lugares". Na sua poesia há, por exemplo, adesão à realidade e, simultaneamente, a vontade de desprender-se de tudo que pareça circunstancial. Se essa não é uma condição exclusivamente bandeiriana, também é certo que nessa poesia ela é radical: de um lado, há um total apego ao cotidiano – o irresistível desejo de inserir-se no presente, no instante, com seu frescor e efemeridade; de outro lado, porém, há um encaminhamento sereno mas decidido para fora da história, para um tempo suspenso, feito de mistérios e revelações. Esse mesmo movimento duplo em relação ao tempo repete-se quanto ao espaço: se a poesia de Bandeira é atravessada por endereços, ruas, cidades, paisagens e outras marcas de uma paisagem palpável, ela é, simultaneamente, atópica; seu desejo é um não-lugar: Pasárgada. Do mesmo modo, o autor de "Evocação do Recife" soube estar, a um só tempo, dentro e fora do modernismo, mantendo, por isso, uma lucidez excepcional.

Sempre li Bandeira, que nas minhas aulas de literatura – na faculdade de letras da UFRJ – é presença certa. Como professor, tento situá-lo historicamente, mas também busco identificar as linhas de força temáticas e os modos construtivos específicos de sua escrita. Poderia resumir dizendo que procuro mostrar o quanto os versos de Bandeira são complexos estética e existencialmente e o quanto a sua obra – ao contrário do que se pode pensar – é exigente e se entrega aos poucos.

Estamos falando de um autor para toda a vida. Em meu segundo livro, Martelo (1997), há um breve poema intitulado "Para Manuel Bandeira": "Também é o beco/ o que vejo./ Mas adivinho a Glória,/ a baía, o chão do horizonte./ E sei que,/ no escuro,/ o bico de um barco me olha". Trata-se, está claro, de uma retomada do "Poema do beco". E agora, não por acaso, no quinto livro, Cinemateca (2008), o poeta reaparece num poema bem mais longo, chamado "Bandeira e guarda-chuva". O texto trabalha com um dado biográfico específico: Bandeira trazia sempre consigo um guarda-chuva, que pertencera a seu pai e que – eis o mais curioso – tinha um nome excepcional: Irônico. No meu poema, os dois estão em cena: "O poeta magro, o guarda-chuva magro,/ o poeta dentuço, o chapéu e/ seu cabo.// Para eles não faziam caso o sol/ e o azul da meteorologia: o poeta/ não se apartava de sua barraca// e seguiam assim, em rigorosa dupla,/ como se expectassem um chuvisco/ rápido ou uma tempestade.// Mesmo dobrada, a abóbada preta/ não se acanhava, e ria, maliciosa,/ melancólica, de quem acreditasse no tempo// como coisa firme, na vida como coisa/ firme, no tempo como coisa,/ na vida como rio que// nunca se desdobra em catadupa (…)".

Gosto de pensar que escrevo poesia, em grande medida, por causa desse poeta, que escrevo para poder, algum dia, me aproximar dele, tomando-o como mestre seguro. Isso é querer muito, eu sei.

(© JB Online)


Poemas sem firulas, pela utilidade pública

Angélica Freitas*

Eu tinha uns 10 anos quando li Manuel Bandeira pela primeira vez. Foi no colégio. A professora de português nos trouxe este poema:

"Vi ontem um bicho/ Na imundície do pátio/ Catando comida entre os detritos.// Quando achava alguma coisa,/ Não examinava nem cheirava;/ Engolia com voracidade.// O bicho não era um cão,/ Não era um gato,/ Não era um rato.//O Bicho, meu Deus, era um homem."

Foi o primeiro poema sem firulas que li na minha vida. Me nocauteou. Não havia nada ali só para embelezar. Desde pequenos, todos associávamos poesia a rendinhas, sabiás, corações engalanados. Mas esse Bandeira era diferente. Ele me fez imaginar o bicho homem no pátio de casa. Havia um asilo de mendigos lá perto, então desses bichos já tinha visto uns quantos. Ainda hoje, imagino o bicho no pátio da minha velha casa. E quando sonho que estou em casa, é sempre naquela casa antiga. O poema deve estar armazenado no mesmo lugar que as recordações da infância.

