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O Ceará quer reabilitar o padre Cícero

12/08/2002

Padre Cícero Romão Batista em uma foto rara, ao lado sua irmã mais moça, Angélica

 

Documentos inéditos e comissão abrem discussão sobre a reabilitação do padre punido pela Igreja

LUIZ MAKLOUF CARVALHO
Especial para o Estado

   Um livro com documentos inéditos e uma comissão de estudos formada pela Diocese do Crato (CE) estão reabrindo a delicada discussão sobre a personalidade polêmica e complexa do padre Cícero Romão Batista (1884-1934), líder religioso e político cultuado como "santo" por milhões de brasileiros, especialmente os nordestinos, que todos os anos lotam Juazeiro do Norte (CE) em romarias de veneração.

   Desde 6 de agosto de 1892 - há 112 anos, portanto -, o padre Cícero teve as suas ordens suspensas pela hierarquia católica. Foi proibido de pregar, confessar, orientar os fiéis e rezar a missa.

   A justificativa para a punição foi a sua obstinação em sustentar como milagre os sangramentos da boca da beata Maria de Araújo nos momentos em que lhe dava a hóstia - o primeiro deles tendo ocorrido em 1.º de março de 1889.

   Cícero entendeu, e defendeu, que o sangue saía da hóstia, e não da boca da beata. Uma heresia para as cânones da Igreja Católica - a não ser que tudo fosse comprovado, exigência a que se dedicou o bispo de Fortaleza, d. Joaquim José Vieira. Quatro anos depois da primeira ocorrência, d. Joaquim entendeu que o suposto milagre era um embuste.

   Em 4 de abril de 1917, a Nunciatura Apostólica o excomungou - pena que não foi aplicada. Padre Cícero morreu, aos 90 anos, em 20 de julho de 1934, suspenso das ordens, situação eclesiástica que prevalece até hoje, para o incômodo dos devotos e romeiros que já o consagraram.

   A comissão de estudos que está mexendo com esse vespeiro (veja reportagem ao lado) tem uma tarefa espinhosa: dar o sim, ou o não, para um processo de reabilitação histórico-eclesial de padre Cícero. A decisão final será tomada pelo bispo do Crato, d. Fernando Panico.

   Para aumentar ainda mais a responsabilidade da comissão e de d. Fernando, foi publicado, no fim do ano passado, pela Editora ABC, de Fortaleza, o livro Padre Cícero, entre os Rumores e a Verdade, do tabelião juareizense Paulo Machado, neto de Luiz Theófilo Machado, o primeiro tabelião da história de Juazeiro do Norte, por indicação incontestável do próprio padre Cícero, prefeito, coronel e manda-chuva do município desde a sua criação, em 1911.

   Patrimônio - O livro do tabelião traz a maior revelação dos últimos anos: nada menos que o processo de inventário do milionário patrimônio que o Padim Ciço deixou, em testamento cerrado (veja reportagem ao lado). Ele incluía, entre uma vastidão de outros bens, a propriedade de 34 fazendas em Juazeiro do Norte e em outros municípios do Vale do Cariri, sul do Ceará.

   Na análise do processo do inventário, didaticamente exposto em copiosas 500 páginas, Paulo Machado reduziu a picadinho a informação até então tida como verdadeira de que a Ordem dos Salesianos foi a maior beneficiada com o riquíssimo espólio do patriarca. Não foi.

   Os documentos exibidos no livro provam que o benefício maior coube à Diocese do Crato - justo a que mais perseguiu padre Cícero, às vezes implacavelmente, seja no caso do suposto milagre, seja no que diz respeito à fortuna que ele vinha acumulando, à custa de doações e mais doações de seus fiéis.

   A Diocese do Crato abiscoitou 493 mil contos de réis em valores da época - mais do que o dobro dos Salesianos (183 mil contos de réis), que vêm em segundo lugar. Mesmo sabendo, desde 1934, que ela havia sido a maior beneficiada, os quatro bispos que a comandaram, de lá até aqui, mantiveram um silêncio de 68 anos.

