Mais de 40 anos depois de sua morte, o
poeta pernambucano Manuel Bandeira ainda é pedra de toque para a nova poesia
brasileira. Com seu estilo simples e direto, o autor, que "soube estar, a um
só tempo, dentro e fora do modernismo", como diz Eucanaã Ferraz, ensina que
poesia não é feita só de "rendinhas, sabiás, corações engalanados" –
palavras de Angélica Freitas. E, por isso mesmo, tem-se mantido como guia,
uma espécie de "estrela da vida inteira", como cita e ao mesmo tempo nomeia
Heitor Ferraz, para toda a lírica que se quer agora.
É exatamente essa influência poderosa sobre
a nova geração de poetas que estará em pauta na mesa "Evocação de um poeta",
sexta, na Festa Literária Internacional de Paraty. Nela, Eucanaã, Heitor e
Angélica – mediados pelo também poeta Carlito Azevedo – contam mais detalhes
de sua aproximação com a obra bandeiriana. Nestas páginas, os três eleitos
narram sua experiência pessoal com o autor de Itinerário de Pasárgada. O
que, nos três relatos, aparece sobretudo na forma de uma amizade duradoura,
inescapável e deliciosa, com aquele senhor dentuço que carregava um
guarda-chuva chamado Irônico e que, até hoje, anda por aí formando poetas.
(©
JB Online)
Uma obra
exigente, que se entrega aos poucos
Eucanaã Ferraz*
Alguém já disse que há dois tipos de poetas: os que admiramos e os que
amamos. Amo e admiro Manuel Bandeira. Talvez não seja pertinente pensar as
relações com os poetas a partir dessas categorias – admiração e amor. Mas
acho curioso que Bandeira sempre me pareça um autor que está em todos os
"lugares". Na sua poesia há, por exemplo, adesão à realidade e,
simultaneamente, a vontade de desprender-se de tudo que pareça
circunstancial. Se essa não é uma condição exclusivamente bandeiriana,
também é certo que nessa poesia ela é radical: de um lado, há um total apego
ao cotidiano – o irresistível desejo de inserir-se no presente, no instante,
com seu frescor e efemeridade; de outro lado, porém, há um encaminhamento
sereno mas decidido para fora da história, para um tempo suspenso, feito de
mistérios e revelações. Esse mesmo movimento duplo em relação ao tempo
repete-se quanto ao espaço: se a poesia de Bandeira é atravessada por
endereços, ruas, cidades, paisagens e outras marcas de uma paisagem
palpável, ela é, simultaneamente, atópica; seu desejo é um não-lugar:
Pasárgada. Do mesmo modo, o autor de "Evocação do Recife" soube estar, a um
só tempo, dentro e fora do modernismo, mantendo, por isso, uma lucidez
excepcional.
Sempre li Bandeira, que nas minhas aulas de literatura – na faculdade de
letras da UFRJ – é presença certa. Como professor, tento situá-lo
historicamente, mas também busco identificar as linhas de força temáticas e
os modos construtivos específicos de sua escrita. Poderia resumir dizendo
que procuro mostrar o quanto os versos de Bandeira são complexos estética e
existencialmente e o quanto a sua obra – ao contrário do que se pode pensar
– é exigente e se entrega aos poucos.
Estamos falando de um autor para toda a vida. Em meu segundo livro,
Martelo (1997), há um breve poema intitulado "Para Manuel Bandeira": "Também
é o beco/ o que vejo./ Mas adivinho a Glória,/ a baía, o chão do horizonte./
E sei que,/ no escuro,/ o bico de um barco me olha". Trata-se, está claro,
de uma retomada do "Poema do beco". E agora, não por acaso, no quinto livro,
Cinemateca (2008), o poeta reaparece num poema bem mais longo, chamado
"Bandeira e guarda-chuva". O texto trabalha com um dado biográfico
específico: Bandeira trazia sempre consigo um guarda-chuva, que pertencera a
seu pai e que – eis o mais curioso – tinha um nome excepcional: Irônico. No
meu poema, os dois estão em cena: "O poeta magro, o guarda-chuva magro,/ o
poeta dentuço, o chapéu e/ seu cabo.// Para eles não faziam caso o sol/ e o
azul da meteorologia: o poeta/ não se apartava de sua barraca// e seguiam
assim, em rigorosa dupla,/ como se expectassem um chuvisco/ rápido ou uma
tempestade.// Mesmo dobrada, a abóbada preta/ não se acanhava, e ria,
maliciosa,/ melancólica, de quem acreditasse no tempo// como coisa firme, na
vida como coisa/ firme, no tempo como coisa,/ na vida como rio que// nunca
se desdobra em catadupa (…)".