Gostaria de dizer que a leitura desse poema foi o início de uma linda amizade, mas demorou um pouco. É que na escola começou a era das interpretações de texto, que para mim eram terríveis. Tínhamos de expressar o que o poeta quis dizer com seu poema. Era pior ainda, porque tínhamos de adivinhar o que a professora pensou que o poeta queria dizer. No caso do Bandeira, ele disse exatamente o que queria dizer, não havia mistério.

Dediquei pouco tempo aos poetas das antologias escolares, à matemática, às ciências, e, cruz-credo, à educação moral e cívica. Meus boletins eram sofríveis. Minha cabeça andava muito cheia de descobertas fora das grades curriculares.

Nova aproximação à poesia de Manuel Bandeira viria quando era adolescente, sentava no fundo da sala e deixava que minha franja me separasse do mundo. Um colega me emprestou um livro de uma poeta carioca. Era a coisa mais estranha e fascinante que eu já tinha lido. A poeta era fã do Bandeira. Voltei a ele aos poucos, pela mão muito cool da Ana Cristina César.

Desde então, volto sempre. E faço um serviço de utilidade pública: leio poemas do Bandeira para amigos, especialmente os de Libertinagem e Estrela da manhã, meus livros favoritos. Tomamos alegria, lembramos dos nossos porquinhos-da-índia, humildemente pensamos na vida e nas lagartas listadas que amamos. Muitos amigos se surpreendem, não pensavam que Manuel Bandeira podia ser "tão bom".

Minha vida me fez uma pessoa arredia a interpretações. Sou uma pessoa que cria. Deste lugar, posso dizer que é uma sorte ler a poesia do Manuel Bandeira.

(© JB Online)


Um grande companheiro de viagem, à roda do quarto

Heitor Ferraz*

Na adolescência, quando comecei a me interessar por poesia, eu lia os poetas procurando respostas imediatas. Procurava aquele poema que me dissesse algo, que me ajudasse diante de algum impasse, alguma dor indeterminada. Posso dizer que Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade foram bons companheiros nessas horas, assim como os poetas que eu tinha lido antes deles, como Chacal, Chico Alvim, Paulo Leminski e Ana Cristina César, que aprendi a chamar de "meus irmãos mais velhos", como disse uma vez Carlito Azevedo. Por essa época, vale dizer, também já era muito apaixonado por Oswald de Andrade e Mário de Andrade.

Porém, Bandeira e Drummond – e aqui vou ser obrigado a plagiar Chico Alvim – me serviam de "paisagem moral". Eu procurava neles a experiência de vida que não tinha vivido, ou ainda, a experiência que eu, com meus instrumentos limitados, não sabia lidar. Encontrava algumas respostas na música brasileira, em Chico e Caetano, por exemplo. Mas não dava para ouvir um LP no ônibus, indo para a escola. Não existia o iPod. Então, todos os dias eu levava meus poetas dentro de uma velha bolsa de couro.

Por isso tenho, até hoje, uma certa dificuldade em falar de certos poetas objetivamente. É difícil afastar do comentário o elemento particular – tanto a minha experiência com a poesia, uma experiência, como disse, imediata, quanto toda lembrança que cada poema desperta em mim. Bandeira foi um grande companheiro de viagem à roda do quarto. Tinha lugar garantido ao lado da cama – apesar daquela capa, que era uma foto de uma estrela brilhando por todos os lados, de um mau gosto de doer. Ainda bem que depois encontrei uma edição da Aguilar, de 1974, e que até hoje me acompanha, e pude me livrar daquela estrela espírita.

Mas foi na faculdade que o imediatismo cedeu terreno para um conhecimento mais aprofundado da poesia de Bandeira. Tive a sorte grande, logo no primeiro ano, de ter Davi Arrigucci Jr. como professor de Introdução aos Estudos Literários. Ele ainda não tinha publicado Humildade, paixão e morte, mas já estava escrevendo os ensaios que compõem o livro. E nós, seus alunos, um bando de calouros, éramos os privilegiados que ouvíamos, num silêncio absoluto, suas análises.