   "A diocese deve explicações, porque nunca se soube como esse patrimônio foi administrado", diz Paulo Machado. "Existem documentos mostrando que tudo foi administrado dentro do que determinou o padre Cícero", diz o padre Francisco Roserlândio de Souza, de 34 anos, há oito na diocese. "Os documentos virão a público quando a diocese considerar oportuno", garante, sem maiores explicações. O bispo da diocese, d. Fernando Panico, estava em viagem quando o Estado esteve em Crato. Desde que o livro foi lançado, ele não se pronunciou.

   Tratamento médico - Há muito mais no cartapácio do tabelião. Uma surpresa, por exemplo, é a documentação referente ao boato sobre o padre Cícero ter sido morto por envenamento, pelo médico Mozart de Alencar, um dos que o acompanharam nos seus últimos e penosos dias, sob cruel processo de paralisia intestinal.

   Machado mostra que a suspeita sem provas foi parar no papel, a pedido do próprio médico, indignado com a acusação. Revela, também, por meio da relação das receitas e dos remédios, que o padre Cícero, por recomendação dos médicos, chegou a tomar, nos últimos dias, o medicamento "estrichnina fraisse". A estricnina é um veneno, mas, em pequenas doses, pode servir como um estimulante tônico e nervoso. Os capítulos sobre este tema são propositalmente cuidadosos e não referendam as acusações a Mozart.

   O médico é parte importante do livro no que diz respeito à cobrança de honorários ao cobiçadíssimo espólio do padre Cícero - tanto por ele como pelos demais médicos que o atenderam. Machado mostra a íntegra dos chocantes documentos de cobrança judicial. Para justificar o que queriam receber - uma exorbitância, segundo a avaliação dos inventariantes -, os médicos desciam a detalhes mórbidos sobre o sofrimento do padre.

   Coube a Mozart, o que também não se sabia, ter sido o quarto maior beneficiado com os bens de seu ilustre cliente. Dos 60 mil contos de réis que pediu, e pelos quais bravamente lutou, ficou com 26 mil contos. Em valores da época, segundo tabela incluída no livro, os 26 mil contos dariam para comprar 260 vacas paridas (100 mil réis cada uma).

   Foram 48 dias de assistência - o que daria, em tese, 5,4 vacas paridas por dia! Em valores de hoje, apenas numa tentativa de comparação, uma vaca parida das mais desvalorizadas não custa menos de R$ 500,00 - o que daria, por dia de trabalho, R$ 2.700,00!   

   Inventário - Também dentista, e bacharel em Direito, Machado é devoto fiel do padre Cícero desde menino. Seu avô o foi, o pai também. Em 1989, quando assumiu o cartório, resolvendo informatizá-la, decidiu levantar tudo o que lá havia sobre o padre e os personagens que com ele conviveram.

   No primeiro levantamento, o tabelião e a equipe do cartório encontraram 200 livros referentes à época. Depois de examiná-los, Machado os resumiu no livro Cartório como Fonte de Pesquisa, de 1994, ano do sesquicentenário de nascimento do padre Cícero. Está lá, bem documentada, a impressionante seqüência de negócios imobiliários feitos pelo Padim, e por pessoas de sua absoluta confiança.

   Faltava o inventário, que o tabelião não sabia estar no cartório. "Mas está", ouviu do pai, José Machado. Encontrando o tesouro, de 1.800 páginas, levou cinco anos para concluir o livro.

   No meio do caminho, enfrentou uma discussão judicial sobre o local em que o inventário deveria ficar. Ficou no Memorial Padre Cícero, dificultando a praticidade do trabalho, mas Machado não esmoreceu. Munido de uma filmadora comum, transformou centenas de páginas em imagens. Copiou palavra por palavra da televisão, onde projetava os filmes com os velhos papéis.

   Como todo devoto do padre Cícero, o tabelião não aceita que lhe façam críticas - nem no caso por ele mesmo levantado do patrimônio avantajado. "É realmente considerável, mas o que me espanta é que, apesar disso, ele levou uma vida simples e não usufruiu da fortuna em benefício próprio."