Gosto de pensar que escrevo poesia, em grande medida, por causa desse
poeta, que escrevo para poder, algum dia, me aproximar dele, tomando-o como
mestre seguro. Isso é querer muito, eu sei.
(©
JB Online)
Poemas sem firulas,
pela utilidade pública
Angélica Freitas*
Eu tinha uns 10 anos quando li Manuel Bandeira pela primeira vez. Foi no
colégio. A professora de português nos trouxe este poema:
"Vi ontem um bicho/ Na imundície do pátio/ Catando comida entre os
detritos.// Quando achava alguma coisa,/ Não examinava nem cheirava;/
Engolia com voracidade.// O bicho não era um cão,/ Não era um gato,/ Não era
um rato.//O Bicho, meu Deus, era um homem."
Foi o primeiro poema sem firulas que li na minha vida. Me nocauteou. Não
havia nada ali só para embelezar. Desde pequenos, todos associávamos poesia
a rendinhas, sabiás, corações engalanados. Mas esse Bandeira era diferente.
Ele me fez imaginar o bicho homem no pátio de casa. Havia um asilo de
mendigos lá perto, então desses bichos já tinha visto uns quantos. Ainda
hoje, imagino o bicho no pátio da minha velha casa. E quando sonho que estou
em casa, é sempre naquela casa antiga. O poema deve estar armazenado no
mesmo lugar que as recordações da infância.
Gostaria de dizer que a leitura desse poema foi o início de uma linda
amizade, mas demorou um pouco. É que na escola começou a era das
interpretações de texto, que para mim eram terríveis. Tínhamos de expressar
o que o poeta quis dizer com seu poema. Era pior ainda, porque tínhamos de
adivinhar o que a professora pensou que o poeta queria dizer. No caso do
Bandeira, ele disse exatamente o que queria dizer, não havia mistério.
Dediquei pouco tempo aos poetas das antologias escolares, à matemática,
às ciências, e, cruz-credo, à educação moral e cívica. Meus boletins eram
sofríveis. Minha cabeça andava muito cheia de descobertas fora das grades
curriculares.
Nova aproximação à poesia de Manuel Bandeira viria quando era
adolescente, sentava no fundo da sala e deixava que minha franja me
separasse do mundo. Um colega me emprestou um livro de uma poeta carioca.
Era a coisa mais estranha e fascinante que eu já tinha lido. A poeta era fã
do Bandeira. Voltei a ele aos poucos, pela mão muito cool da Ana Cristina
César.
Desde então, volto sempre. E faço um serviço de utilidade pública: leio
poemas do Bandeira para amigos, especialmente os de Libertinagem e Estrela
da manhã, meus livros favoritos. Tomamos alegria, lembramos dos nossos
porquinhos-da-índia, humildemente pensamos na vida e nas lagartas listadas
que amamos. Muitos amigos se surpreendem, não pensavam que Manuel Bandeira
podia ser "tão bom".
Minha vida me fez uma pessoa arredia a interpretações. Sou uma pessoa que
cria. Deste lugar, posso dizer que é uma sorte ler a poesia do Manuel
Bandeira.
(©
JB Online)
Um grande
companheiro de viagem, à roda do quarto
Heitor Ferraz*
Na adolescência, quando comecei a me interessar por poesia, eu lia os
poetas procurando respostas imediatas. Procurava aquele poema que me
dissesse algo, que me ajudasse diante de algum impasse, alguma dor
indeterminada. Posso dizer que Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade
foram bons companheiros nessas horas, assim como os poetas que eu tinha lido
antes deles, como Chacal, Chico Alvim, Paulo Leminski e Ana Cristina César,
que aprendi a chamar de "meus irmãos mais velhos", como disse uma vez
Carlito Azevedo. Por essa época, vale dizer, também já era muito apaixonado
por Oswald de Andrade e Mário de Andrade.