O primeiro poema do curso foi "Gazal em louvor de Hafiz". Como ele conhecia bem os poemas, a própria maneira como lia já era uma análise. Terminava de ler e era como se já tivéssemos entendido tudo pela entonação que Davi colocava, delicadamente, em cada palavra, cada verso, cada pausa. Nada de leitura dramática, como os atores adoram fazer. Era uma leitura lírica, em tom menor.

A análise era minuciosa, centrada no texto, mas sempre expandindo o universo de referências – contexto histórico, dados da vida do escritor, observações sobre a linguagem da poesia etc. Bandeira, que era meu poeta de cabeceira, o qual eu lia buscando um ombro, passou também a ser uma fonte inesgotável de pesquisa, de conhecimento de poesia e das sutilezas da arte poética (como é lindo o ensaio dele sobre a poesia de Mallarmé, como são francas as cartas com Mário de Andrade).

Daí para ler toda sua obra, principalmente o magistral Itinerário de Pasárgada, foi um passo. E não me canso de dizer que Itinerário é um das obras mais bonitas da literatura brasileira. Muito do que aprendi de poesia veio desse livro, escrito numa prosa rara, envolvente, que guarda o tom de suas crônicas, mas num registro mais amplo e de maior fôlego.

Bandeira, para mim, com "Poemeto erótico", "Vulgívaga", "A dama branca", "O silêncio", "Noturno da Rua da Lapa", "O Martelo", "Maçã", "Água-Forte", "Canção da Parada do Lucas", "Piscina", "Poema só para Jaime Ovalle", "Boi Morto", "Noturno do Morro do Encantado", "Consoada" e tantos outros, é uma "estrela da vida inteira". Minha ediçãozinha verde desbeiçada da Aguilar seguirá sempre comigo – até à hora da morte.

(© JB Online)



Crítica/"Crônicas Inéditas 2"


Bandeira cria crônicas que têm seriedade da crítica

Em textos surpreendentes, autor une erudição, graça humilde e desconfiança

NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Sobre um retrato que Portinari fez de Manuel Bandeira, o próprio poeta se diz retratado em uma ambiência de "tranquilo lirismo corrigido pelo ar de pé atrás". Nada melhor do que essa autodefinição para compreender a poesia e, mais ainda, a crônica crítica do nosso maior "poeta menor". Bandeira, o autor homenageado da 7º Flip, é menor -menor porque seu corte, sua entrada na vida, é feito por portinholas, e porque sua palavra vem do húmus, da terra da língua. E, nessa minoridade lírica, não há outro maior do que ele.

Em "Crônicas Inéditas 2", lançamento da Cosac Naify, a precisão do pé atrás, da desconfiança necessária a todo crítico, aliada a uma graça humilde ao mesmo tempo erudita e familiar, fazem com que a leitura seja sempre uma surpresa. Marques Rebelo, por exemplo, é o conhecedor da "humanidade da Rua Emerenciana"; a palavra "sophistication" é "danada pra atrapalhar a gente"; a um outro Manuel Bandeira, homônimo mas péssimo pintor, o autor diz: "Xará, não leve a mal"; e, para configurar o fenômeno Brasil, nada como essa frase, sobre um cavalo azarão: "A revolução não dará talvez a felicidade ao Brasil, mas afinal de contas o Brasil é capaz de produzir Mossoró".

Eis aí nosso país, com o lirismo e o pé atrás que nem Macunaíma nem Serafim Ponte Grande conseguiram (ou puderam) ter. E, simultaneamente a essa delicadeza eficaz, nestas crônicas encontra-se um traço que, infelizmente, tem sido raro nas crônicas e críticas atuais: saber falar mal; bem mal.

