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Cena de "Memória
da Cana" |
"Memória da Cana"
cruza "Álbum de Família" com "Casa-Grande e Senzala"
Espetáculo d'Os Fofos Encenam
também usa lembranças dos atores, em sua maioria
nordestinos
LUCAS NEVES
DA REPORTAGEM LOCAL
As perversões interditas que enlaçam pais e filhos na
peça "Álbum de Família", de Nelson Rodrigues, encontram
esconderijo num canavial pernambucano em "Memória da
Cana", montagem em que a companhia Os Fofos Encenam
veste a dramaturgia rodriguiana com adereços de
"Casa-Grande e Senzala", de Gilberto Freyre, e
reminiscências do elenco. No
original, o patriarca Jonas expurga a tara pela filha,
Glorinha, em transas com ninfetas aliciadas por sua
cunhada, Rute. O primogênito, Guilherme, tranca-se num
seminário para sublimar o amor pela irmã. A mãe,
Senhorinha, é desejada pelos outros dois filhos, Nonô e
Edmundo -e não se sabe se já correspondeu. O primeiro
enlouquece e foge para o mato. O outro, infeliz no
casamento, vê no útero materno o paraíso.
Além de transplantar a intriga de uma localidade fictícia em Minas Gerais
para uma fazenda de cana-de-açúcar no Nordeste, "Memória" exacerba a
religiosidade dos personagens. Há santos por todos os lados, o que condiz
com a imagem que uns têm dos outros ali. Glorinha enxerga no pai Nosso
Senhor; na mão inversa, é encarada por ele como uma santa imaculada. A
"Casa-Grande" de Freyre aparece na sala dominada pela mesa comprida, em cuja
cabeceira se posta o pai autoritário, à espera da mucama que Rute fará
chegar a ele. Já os atores emprestam à encenação objetos, músicas e aromas
(como o de uma loção pós-barba ou o do pó do arroz) que remetem a parentes.
Além disso, no início, na intimidade dos seis quartos que envolvem a mesa
central, destilam depoimentos que carregam dados biográficos deles -mas
também informam sobre a personalidade dos tipos ficcionais. "É uma
negociação entre memórias pessoais, que prepararam o ator para a peça, e
textos que poderiam ser dos personagens. É um entre-lugar", explica o
diretor Newton Moreno, 40, também responsável pela adaptação dramatúrgica.
Mais crueldade
Para ele, associar Freyre a "Álbum" é "potencializar a crueldade" da
tragédia rodriguiana. "É impossível não fazer um movimento para dentro,
pensar um pouco suas matrizes familiares, o lugar da família em você. Todo
mundo acaba sendo convidado a revisitar os cômodos de sua casa e rever
padrões de comportamento", diz. Quando a família de "Memória" se lança nesse
"movimento para dentro", sentimentos recalcados vêm à tona, e a casa cai por
terra -literalmente, já que as divisórias de filó que demarcavam os cômodos
somem. "É como se caísse a máscara, daí jogarmos a família para dentro do
canavial, sublinharmos o confronto entre cultura e natureza.
Os segredos vão ser postos à vista de todos, não mais ocultos atrás de
paredes. Tudo o que se oprime e camufla vai ser expurgado, vomitado", afirma
Moreno. Sobre o tapete de terra que agora cobre o cenário, Senhorinha
cruzará a trilha de Nonô, que há tempos erra pelos canaviais para não se
entregar à mãe. Aquele terreno de raízes expostas também terá sido signo do
reencontro do elenco, majoritariamente nordestino, com suas memórias,
açucaradas ou não -ao som do maracatu rural que anuncia o fim.