Porém, Bandeira e Drummond – e aqui vou ser obrigado a plagiar Chico
Alvim – me serviam de "paisagem moral". Eu procurava neles a experiência de
vida que não tinha vivido, ou ainda, a experiência que eu, com meus
instrumentos limitados, não sabia lidar. Encontrava algumas respostas na
música brasileira, em Chico e Caetano, por exemplo. Mas não dava para ouvir
um LP no ônibus, indo para a escola. Não existia o iPod. Então, todos os
dias eu levava meus poetas dentro de uma velha bolsa de couro.
Por isso tenho, até hoje, uma certa dificuldade em falar de certos poetas
objetivamente. É difícil afastar do comentário o elemento particular – tanto
a minha experiência com a poesia, uma experiência, como disse, imediata,
quanto toda lembrança que cada poema desperta em mim. Bandeira foi um grande
companheiro de viagem à roda do quarto. Tinha lugar garantido ao lado da
cama – apesar daquela capa, que era uma foto de uma estrela brilhando por
todos os lados, de um mau gosto de doer. Ainda bem que depois encontrei uma
edição da Aguilar, de 1974, e que até hoje me acompanha, e pude me livrar
daquela estrela espírita.
Mas foi na faculdade que o imediatismo cedeu terreno para um conhecimento
mais aprofundado da poesia de Bandeira. Tive a sorte grande, logo no
primeiro ano, de ter Davi Arrigucci Jr. como professor de Introdução aos
Estudos Literários. Ele ainda não tinha publicado Humildade, paixão e morte,
mas já estava escrevendo os ensaios que compõem o livro. E nós, seus alunos,
um bando de calouros, éramos os privilegiados que ouvíamos, num silêncio
absoluto, suas análises.
O primeiro poema do curso foi "Gazal em louvor de Hafiz". Como ele
conhecia bem os poemas, a própria maneira como lia já era uma análise.
Terminava de ler e era como se já tivéssemos entendido tudo pela entonação
que Davi colocava, delicadamente, em cada palavra, cada verso, cada pausa.
Nada de leitura dramática, como os atores adoram fazer. Era uma leitura
lírica, em tom menor.
A análise era minuciosa, centrada no texto, mas sempre expandindo o
universo de referências – contexto histórico, dados da vida do escritor,
observações sobre a linguagem da poesia etc. Bandeira, que era meu poeta de
cabeceira, o qual eu lia buscando um ombro, passou também a ser uma fonte
inesgotável de pesquisa, de conhecimento de poesia e das sutilezas da arte
poética (como é lindo o ensaio dele sobre a poesia de Mallarmé, como são
francas as cartas com Mário de Andrade).
Daí para ler toda sua obra, principalmente o magistral Itinerário de
Pasárgada, foi um passo. E não me canso de dizer que Itinerário é um das
obras mais bonitas da literatura brasileira. Muito do que aprendi de poesia
veio desse livro, escrito numa prosa rara, envolvente, que guarda o tom de
suas crônicas, mas num registro mais amplo e de maior fôlego.
Bandeira, para mim, com "Poemeto erótico", "Vulgívaga", "A dama branca",
"O silêncio", "Noturno da Rua da Lapa", "O Martelo", "Maçã", "Água-Forte",
"Canção da Parada do Lucas", "Piscina", "Poema só para Jaime Ovalle", "Boi
Morto", "Noturno do Morro do Encantado", "Consoada" e tantos outros, é uma
"estrela da vida inteira". Minha ediçãozinha verde desbeiçada da Aguilar
seguirá sempre comigo – até à hora da morte.
(©
JB Online)
Crítica/"Crônicas Inéditas 2"
Bandeira cria crônicas que têm seriedade da crítica
Em textos surpreendentes, autor une erudição, graça humilde e
desconfiança
NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Sobre um retrato que Portinari fez de Manuel Bandeira, o próprio poeta se
diz retratado em uma ambiência de "tranquilo lirismo corrigido pelo ar de pé
atrás". Nada melhor do que essa autodefinição para compreender a poesia e,
mais ainda, a crônica crítica do nosso maior "poeta menor". Bandeira, o
autor homenageado da 7º Flip, é menor -menor porque seu corte, sua entrada
na vida, é feito por portinholas, e porque sua palavra vem do húmus, da
terra da língua. E, nessa minoridade lírica, não há outro maior do que ele.