Tal tradução é "péssima"; os pintores brasileiros "não sabem pintar"; outra tradutora é ótima, mas o livro é "medíocre"; e, para arrematar, "a vantagem dos críticos está em não comprar; a desvantagem, às vezes, em ler". Faz realmente muita falta a possibilidade de fundir a ligeireza da crônica à suposta seriedade da crítica, fusão que permite que os aspectos negativos de um livro ou de uma obra soem mais como possibilidades de abertura do que como verdades intocáveis.

Como em tudo na obra de Bandeira, não existem verdades ou conclusões fechadas. A poesia, língua da dubiedade e das brechas, está por toda a parte. E seu amigo Mário de Andrade já dizia desconfiar seriamente das pessoas portadoras de certezas. Como exemplo da recusa de Bandeira à mitomania, há no livro uma crônica fascinante sobre Machado de Assis, já então tido como intocável.

O poeta conta como teve a "fortuna de conhecer o mestre" dentro de um bonde, onde, vaidoso por lembrar de uma estrofe de "Os Lusíadas", se encabula em seguida por esquecer a anterior. Mas a reverência ao mestre não o impede de chamá-lo de "grande esquizóide" e de dizer que sua vida foi pautada por um grande egoísmo.

Consciência histórica

Julio Castañon Guimarães fez a organização, o posfácio e as notas destas crônicas, que começaram a ser escritas em periódicos e revistas a partir dos anos 30, uma década iluminada e iluminista para a formação da consciência nacional. A euforia dos anos 20, de que Bandeira não foi militante ativo, arrefece e dá lugar a uma profunda consciência histórica.

Como mostra o organizador, estes textos partilham desta atmosfera. Junto com estas crônicas em tudo essenciais, a editora lança também a "Apresentação da Poesia Brasileira" (R$ 69, 504 págs.), com posfácio de Otto Maria Carpeaux, livro em que o poeta exerce ainda o papel de professor de literatura. Não temos mais o professor, nossa crítica anda rasa, "a chácara triste não existe mais", mas "o menino", esse "ainda existe". Leia.

CRÔNICAS INÉDITAS 2

Autor: Manuel Bandeira
Editora: Cosac Naify
Quanto: R$ 69 (464 págs.)
Avaliação: ótimo

LANÇAMENTOS HOMENAGEIAM O AUTOR

As editoras Nova Fronteira e Nova Aguilar promovem outros lançamentos ligados à obra de Manuel Bandeira na Flip. Na quinta, às 20h30, acontece o lançamento de novas edições de "Poesia Completa e Prosa" e "Estrela da Vida Inteira". O evento ocorre no Armazém do Cais (r. da Praia, nº 1).

"Poesia Completa..." (1.704 págs., R$ 290,90) é organizado por André Seffrin e inclui uma seleção de prosas. "Estrela..." (464 págs., R$ 69, incluindo CD com leituras de poemas pelo próprio Bandeira) reúne obras como "A Cinza das Horas", "Carnaval" e "Libertinagem".

(© Folha de S. Paulo)


Atualização em 28.06.2009:

Bandeira sempre de bom humor

Manuel Bandeira, homenageado da Flip, tem o seu lado irônico ressaltado por livros e amigos

Schneider Carpeggiani
carpeggiani@gmail.com

Irene era preta e Irene era boa. Tão boa que nem precisava de licença para entrar no céu. Mas talvez seu criador, o poeta Manuel Bandeira, tenha precisado de algum auxílio para receber a misericórdia divina. O autor costumava criar pequenos poemas bem ácidos (e ácido aqui deve ser lido como eufemismo) para atacar suas inimizades. E muitas vezes com versos que não se preocupavam com os limites do bom gosto. “Ele era um homem que não gostava de ser provocado e reagia”, recorda Edson Nery da Fonseca, amigo e estudioso de Bandeira.