MEMÓRIA DA CANA
Quando: sex. e sáb., às 21h, e dom. e seg., às 19h; até 2/11 Onde:
espaço dos Fofos (r. Adoniran Barbosa, 151, Bela Vista, São Paulo, 0/
xx/11/3101-6640)
Quanto: R$ 16
Classificação: 16 anos
INSTALAÇÃO "PREPARA" O PÚBLICO
Para estimular a imersão do público no cenário em que se passa "Memória da
Cana", Newton Moreno promete montar, na entrada da sala de espetáculos da
sede d'Os Fofos, uma instalação com fotos e objetos que reproduzam o clima
de uma casa de família tradicional. Quem quiser continuar no Nordeste após o
fim da peça poderá saborear um jantar com pratos típicos, preparados por
integrantes do grupo -em "Assombrações do Recife Velho" (2005), eles serviam
doce de banana. Basta agendar na hora da compra do ingresso. O site da
companhia (www.osofofos encenam.com.br) tem cardápio e preços.
(©
Folha de S. Paulo)
A trágica Memória da Cana
Newton Moreno quer unir Nelson Rodrigues e Gilberto Freyre em
adaptação de Álbum de Família
Beth Néspoli
Um premiado grupo de teatro de bonecos, o mineiro Giramundo, encena hoje
uma peça do autor gaúcho Qorpo Santo, As Relações Naturais. Outro, com
sede em São Paulo, Os Fofos Encenam, dirigido por Newton Moreno, inicia
amanhã uma pequena temporada de Memória da Cana, recriação, ainda em
processo, mas já muito atraente, da peça Álbum de Família, de Nélson
Rodrigues, por sua vez um autor pernambucano de alma carioca. E mais,
para encenar a peça o grupo trabalhou numa primeira etapa sobre a
própria memória dos atores, que vivem em São Paulo, mas nasceram em
Estados como Alagoas, Paraíba e Pernambuco.
Essa miscelânea regional ganha o espaço cênico do Itaú Cultural não por
acaso. Os dois grupos foram especialmente convidados para celebrar mais
uma atualização da Enciclopédia Itaú Cultural de Teatro, obra de
referência virtual, desta vez acrescida de significativa expansão
geográfica. Entre os 63 novos verbetes que ganhará, 49 são relativos aos
Estados de Minas, Rio Grande do Sul e Pernambuco. Por ser virtual - pode
ser consultada no endereço www.itaucultural.org.br/teatro - além de
importante registro histórico e preciosa fonte de consulta para quem
escreve sobre a cena teatral, é passível de aprimoramento constante.
"Há um instrumento dentro do próprio verbete que permite ao leitor
sugerir correções" , diz a diretora Johana Albuquerque, uma das
integrantes do conselho consultivo. "Estamos revisando todos os verbetes
para sanar equívocos de datas. Claro que toda sugestão passa por uma
verificação rigorosa antes de ser aceita", diz. "Uma vez criada, a
enciclopédia solicita sempre de seus realizadores um trabalho insano de
atualizações e correções de dados." Esse misto de dificuldade e rigor
provocou alguns adiamentos na expansão da enciclopédia. "Grupo Folias,
Cia. Livre, As Graças são grupos que já deveriam passar a constar nessa
atualização, mas os textos não foram aprovados. Acredito que em três ou
quatro meses já estejam lá."
Embora Newton Moreno faça questão de dizer que Memória da Cana seja a
apresentação apenas de um processo de criação, ou seja, trabalho
inacabado, vale correr ao Itaú para ver essa já bonita encenação de
Nélson Rodrigues com sotaque pernambucano. "Trabalhamos num primeira
etapa com a memória dos atores e agora é a vez de ver como elas servem
ao texto de Nélson Rodrigues", diz o também pernambucano Newton Moreno.
"Numa terceira etapa queremos encenar o Álbum de Família à luz da
família patriarcal estudada por Gilberto Freyre em Casa Grande &
Senzala."
Serviço
Memória da Cana. Itaú Cultural. Avenida Paulista, 149, 2168-1776/1777.