Em "Crônicas Inéditas 2", lançamento da Cosac Naify, a precisão do pé
atrás, da desconfiança necessária a todo crítico, aliada a uma graça humilde
ao mesmo tempo erudita e familiar, fazem com que a leitura seja sempre uma
surpresa. Marques Rebelo, por exemplo, é o conhecedor da "humanidade da Rua
Emerenciana"; a palavra "sophistication" é "danada pra atrapalhar a gente";
a um outro Manuel Bandeira, homônimo mas péssimo pintor, o autor diz: "Xará,
não leve a mal"; e, para configurar o fenômeno Brasil, nada como essa frase,
sobre um cavalo azarão: "A revolução não dará talvez a felicidade ao Brasil,
mas afinal de contas o Brasil é capaz de produzir Mossoró".
Eis aí nosso país, com o lirismo e o pé atrás que nem Macunaíma nem
Serafim Ponte Grande conseguiram (ou puderam) ter. E, simultaneamente a essa
delicadeza eficaz, nestas crônicas encontra-se um traço que, infelizmente,
tem sido raro nas crônicas e críticas atuais: saber falar mal; bem mal.
Tal tradução é "péssima"; os pintores brasileiros "não sabem pintar";
outra tradutora é ótima, mas o livro é "medíocre"; e, para arrematar, "a
vantagem dos críticos está em não comprar; a desvantagem, às vezes, em ler".
Faz realmente muita falta a possibilidade de fundir a ligeireza da crônica à
suposta seriedade da crítica, fusão que permite que os aspectos negativos de
um livro ou de uma obra soem mais como possibilidades de abertura do que
como verdades intocáveis.
Como em tudo na obra de Bandeira, não existem verdades ou conclusões
fechadas. A poesia, língua da dubiedade e das brechas, está por toda a
parte. E seu amigo Mário de Andrade já dizia desconfiar seriamente das
pessoas portadoras de certezas. Como exemplo da recusa de Bandeira à
mitomania, há no livro uma crônica fascinante sobre Machado de Assis, já
então tido como intocável.
O poeta conta como teve a "fortuna de conhecer o mestre" dentro de um
bonde, onde, vaidoso por lembrar de uma estrofe de "Os Lusíadas", se
encabula em seguida por esquecer a anterior. Mas a reverência ao mestre não
o impede de chamá-lo de "grande esquizóide" e de dizer que sua vida foi
pautada por um grande egoísmo.
Consciência histórica
Julio Castañon Guimarães fez a organização, o posfácio e as notas destas
crônicas, que começaram a ser escritas em periódicos e revistas a partir dos
anos 30, uma década iluminada e iluminista para a formação da consciência
nacional. A euforia dos anos 20, de que Bandeira não foi militante ativo,
arrefece e dá lugar a uma profunda consciência histórica.
Como mostra o organizador, estes textos partilham desta atmosfera. Junto
com estas crônicas em tudo essenciais, a editora lança também a
"Apresentação da Poesia Brasileira" (R$ 69, 504 págs.), com posfácio de Otto
Maria Carpeaux, livro em que o poeta exerce ainda o papel de professor de
literatura. Não temos mais o professor, nossa crítica anda rasa, "a chácara
triste não existe mais", mas "o menino", esse "ainda existe". Leia.
CRÔNICAS INÉDITAS 2
Autor: Manuel Bandeira
Editora: Cosac Naify
Quanto: R$ 69 (464 págs.)
Avaliação: ótimo
LANÇAMENTOS HOMENAGEIAM O AUTOR
As editoras Nova Fronteira e Nova Aguilar promovem outros lançamentos
ligados à obra de Manuel Bandeira na Flip. Na quinta, às 20h30, acontece o
lançamento de novas edições de "Poesia Completa e Prosa" e "Estrela da Vida
Inteira". O evento ocorre no Armazém do Cais (r. da Praia, nº 1).
"Poesia Completa..." (1.704 págs., R$ 290,90) é organizado por André Seffrin
e inclui uma seleção de prosas. "Estrela..." (464 págs., R$ 69, incluindo CD
com leituras de poemas pelo próprio Bandeira) reúne obras como "A Cinza das
Horas", "Carnaval" e "Libertinagem".
(©
Folha de S. Paulo)
Atualização em 28.06.2009:
Bandeira sempre de bom humor
Manuel Bandeira,
homenageado da Flip, tem o seu lado irônico ressaltado por livros e amigos
Schneider Carpeggiani
carpeggiani@gmail.com
Irene era preta
e Irene era boa. Tão boa que nem precisava de licença para entrar no céu.