(© O Estado de S. Paulo)

Testamento mostra fortuna imobiliária

   A fortuna que o padre Cícero acumulou, em vida, está relacionada, detalhadamente, no terceiro testamento que fez, cerrado, em 4 de outubro de 1923, nove anos antes de morrer. Ele foi aberto, em Juazeiro do Norte, em 27 de julho de 1934, sete dias após o falecimento. Soube-se, então, que a principal beneficiada foi a Ordem dos Padres Salesianos.

   Ao descobrir o inventário, e sobre ele escrever, o tabelião Paulo Machado descobriu uma doação feita em janeiro de 1934 à Diocese do Crato, o que a fez receber mais do que todos os herdeiros.

   É de Machado, também, a descoberta de que o padre Cícero fez três testamentos - e não dois, como até então estava estabelecido. No primeiro, de abril de 1918, o herdeiro único e universal era "a Santa Sé, representada na Pessoa de Sua Santidade, o Papa". No segundo, de 7 de março de 1922, que revogou o primeiro, foram beneficiados a Ordem dos Trapistas, a Ordem Presmonstratense, a Santa Sé, a irmã do Padre Cícero e alguns de seus amigos e procuradores pessoais, entre eles o conde belga Adolfo Van den Brule.

   Alter-ego - O conde, personagem ainda obscuro na história do padre, foi o seu testa-de-ferro em operações comerciais de vulto, entre elas a que envolveu a disputa acirrada pela fazenda Coxá, rica em minérios. Machado mostra, com documentos, que padre Cícero, assinando embaixo, se empenhou como pôde para que a fazenda fosse vendida a investidores estrangeiros. Brule foi um dos testamenteiros.

   O outro foi o que talvez tenha sido o maior alter-ego do Padim: o médico, jornalista e político Floro Bartolomeu da Costa, riquíssimo personagem dessa história, com biografia prometida pelo escritor Fernando Morais. Até morrer, em 1924, dr. Floro teve a cega confiança do amigo, e por ele ou com ele também se envolveu na política e em grande negócios.

   A íntegra do terceiro testamento do padre Cícero - que anulou os demais - está no site do Tribunal do Justiça do Estado do Ceará (http://www.tj.ce.gov.br/mm_test_padre_cicero.htm). Segue, a título de exemplo e mantido o texto original, a primeira das doze cláusulas: "Deixo para a Ordem dos Padres Salesianos todas as terras que possúo nos sítios Logradouro, Salgadinho, Mochilla, Carás, Pau-Secco que pertenceu ao velho Antonio Felix, neste Municipio; o sitio Conceição na serra Araripe, Municipio do Crato, onde reside o empregado Casimiro; os terrenos que possúo na serra Araripe e mais o sitio Brejinho ao sopé da mesma serra Araripe no Municipio do mesmo nome; os predios e a Capella em construcção na serra do Horto, com todas as suas bemfeitorias; o predio onde funcciona o açougue publico desta cidade, sito á Avenida Doutor Floro, antiga Rua-Nova; os predios contiguos a casa de residencia da religiosa Joanna Tertulina de Jesus, conhecida por Beata Mocinha, onde tambem resido actualmente, sitos á rua São José; o sitio Faustino, sito no Municipio do Crato; o sitio Paul tambem no Municipio do Crato, porem depois do fallecimento da antiga proprietaria Dona Ermelinda Correia de Macedo, que ainda nelle reside, salvo se antes da sua morte quizer de accordo com os Padres Salesianos ficar morando em outro logar; o sitio Baixa Dantas, no Municipio do Crato; as fazendas Lettras, Caldeirão e Monte Alto, no Municipio do Cabrobó, no Estado de Pernambuco, com todas as bemfeitorias e gados nellas existentes; o quarteirão de predios, sitos á rua de São Pedro, os quais comprei ao Doutor Floro Bartholomeu da Costa, nesta cidade, inclusive o predio em construcção na mesma rua, contiguo a casa de morada e de negocio do meu amigo Damião Pereira da Silva; a fazenda Juiz, sita no Municipio de Aurora que comprei aos Frades do Covento de São Bento de Quixadá; o predio onde funcciona o Orphanato Jesus Maria e José, sito á rua São José; o terreno contiguo a este mesmo predio; o predio em construcção junto a casa da Beata Mocinha onde resido á mesma rua São José; o sitio Fernandes no Municipio do Crato; o sitio Peripery, no pé da serra de São Pedro, no Municipio do mesmo nome, porem depois da morte da sua então proprietaria Dona Maria Souto, salvo se esta de accordo com os Padres Salesianos quizer morar em outro lugar; os sitios Santa Rosa e Tabóca, no municipio do Crato; o sitio Rangel, sito no Municipio de Santa-Anna do Cariry, que comprei a Dona Joanna de Araujo, e todas as propriedades com todas as suas bemfeitorias igualmente a estas por mim citadas que possúo ou venha a possuir e que não constam deste testamento, bem como todos os gados que possúo por toda parte e que não pertençam a outras pessôas ou herdeiros estabelecidos nas clausulas deste testamento que ora faço, repito, deixo para os Benemeritos Padres Salesianos.