Esse lado B não está nas antologias que ressaltam o seu lado lírico, que lhe garantiu o status de um dos maiores (o maior?) poetas brasileiro. São textos dispersos por cartas ou guardados na memória de quem conviveu com o autor. “Um deles, eu escutei e decorei. Foi da discussão com Mário Melo”, lembra Edson Nery. Quando o jornalista reclamou pela imprensa, em 1958, que o Estado estava gastando muito com a estátua do poeta na Rua da União, a resposta foi: “Mandei fazer uma estátua/ Por um novo Donatello/ Uma estátua mais que equestre/ Eu montado em Mário Melo”.

Em outra ocasião, ao brigar com o folclorista Renato Almeida, foi grosseiro: “Mulata baiana um dia/ Por um mal jeito se peida/ Essa mulata é a Bahia/ O peido Renato Almeida”. Quando Renato faleceu, Bandeira escreveu um artigo cheio de elogios. “Ele era do tipo de homem que não falava mal dos mortos”, destaca Edson Nery. Alguns dos versos lembrados por Edson Nery, ao seu pedido, não foram aqui reproduzidos. A família dos “homenageados” podia não gostar...

O lado mais pessoal de Bandeira Edson Nery leva para a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que tem início quarta-feira, e presta homenagem ao poeta. “No início eu resisti um pouco em viajar, porque tenho problemas nas pernas. Mas eles fizeram tanta questão, que não pude dizer não”. Ao seu lado, estarão Zuenir Ventura (que foi aluno de Bandeira) e Humberto Werneck. A conferência de abertura também será bandeiriana, na quarta-feira, com Davi Arrigucci Jr., autor de ensaios famosos sobre o autor com Humildade, paixão e morte ou A beleza humilde e áspera.

A homenagem da Flip instigou o lançamento de livros do e sobre Bandeira. Edson Nery da Fonseca recebe uma nova versão do seu ensaio sobre a questão religiosa no autor. A editora Cosac Naify vem com três lançamentos. São os ensaios e críticas de Crônicas inéditas 2 e Apresentação da poesia brasileira, que mostram um pensador literário com um humor bem ácido, e a tradução Macbeth, de William Shakespeare.

(© JC Online)


Um pouco do veneno de Bandeira

Em suas crônicas, só agora lançadas, Bandeira mostra-se implacável com quem o provocava e ácido na hora de analisar a literatura brasileira

Manuel Bandeira não era só implacável com quem o provocava por poemas minúsculos com alta dosagem de veneno. Também sabia ser ácido na hora de analisar a literatura brasileira. É o que aparece em Crônicas inéditas 2, que dá continuidade ao excelente trabalho da Cosac Naify em reerguer, com edições caprichadas, a obra do poeta. Apesar do nome “crônicas” no título, a maioria dos textos é formada por críticas publicadas na imprensa.

Se no primeiro volume, Crônicas inéditas 1, era possível encontrar um autor Oficial com maiúscula, aqui, Manuel Bandeira está à vontade para ir na jugular. Ele faz questão de frisar que a crítica precisa ser o “sal da terra” e que, não havendo choque, “aí sim, não existe necessidade nenhuma de crítica”. E, como crítico, gostava de lançar o tal do sal na produção dos seus conterrâneos – “A poesia anda rara, e fraquinha em geral, por estas bandas da língua. Nas bandas de além, no entanto, ela continua a viçar na admirável tradição que vem desde os cancioneiros.”

Sobre Sérgio Milliet, por exemplo, Bandeira é implacável na sua avaliação: “Sérgio Milliet é da geração paulista que fez a renovação da nossa poesia. Mas eu sempre notei nos seus poemas um excesso de intelectualismo que me fazia dizer de mim para mim: este rapaz é poeta, sem dúvida, mas será um dia melhor crítico do que poeta. De fato, sem abandonar de todo a poesia (deu-nos em 1927 uma coleção de Poemas, poesia já ‘entre duas idades, onde passa um gosto de saudade’), Sérgio Milliet definiu-se com magistral segurança não só na crítica literária como na de artes plásticas. Como havia o crítico no poeta, muitas vezes palpitando indiscretamente, existe sempre o poeta no crítico, mas aqui ‘duplo’ indispensável, dando uma rica franja de subsconsciente poético aos raciocínios solidamente conscientes da crítica objetiva.”