Mas talvez seu criador, o poeta Manuel Bandeira, tenha precisado de algum
auxílio para receber a misericórdia divina. O autor costumava criar pequenos
poemas bem ácidos (e ácido aqui deve ser lido como eufemismo) para atacar
suas inimizades. E muitas vezes com versos que não se preocupavam com os
limites do bom gosto. “Ele era um homem que não gostava de ser provocado e
reagia”, recorda Edson Nery da Fonseca, amigo e estudioso de Bandeira.
Esse lado B
não está nas antologias que ressaltam o seu lado lírico, que lhe garantiu o
status de um dos maiores (o maior?) poetas brasileiro. São textos dispersos
por cartas ou guardados na memória de quem conviveu com o autor. “Um deles,
eu escutei e decorei. Foi da discussão com Mário Melo”, lembra Edson Nery.
Quando o jornalista reclamou pela imprensa, em 1958, que o Estado estava
gastando muito com a estátua do poeta na Rua da União, a resposta foi:
“Mandei fazer uma estátua/ Por um novo Donatello/ Uma estátua mais que
equestre/ Eu montado em Mário Melo”.
Em outra
ocasião, ao brigar com o folclorista Renato Almeida, foi grosseiro: “Mulata
baiana um dia/ Por um mal jeito se peida/ Essa mulata é a Bahia/ O peido
Renato Almeida”. Quando Renato faleceu, Bandeira escreveu um artigo cheio de
elogios. “Ele era do tipo de homem que não falava mal dos mortos”, destaca
Edson Nery. Alguns dos versos lembrados por Edson Nery, ao seu pedido, não
foram aqui reproduzidos. A família dos “homenageados” podia não gostar...
O lado mais
pessoal de Bandeira Edson Nery leva para a Festa Literária Internacional de
Paraty (Flip), que tem início quarta-feira, e presta homenagem ao poeta. “No
início eu resisti um pouco em viajar, porque tenho problemas nas pernas. Mas
eles fizeram tanta questão, que não pude dizer não”. Ao seu lado, estarão
Zuenir Ventura (que foi aluno de Bandeira) e Humberto Werneck. A conferência
de abertura também será bandeiriana, na quarta-feira, com Davi Arrigucci
Jr., autor de ensaios famosos sobre o autor com Humildade, paixão e morte ou
A beleza humilde e áspera.
A homenagem
da Flip instigou o lançamento de livros do e sobre Bandeira. Edson Nery da
Fonseca recebe uma nova versão do seu ensaio sobre a questão religiosa no
autor. A editora Cosac Naify vem com três lançamentos. São os ensaios e
críticas de Crônicas inéditas 2 e Apresentação da poesia brasileira, que
mostram um pensador literário com um humor bem ácido, e a tradução Macbeth,
de William Shakespeare.
(©
JC Online)
Um pouco do veneno de
Bandeira
Em suas
crônicas, só agora lançadas, Bandeira mostra-se implacável com quem o
provocava e ácido na hora de analisar a literatura brasileira
Manuel Bandeira não era só implacável com quem o provocava por poemas
minúsculos com alta dosagem de veneno. Também sabia ser ácido na hora de
analisar a literatura brasileira. É o que aparece em Crônicas inéditas 2,
que dá continuidade ao excelente trabalho da Cosac Naify em reerguer, com
edições caprichadas, a obra do poeta. Apesar do nome “crônicas” no título, a
maioria dos textos é formada por críticas publicadas na imprensa.
Se no
primeiro volume, Crônicas inéditas 1, era possível encontrar um autor
Oficial com maiúscula, aqui, Manuel Bandeira está à vontade para ir na
jugular. Ele faz questão de frisar que a crítica precisa ser o “sal da
terra” e que, não havendo choque, “aí sim, não existe necessidade nenhuma de
crítica”. E, como crítico, gostava de lançar o tal do sal na produção dos
seus conterrâneos – “A poesia anda rara, e fraquinha em geral, por estas
bandas da língua. Nas bandas de além, no entanto, ela continua a viçar na
admirável tradição que vem desde os cancioneiros.”