   Supplico aos mesmos Padres Salesianos que terminem a construcção da Capella do Horto. Devo dizer para evitar conceitos inveridicos e suspeitos em torno do meu nome que comecei a construil-a para cumprir um voto que eu e os meus fallecidos collegas e amigos os Padres Manoel Felix de Moura, Francisco Rodrigues Monteiro e Antonio Fernandes Tavora, então Vigario do Crato, fizemos. Esse voto fizemos quando apavorados com resultados da secca de mil oitocentos e oitenta e nove (1889) receiamos, aliás, com razão justificada que o ano de mil oitocentos e noventa (1890) fosse tambem secco, com o povo desta terra ao Santissimo Coração de Jesus.

   E como essa obra não pude terminar, muito a contra gosto, é verdade, tão somente para não desobedecer ás ordens prohibitorias do meu Diocesano, o então Bispo do Ceará, Dão Joaquim José Vieira, peço aos Benemeritos Padres Salesianos que concluam esse templo de accordo com a planta que trouxe de Roma e a miniatura em fôlha de flandre que deixo depositada em logar seguro. Deixo mais para os Padres Salesiano, a Imagem em vulto grande do Senhor Morto que me veio de Lisbôa." (L.M.C.)


"Tinha patrimônio, mas não tinha caixa"

   A duas quadras do Cartório Machado, em Juazeiro do Norte, encontra-se o portentoso Memorial Padre Cícero, um dos três museus onde se guardam suas relíquias. Há roupas que ele usava, paramentos com os quais celebrava, maquinetas de fazer hóstias, uma fotografia de um pano ensanguentado dos tempos da beata e, até, um estonteante faqueiro de prata, de 163 peças, comprado na França, pelo médico Floro Bartolomeu da Costa, a pedido do Padim. Foi usado em banquetes, como lá se informa.

   O memorial é presidido pelo dentista Geraldo Menezes Barbosa, de 78 anos, um dos raros ainda vivos a ter conhecido pessoalmente o padre. Era menino, e filho do primeiro carteiro nomeado pelo próprio. O consultório onde ele atende fica na Rua Padre Cícero. Toda essa quadra, enorme, era propriedade privada, como consta no testamento. "Ele era desligado da fortuna que tinha", acha o dentista, um dos que se impressionou com a revelação sobre a Diocese do Crato ter sido a maior herdeira.

   "A diocese deve explicações, porque espezinhou o padre Cícero", diz. Geraldo não dá muita importância ao trabalho da comissão. "O importante é que 40 milhões de nordestinos acham que ele é santo - e não interessa que ele seja ou não seja canonizado pela Igreja Católica."

   Um pouco acima, na mesma rua, está a casa em que morou a beata Maria de Araújo, e, um pouco adiante, a casa paroquial onde reside o padre Murilo de Sá Barreto, de 71 anos, 45 deles em Juazeiro, 38 dos quais como pároco da Igreja de Nossa Senhora das Dores, a mais importante nas missas freqüentes e nas três grandes romarias anuais. O que interessa para o padre Murilo, mais do que a biografia do patriarca, é o fenômeno concreto das romarias - "que o transformou no maior referencial da igreja dos pobres". Integrante da comissão, acha que "a reabilitação é de justiça".