5.ª e 6.ª, 20 h; sáb. e dom., 17 h e 20 h. Até 15/2. Grátis - retirar
ingressos meia hora antes. Hoje, 19 h, debate sobre Atualização da
Enciclopédia de Teatro; 20 h, apresentação da peça As Relações Naturais,
com o grupo Giramundo
Verbetes
OSMAN LINS (1924 - 1978)
Osman da Costa Lins (Vitória de Santo Antão PE 1924 - São Paulo 1978).
Autor. Reconhecido como um dos grandes escritores brasileiros do século
XX, sua dramaturgia se alimenta tanto de aspectos da comicidade popular
e da cultura nordestina quanto da realidade social e política
brasileira. (...) em 1960, escreve Lisbela e o Prisioneiro, comédia em
três atos...
VASCONCELLOS, LUIZ PAULO (1941)
Luiz Paulo da Silva Vasconcellos (Rio de Janeiro 1941). Diretor, ator,
professor, ensaísta e crítico. Destaca-se no meio teatral como diretor
de espetáculos universitários, com relevante experiência nas áreas de
cenografia, figurino, iluminação e dramaturgia. Desempenha papel
fundamental para distintas gerações de artistas, graças ao vínculo com a
docência superior em artes cênicas e à articulação entre teoria e
prática do teatro.
QORPO-SANTO (1829 - 1883)
José Joaquim de Campos Leão (Triunfo RS 1829 - Porto Alegre RS 1883).
Autor. Qorpo-Santo escreve sua obra teatral no século XIX...
(©
Estadão)
Colagens suburbanas
Tom picaresco domina reunião de crônicas em cena
Macksen Luiz
As crônicas de Nelson Rodrigues são atraentes como
material exploratório no teatro e têm se transformado em potentes ímãs para
reuni-las em cena, algumas vezes como extensão de sua dramaturgia, outras
como antevisão de seus personagens de palco. Não por acaso, tantas
coletâneas de seus escritos jornalísticos e folhetinescos chegam ao teatro
como comentários cênicos que se impõem em tom de humor, mais ou menos
crítico.
As noivas de Nelson, da Cia. Paulista de Artes, em cartaz
no Solar de Botafogo, segue esta cartilha com a previsibilidade das
experiências anteriores. Com seleção de crônicas sobre o casamento e suas
variantes, a montagem dirigida por Marco Antônio Braz repete a rotina da
leitura cênica de textos narrados, nos quais as personagens assumem as suas
atitudes através de maneira de contá-las. Como os diálogos são
complementares, quase ilustrativos, o modo de encenar o que é dito ganha
precedência sobre quaisquer outras formas expressivas. E o picaresco, o
jeito engraçadinho, se tornam dominantes nessas coletâneas, deixando à
mostra o que as crônicas têm de mais "curioso", valorizando o aspecto de
fait-divers com algumas piscadelas ao que escapa às convenções de
comportamento.
Obsessões da classe média
Em relação ao casamento, Nelson mantém nas crônicas
selecionadas – de A vida como ela é, publicadas no jornal Última Hora, entre
1951 e 1961 – o olhar impiedoso sobre as obsessões da classe média e seu
imaginário sombrio, que se manifesta de modo dissimulado. Nesta montagem,
tais características são secundárias, prevalecendo a exterioridade e a
representação caricatural de melodrama radiofônico.
Talvez a opção do diretor seja apropriada ao gênero das
crônicas, se consideradas apenas como flagrantes da vida privada nos anos
50, o que justifica integralmente a sua escolha estilística. Mas deixa a
impressão de que seguiu linha de encenação óbvia, tantas vezes usada por
semelhantes espetáculos em torno das crônicas do autor de Perdoa-me por me
traíres. A cenografia é o que melhor associa casamento e morte,
presentes em cada um dos textos, e acaba por ser o único sopro mais original
da montagem, que conta com elenco disciplinadamente integrado à proposta da
direção.
(©
JB Online)
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