Em outro momento, é cruel ao analisar o destino que o Brasil oferecia às revistas de vanguarda: “No quadro das endemias que pesam sobre o Brasil não há só o paludismo, a ancilostomíase, a moléstia de Chagas e o tracoma. Há também o mal das revistas literárias. O mal já se chamou dos sete números. Isso foi antigamente, quando ainda não se conhecia bem a doença. A experiência destes últimos quinze anos mostrou que ela pode matar, e mata quase sempre, em dois ou três números. Lembram-se da Estética? Nasceu como esses bebês de cinco quilos, morena e robusta como o seu diretor Prudente de Morais, neto. No terceiro mês estava enterrada. Klaxon, Terra roxa, a terceira Revista do Brasil, a Revista de antropofagia (que nem por comer gente se salvou)... Enfim, essas eram revistas de vanguarda – que vivem da vanguarda. Ora, a vanguarda entre nós são os Dezoito do Forte de Copacabana.”

O material reunido em Crônicas inéditas 2 é indispensável para quem quer entender quem foi Manuel Bandeira para além da imagem oficial que só um autor do seu status é capaz de ter. É por isso que, não deixa de ser curioso, que esse livro seja lançado ao lado do estudo Apresentação da poesia brasileira, que traz um Bandeira bem mais formal ao pensar a história da literatura nacional. Os dois lados da moeda de um gênio. (S.C.)

» Os textos reproduzidos aqui são do Condomínio dos proprietários dos direitos intelectuais de Manuel Bandeira

(© JC Online)


Bandeira desdobrado

Homenageado pela Flip, poeta tem sua face de cronista, crítico literário e de artes plásticas destacada em livros lançados nesta semana Ubiratan Brasil

O poeta Manuel Bandeira mantinha no Rio de Janeiro uma rotina saborosa - visitas a exposições de arte, encontros com artistas estrangeiros que passavam pela cidade, sessões de cinema para admirar a beleza de Greta Garbo, leitura de clássicos diversos, troca de cartas com escritores amigos. São os hábitos mundanos da sociedade carioca que se sobressaem de uma leitura ligeira de Crônicas Inéditas 2 (480 págs., R$ 69), segundo volume organizado por Júlio Castañon Guimarães com praticamente todos os 130 textos em prosa escritos pelo poeta entre novembro de 1930 e janeiro de 1944 e que a Cosac Naify lança nesta semana. Não é esse aspecto, porém, que interessa no livro. "O quotidiano carioca boêmio e musical ocupa parcela reduzida das crônicas", observa Guimarães, no posfácio da edição. Na verdade, acredita ele, as colaborações do poeta para a imprensa são peças de um amadurecido exercício, o desenvolvimento de uma longa, inteligente e refinada reflexão.

Nascido no Recife, Bandeira (1886-1968) é o escritor homenageado da 7ª Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, que começa na quarta-feira e, até domingo, terá uma série de eventos relativos à obra do poeta (veja no quadro ao lado). No rastro da celebração, além do segundo volume de crônicas, a Cosac Naify lança ainda Apresentação da Poesia Brasileira (504 páginas, R$ 69), projeto com que Bandeira pretendeu apresentar os poetas nacionais ao leitor estrangeiro; e sua tradução da peça Macbeth, de Shakespeare (208 páginas, R$ 49). A editora Nova Aguilar, por sua vez, prepara o lançamento da nova edição de Poesia Completa e Prosa (1.074 páginas, R$ 290), portentoso volume organizado por André Seffrin. Ele também é responsável por fixar a poesia de Estrela da Vida Inteira (Nova Fronteira, 464 páginas, R$ 69), que ganha novo projeto de capa e gráfico, além de vir com um CD de áudio contendo leituras de poemas pelo próprio Bandeira.