   Sem caixa - O professor universitário de Biologia e jornalista Daniel Walker, juazeirense de 54 anos, estuda o padre Cícero desde 1969 e é seu devoto incondicional. Tem livros a respeito, e mantém, na internet, um site com muita informação. Já leu pelo menos 250 livros entre os 300 em que se estima a bibliografia relacionada - e é capaz de discorrer sobre cada um, de supetão.

   "O padre Cícero era economicamente rico e financeiramente pobre; tinha patrimônio, mas não tinha caixa", define Walker, mais um dos que não faz questionamentos éticos sobre o acúmulo de tanta riqueza. Argumenta, como os demais, que o patriarca acumulou fortuna e poder, mas deles não usufruiu pessoalmente. E que tinha o objetivo maior de fazer caixa para a diocese que sonhava ver criada em Juazeiro - que acabou ficando no Crato.

   Também favorável a que a comissão abra as portas para a reabilitação, Walker diz: "Dos candidatos brasileiros a santo, ele é o único que tem uma dimensão nacional."

   17 metros - O que mais impressiona, em Juazeiro, é a monumental estátua do padre Cícero no chamado Horto, no alto da Serra do Catolé, centro principal da peregrinação dos romeiros - administrado pelos padres salesianos. São 8 metros de pedestal e 17 de Padim. Mesmo um dia comum, sem a multidão das grandes romarias, o Horto é uma exibição ostensiva de miséria, mendicância profissional, comércio ambulante agressivo e, também, muita fé.

   É uma grande e bagunçada feira em torno do casarão em que o padre, seus amigos e suas beatas ocuparam por longos anos. Abriga a capela, o outro museu, e a residência dos dois padres salesianos que lá moram.

   O padre José Venturelli, italiano de Verona, de 58 anos, é um dos dois que administra o Horto, em eterna encrenca com a prefeitura de Juazeiro.

   Venturelli e os demais salesianos ficaram aliviados com a informação de que não foram os principais herdeiros - e sim a Diocese do Crato. "Já sabíamos disso, pelos documentos internos, mas não achamos adequado divulgar", diz o padre. Segundo ele, os documentos mostrariam que a diocese "não foi tão mal como se pensa" ao repassar parte do patrimônio para Juazeiro, como queria o padre Cícero.

   A doação foi condicionada a que os salesianos dessem continuação às obras de caridade que o doador iniciou - "obra completa", como se lê no testamento.

   Eles já tiveram, em Juazeiro, cursos noturnos de profissionalização e trabalho pastoral com as crianças pobres. Hoje, estão reduzidos a uma escola particular cara, à administração do Horto e do museu da Rua São José. Também levantam fundos, com os romeiros, para a construção da nova e cinematográfica igreja do Horto, em andamento, estimada, por Venturelli, em R$ 8 milhões. "Estamos cumprindo o que o padre Cícero queria, talvez com um certo atraso", diz o padre.

   Milionário - Há quem torça o nariz a tudo isso. É o caso, por exemplo, de d. Newton Holanda Gurgel, bispo-auxiliar da Diocese do Crato entre 1979 e 1994, e bispo titular entre 1994 e maio de 2001, quando foi substituído por d. Fernando Panico. D. Newton respeita a romaria, mas está no campo crítico em relação ao padre Cícero. "Há muito fanatismo e a verdade é que nunca se quis a história real", diz.

   Os elogios para o padre Cícero se restringem à relação com os romeiros. D. Newton não acredita no milagre, critica o acúmulo de riqueza e os negócios.

   "O padre Cícero chegou no Juazeiro missionário, tornou-se visionário e acabou milionário", diz. "Ele sabia segurar o dinheirinho dele."