Sobre Sérgio
Milliet, por exemplo, Bandeira é implacável na sua avaliação: “Sérgio
Milliet é da geração paulista que fez a renovação da nossa poesia. Mas eu
sempre notei nos seus poemas um excesso de intelectualismo que me fazia
dizer de mim para mim: este rapaz é poeta, sem dúvida, mas será um dia
melhor crítico do que poeta. De fato, sem abandonar de todo a poesia
(deu-nos em 1927 uma coleção de Poemas, poesia já ‘entre duas idades, onde
passa um gosto de saudade’), Sérgio Milliet definiu-se com magistral
segurança não só na crítica literária como na de artes plásticas. Como havia
o crítico no poeta, muitas vezes palpitando indiscretamente, existe sempre o
poeta no crítico, mas aqui ‘duplo’ indispensável, dando uma rica franja de
subsconsciente poético aos raciocínios solidamente conscientes da crítica
objetiva.”
Em outro
momento, é cruel ao analisar o destino que o Brasil oferecia às revistas de
vanguarda: “No quadro das endemias que pesam sobre o Brasil não há só o
paludismo, a ancilostomíase, a moléstia de Chagas e o tracoma. Há também o
mal das revistas literárias. O mal já se chamou dos sete números. Isso foi
antigamente, quando ainda não se conhecia bem a doença. A experiência destes
últimos quinze anos mostrou que ela pode matar, e mata quase sempre, em dois
ou três números. Lembram-se da Estética? Nasceu como esses bebês de cinco
quilos, morena e robusta como o seu diretor Prudente de Morais, neto. No
terceiro mês estava enterrada. Klaxon, Terra roxa, a terceira Revista do
Brasil, a Revista de antropofagia (que nem por comer gente se salvou)...
Enfim, essas eram revistas de vanguarda – que vivem da vanguarda. Ora, a
vanguarda entre nós são os Dezoito do Forte de Copacabana.”
O material
reunido em Crônicas inéditas 2 é indispensável para quem quer entender quem
foi Manuel Bandeira para além da imagem oficial que só um autor do seu
status é capaz de ter. É por isso que, não deixa de ser curioso, que esse
livro seja lançado ao lado do estudo Apresentação da poesia brasileira, que
traz um Bandeira bem mais formal ao pensar a história da literatura
nacional. Os dois lados da moeda de um gênio. (S.C.)
» Os
textos reproduzidos aqui são do Condomínio dos proprietários dos direitos
intelectuais de Manuel Bandeira
(©
JC Online)
Bandeira desdobrado
Homenageado pela Flip, poeta tem sua face de cronista, crítico literário
e de artes plásticas destacada em livros lançados nesta semana
Ubiratan Brasil
O poeta Manuel Bandeira mantinha no Rio de Janeiro uma rotina saborosa -
visitas a exposições de arte, encontros com artistas estrangeiros que
passavam pela cidade, sessões de cinema para admirar a beleza de Greta
Garbo, leitura de clássicos diversos, troca de cartas com escritores amigos.
São os hábitos mundanos da sociedade carioca que se sobressaem de uma
leitura ligeira de Crônicas Inéditas 2 (480 págs., R$ 69), segundo volume
organizado por Júlio Castañon Guimarães com praticamente todos os 130 textos
em prosa escritos pelo poeta entre novembro de 1930 e janeiro de 1944 e que
a Cosac Naify lança nesta semana. Não é esse aspecto, porém, que interessa
no livro. "O quotidiano carioca boêmio e musical ocupa parcela reduzida das
crônicas", observa Guimarães, no posfácio da edição. Na verdade, acredita
ele, as colaborações do poeta para a imprensa são peças de um amadurecido
exercício, o desenvolvimento de uma longa, inteligente e refinada reflexão.
Nascido no Recife, Bandeira (1886-1968) é o escritor homenageado da 7ª Festa
Literária Internacional de Paraty, a Flip, que começa na quarta-feira e, até
domingo, terá uma série de eventos relativos à obra do poeta (veja no quadro
ao lado). No rastro da celebração, além do segundo volume de crônicas, a
Cosac Naify lança ainda Apresentação da Poesia Brasileira (504 páginas, R$
69), projeto com que Bandeira pretendeu apresentar os poetas nacionais ao
leitor estrangeiro; e sua tradução da peça Macbeth, de Shakespeare (208
páginas, R$ 49). A editora Nova Aguilar, por sua vez, prepara o lançamento
da nova edição de Poesia Completa e Prosa (1.074 páginas, R$ 290),
portentoso volume organizado por André Seffrin. Ele também é responsável por
fixar a poesia de Estrela da Vida Inteira (Nova Fronteira, 464 páginas, R$
69), que ganha novo projeto de capa e gráfico, além de vir com um CD de
áudio contendo leituras de poemas pelo próprio Bandeira.