Mais conhecido como poeta, Manuel Bandeira teve, contudo, um papel decisivo em outras áreas da cultura, como crítico literário e de artes visuais, professor, compositor, autor de histórias infantis e tradutor de clássicos da literatura - além de Shakespeare, traduziu Schiller e Proust. "Não vejo isso exatamente como confluência de estilos, mas como um trabalho no sentido de afinar-se consigo mesmo, aquela conquista solitária que é se encontrar na sua linguagem", comenta André Seffrin, em entrevista ao Estado. "Ele foi aos poucos descobrindo a própria voz, que, a partir de Ritmo Dissoluto ou de Libertinagem, assumiu seu perfil mais bandeiriano, a face, digamos, mais característica do Bandeira que conhecemos. E foi a partir dos anos 1930 que ele realmente se encontrou, inclusive como cronista, mais sintonizado com seus temas e sua linguagem."

De fato, em Crônicas Inéditas 2, é possível notar uma preocupação mais detalhada sobre assuntos que escolhia como tema. Já no primeiro texto, Iniciação em Marcel Proust, Bandeira confessa seu fracasso inicial ao tentar (e não conseguir) ler a obra do escritor francês. "Há sempre que vencer os arames farpados das incidentes proustianas", justifica ele que, como Andre Gide, conseguiu depois ultrapassar tais resistências para então sentir "sua prosa de ritmo uniforme e toda amarrada de conjunções e incidentes restritivas ou explicativas, ?uma espécie de vida sentimental e contínua?".

O volume traz ainda um importante questionamento crítico que, de certa forma, envolvia seu próprio trabalho - numa crônica sobre a poesia de Machado de Assis, Bandeira comenta ser arriscado igualmente para um poeta lançar-se à prosa. "Entra ele nesse caso numa competência muito mais ingrata que a dos seus confrades: a competência consigo próprio." E, como exemplo do dilema, ele demonstra que, apesar de uma dúzia de poemas apresentar a mesma qualidade de seus melhores contos e romances (como O Desfecho, Círculo Vicioso e Mundo Interior), era na prosa que o Bruxo do Cosme Velho aproximava-se da genialidade. Entretanto, apesar dessa distância, alguns poemas de Machado, principalmente Uma Criatura, anunciam o pessimismo irônico e o estilo nu e seco que dominaram a segunda fase do escritor. "Toda a sua amarga filosofia estava expressa e esgotada naqueles poucos e admiráveis poemas", escreveu o poeta.

Leitor atento dos clássicos e dos novos, Bandeira sentiu-se à vontade, em Apresentação da Poesia Brasileira, para revelar um panorama crítico dos autores, escolas e movimentos que marcaram o gênero no País, de José de Anchieta ao concretismo. O homem certo para tal ofício, na avaliação do crítico Otto Maria Carpeaux, que assina o posfácio da obra. Para ele, poesia é a arte verbal de comunicar experiências inefáveis. "E a de Bandeira era a gravíssima doença (pulmonar) que lhe destruiu a mocidade, e a que, no entanto, conseguiu dominar." Assim, a poesia brasileira cruzava, naquele momento, com a expressiva realização da experiência pessoal de Bandeira.

Para a segunda parte do livro, o poeta organizou uma antologia com 125 poemas de 55 autores, dos grandes clássicos, como Álvares de Azevedo, até bissextos, como Pedro Nava, e talentos em ascensão, como Ferreira Gullar. "Bandeira costumava ser muito claro e sincero em seus apontamentos, seja em matéria de jornal ou revista (em crônicas, em ensaios), seja na correspondência com amigos, em parte ainda inédita", observa André Seffrin. "Costumava apontar com extrema clareza o que a seu ver não funcionava num poema ou num romance. Ganhou alguns inimigos por conta disso."

Era implacável também ao escolher textos para traduzir. Bandeira considerava Macbeth, "senão a mais profunda, a mais sinistra e sanguinária tragédia de Shakespeare". Em sua tradução, o poeta manteve os diálogos em verso, além de destacar, na introdução, expressões que considerava preciosas, como "uma história contada por um idiota, cheia de ruído e fúria e sem nenhum sentido".

(© Estadão)


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MANUEL BANDEIRA (Releituras)

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