   Ao contrário dos devotos que renegam todos os livros contra o Padim - alguns violentísimos -, d. Newton tem predileção por alguns, que coleciona. "A comissão tem a obrigação de enfrentar o estudo dessas obras", diz. Citando uma frase que atribui ao bispo d. Tomás Balduíno, naquele mesmo alpendre, d. Newton diz: "É melhor ficar como está, com a canonização popular; se forem atrás da outra, vai sair muita coisa ruim."

   Um dos livros que d. Newton considera relevante, para o estudo da comissão, chama-se Joazeiro do Cariry, do padre Alencar Peixoto, publicado em 1913, e hoje disponível na biblioteca do memorial. Peixoto foi amicíssimo do padre Cícero, diretor do primeiro jornal de Juazeiro e, ao que consta, sério aspirante a ser o primeiro prefeito da cidade, em 1911.

   O prefeito foi o próprio padre Cícero, como se sabe. Dois anos depois, o livro foi publicado. É panfletarismo com ácido sulfúrico. O suposto milagre é chamado de embuste. "Tramou-o ele nas trevas e nas trevas o concertou com Maria de Araújo, sugestionada pelo espírito do mal. Concertou-o no sentido de tornar-se bichaço, redimindo-se das misérias da pobreza que o traziam atropelado, transmontado e corço", diz o castiço português do padre Peixoto.

   "Esmolas choveram. Roncou, dentro em pouco, esbordando em marulhos, um rio de dinheiro."

   Autor de Eu Defendo o Padre Cícero, o padre Neri Feitosa, de 77 anos, 50 deles como padre, é vigário paroquial de Canindé, a 200 quilômetros de Juazeiro. Defensor explícito do padroeiro de Juazeiro, e crente na tese do milagre, padre Neri critica o acúmulo de riqueza. "O padre Cícero era muito virtuoso em tudo, mas nisso eu não queria imitá-lo", diz, defendendo a posição de que a comissão de estudos deve enfrentar essa questão. Neri espera, da Diocese do Crato, explicações convincentes sobre a herança que recebeu do espólio. Já foi até lá, fazer cobranças com o monsenhor João Bosco, vigário-geral.

   "Ele prometeu me mostrar os documentos que provariam que o dinheiro foi investido em Juazeiro, como mandou o padre Cícero, mas não os encontrou", diz. "Eu quero saber, porque a diocese ocultou esse fato até de seus próprios padres, o que é um absurdo."

   Promessas - É interminavelmente polêmica, além de fascinante, a discussão sobre o padre Cícero Romão Batista. Se prevalecer a tese do padre Murilo - de que o que conta é a fé dos romeiros -, há de se voltar ao do Museu do Horto, e ver, lá, milhares e milhares de promessas pagas, por graças alcançadas. Há pedaços de madeira com órgãos do corpo humano, miniaturas de casas, quepes militares, vestidos de noiva, troféus, medalhas e uma pafernália de fotografias e ofertas de devotos e romeiros que acreditam nos milagres e transbordam de fé.

   Dos últimos registros, há dois agradecimentos ao Padim pela cura de câncer - um da devota Maria do Carmo Socorro Gomes, outro dos pais de menina Izabela de Oliveira Passos. "Essa fé é tudo o que importa", diz o padre Murilo. (L.M.C.)


Monsenhor contesta posições do Bispo

   "Não se pode negar o que houve de negativo na vida do Padre Cícero", diz o vigário-geral do Crato.

   Documento interno da Diocese do Crato mostra que o monsenhor João Bosco Cartaxo Esmeraldo, vigário-geral, formalizou oito divergências às primeiras considerações formais da Comissão de Estudos sobre o Processo de Reabilitação Histórico-Eclesial do Padre Cícero Romão Batista. As considerações, de 2 de fevereiro passado, são, embora preliminares, francamente favoráveis à abertura do processo de reabilitação.

   No primeiro documento que assinou, d. Fernando Panico já afirma que "padre Cícero não participou de nenhuma fraude" e que "o chamado milagre de Juazeiro não se constitui um obstáculo para a sua reabilitação". Também o absolve em relação à atividade política, definindo-o como um "homem conselheiro e virtuoso".