Mais conhecido como poeta, Manuel Bandeira teve, contudo, um papel decisivo
em outras áreas da cultura, como crítico literário e de artes visuais,
professor, compositor, autor de histórias infantis e tradutor de clássicos
da literatura - além de Shakespeare, traduziu Schiller e Proust. "Não vejo
isso exatamente como confluência de estilos, mas como um trabalho no sentido
de afinar-se consigo mesmo, aquela conquista solitária que é se encontrar na
sua linguagem", comenta André Seffrin, em entrevista ao Estado. "Ele foi aos
poucos descobrindo a própria voz, que, a partir de Ritmo Dissoluto ou de
Libertinagem, assumiu seu perfil mais bandeiriano, a face, digamos, mais
característica do Bandeira que conhecemos. E foi a partir dos anos 1930 que
ele realmente se encontrou, inclusive como cronista, mais sintonizado com
seus temas e sua linguagem."
De fato, em Crônicas Inéditas 2, é possível notar uma preocupação mais
detalhada sobre assuntos que escolhia como tema. Já no primeiro texto,
Iniciação em Marcel Proust, Bandeira confessa seu fracasso inicial ao tentar
(e não conseguir) ler a obra do escritor francês. "Há sempre que vencer os
arames farpados das incidentes proustianas", justifica ele que, como Andre
Gide, conseguiu depois ultrapassar tais resistências para então sentir "sua
prosa de ritmo uniforme e toda amarrada de conjunções e incidentes
restritivas ou explicativas, ?uma espécie de vida sentimental e contínua?".
O volume traz ainda um importante questionamento crítico que, de certa
forma, envolvia seu próprio trabalho - numa crônica sobre a poesia de
Machado de Assis, Bandeira comenta ser arriscado igualmente para um poeta
lançar-se à prosa. "Entra ele nesse caso numa competência muito mais ingrata
que a dos seus confrades: a competência consigo próprio." E, como exemplo do
dilema, ele demonstra que, apesar de uma dúzia de poemas apresentar a mesma
qualidade de seus melhores contos e romances (como O Desfecho, Círculo
Vicioso e Mundo Interior), era na prosa que o Bruxo do Cosme Velho
aproximava-se da genialidade. Entretanto, apesar dessa distância, alguns
poemas de Machado, principalmente Uma Criatura, anunciam o pessimismo
irônico e o estilo nu e seco que dominaram a segunda fase do escritor. "Toda
a sua amarga filosofia estava expressa e esgotada naqueles poucos e
admiráveis poemas", escreveu o poeta.
Leitor atento dos clássicos e dos novos, Bandeira sentiu-se à vontade, em
Apresentação da Poesia Brasileira, para revelar um panorama crítico dos
autores, escolas e movimentos que marcaram o gênero no País, de José de
Anchieta ao concretismo. O homem certo para tal ofício, na avaliação do
crítico Otto Maria Carpeaux, que assina o posfácio da obra. Para ele, poesia
é a arte verbal de comunicar experiências inefáveis. "E a de Bandeira era a
gravíssima doença (pulmonar) que lhe destruiu a mocidade, e a que, no
entanto, conseguiu dominar." Assim, a poesia brasileira cruzava, naquele
momento, com a expressiva realização da experiência pessoal de Bandeira.
Para a segunda parte do livro, o poeta organizou uma antologia com 125
poemas de 55 autores, dos grandes clássicos, como Álvares de Azevedo, até
bissextos, como Pedro Nava, e talentos em ascensão, como Ferreira Gullar.
"Bandeira costumava ser muito claro e sincero em seus apontamentos, seja em
matéria de jornal ou revista (em crônicas, em ensaios), seja na
correspondência com amigos, em parte ainda inédita", observa André Seffrin.
"Costumava apontar com extrema clareza o que a seu ver não funcionava num
poema ou num romance. Ganhou alguns inimigos por conta disso."
Era implacável também ao escolher textos para traduzir. Bandeira considerava
Macbeth, "senão a mais profunda, a mais sinistra e sanguinária tragédia de
Shakespeare". Em sua tradução, o poeta manteve os diálogos em verso, além de
destacar, na introdução, expressões que considerava preciosas, como "uma
história contada por um idiota, cheia de ruído e fúria e sem nenhum
sentido".
(©
Estadão)
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