   O documento da comissão relaciona as virtudes do padre Cícero: devoção Mariana e ao Sagrado Coração de Jesus, amor e fidelidade à Igreja, amor e assistência aos pobres, compaixão com os sofredores e pecadores, coragem, paciência e resignação, espírito pacificador, esperança e confiança.

   Negativo - Com a intenção de "contribuir positivamente", monsenhor Esmeraldo fez a seguinte observação: "Penso que podemos encontrar essas virtudes na vida do padre Cícero, mas sem negar o que houve de negativo em sua vida, ou querer diminuir ou amenizar o que a história relata de negativo." Ele também discorda de que o padre Cícero tenha sido "sempre dócil à Igreja em todos os momentos", e de que tenha guardado "obsequioso silêncio" sobre as punições que sofreu da hierarquia católica - afirmações do bispo d. Fernando Panico na apresentação resumida dos considerações da comissão.

   "Não é verdade", diz a carta de monsenhor Esmeraldo, historiando os diversos momentos em que o padre Cícero lutou contra as punições, às vezes recusando-se a cumpri-las. O monsenhor lembra a excomunhão, que não foi aplicada, e entra em detalhes sobre a suspensão das ordens.

   Há divergências, também, quanto aos aspectos do padre Cícero político e participante da chamada revolução de 1913/1914, a que derrubou o governador eleito do Ceará. Esmeraldo cita trechos de livros que enfatizam a atuação política do agora candidato à reabilitação.

   Nas considerações finais, o documento divergente afirma que "uma figura histórica e muito polêmica como a do padre Cícero não pode ser apresentada, sob o ponto de vista científico, como sem qualquer sombra de imperfeição ou defeito". Esmeraldo considera, ainda, que "parece que tenham exposto posições com certa superficialidade e pressa de conclusão, sem se atentar para a totalidade do trabalho de pesquisa e de reflexão feito durante décadas por tantas outras pessoas, acervo que está precisando de sínteses imparciais que sem simplificações atentem para a complexidade da questão".

   Para ele, segundo o documento, "a comissão tem muito a percorrer, com maior profundidade, sobretudo quando se conhecer o arquivo completo do Vaticano sobre o assunto".

   Pedidos - D. Fernando é o quinto bispo do Crato desde que a diocese foi criada, em 1914, e o primeiro a tomar uma medida concreta para a possível reabilitação. Segundo o padre Neri Feitosa, a missão foi determinada pelo Vaticano, por influência do cardeal Joseph Ratinger, prefeito da Santa Congregação para a Doutrina de Fé. Ele cobrou a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil pelos inúmeros pedidos de reabilitação que se acumulam no Vaticano.

   Pesou na balança, segundo o Estado apurou, a influência do salesiano Valério Breda, bispo de Penedo (AL) bem relacionado com um braço direito do cardeal Ratzinger, d. Bertoni Tarcísio. A indicação de d. Fernando - substituindo o renitente d. Newton - estava vinculada ao cumprimento da missão. (L.M.C.)


O PADRE

   Cícero Romão Batista nasceu no Crato (CE), em 23 de março de 1844. Ordenado sacerdote em 1870, em seminário de Fortaleza, mudou-se para o povoado de Juazeiro em abril de 1872. Saiu do anonimato a partir de 1.º de março de 1889, quando houve o primeiro sangramento da beata Maria do Araújo, por ele considerado milagre. O suposto fenômeno enfrentou forte reação da hierarquia católica – e levou o padre Cícero a ser afastado da suas ordens.

   Entrou na política em 1911, como primeiro prefeito indicado de Juazeiro. Em janeiro de 1912, foi eleito terceiro-vice-presidente do Ceará. Deposto da prefeitura em 1913, reassumiu o cargo depois da vitória da chamada Sedição de Juazeiro, em 1914, um movimento armado que depôs o governador cearense Franco Rabelo. Foi prefeito até 1917. Em 1926 foi eleito deputado federal, mas não assumiu o cargo. Morreu aos 90 anos, em 20 de julho de 1934. (L.M.C.) (© O Estado de S. Paulo)

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