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29/05/2001

Patativa do Assaré - Do feijão à poesia

Patativa do Assaré - Foto Dario Gabriel

Aos 92 anos, em plena roça, Patativa do Assaré se diverte em duelos verbais com o sobrinho, finalmente aceito como parceiro e sucessor

JOÃO CARLOS LEAL

   O poeta mal chega à serra, manda logo chamar o sobrinho. Terminado o almoço, larga ele a roça de feijão e segue, obediente, 200 metros pela estrada de terra batida, entra na casa da prima Inês, a filha mais velha do poeta, e procura pela cadeira. Um fica diante do outro. No meio, a pequena mesa de madeira. O sobrinho é Geraldo Gonçalves de Alencar, um agricultor de 55 anos. O tio é Antônio Gonçalves da Silva, 92, mais conhecido pelo apelido de Patativa do Assaré, com o qual construiu a fama de ser um dos maiores poetas populares do Brasil.

   Começa aí o duelo. Cada um tem a sua vez de disparar o mote. A frase, sacada ao acaso, semeia o poema e precisa ser colhida no final da estrofe única - a glosa - tal como foi atirada ao vento. É a regra. Lançado o tema, o agricultor se curva sobre a mesa de cedro e rabisca com lápis o caderno já bastante surrado pelo tempo. Patativa apenas mira as telhas velhas, com os olhos que quase nada enxergam protegidos pelos inseparáveis óculos escuros. ''Estou pronto'', diz o sobrinho. ''Eu também'', responde o tio. Geraldo lê a sua. Patativa declama o que arquivou na memória. Ao final comentam. O poeta, quando se dá por vencido - o que é muito raro - concede ao sobrinho o elogio máximo: ''A sua ficou boa''. Segue um trago no cigarro, a baforada, e Patativa completa: ''Mas a minha também ficou''.

   Tardes inteiras foram consumidas assim, em encontros que se repetiram durante os últimos dois anos, sempre que Patativa conseguia deixar a casa na cidade de Assaré e subir até o sítio da filha, na vizinha Serra de Santana, sul do Ceará. As disputas se transformaram em 100 motes, ou 200 glosas. Geraldo tratou de guardar todas no caderninho - onde anotou tanto seus versos quanto os do tio. No final do mês passado, as páginas deixaram a serra e chegaram às mãos do professor Gilmar de Carvalho, em Fortaleza, da Universidade Federal do Ceará. Vão virar livro, o primeiro com poemas originais de Patativa desde seu sexto e último trabalho, Aqui tem coisa, publicado há sete anos.

   Essa é também a primeira vez que Patativa e Geraldo dividem um livro. Eles já estiveram juntos em coletâneas, que reuniram versos de poetas da serra, organizadas pelo próprio Geraldo. Mas a publicação de originais, produzidos juntos, confirmará o que no Assaré é tido como fato: Geraldo é o herdeiro de Patativa. Gilmar de Carvalho ainda não sabe quando o caderninho vai virar livro. ''Vou mandar digitar e revisar. Depois iremos atrás de verba para bancar a edição. Acredito que a universidade e o governo vão ajudar'', explica.

   O processo deve demorar. O livro de Patativa e Geraldo não deve deixar a gráfica antes do final do ano. E deverá ter a mesma e modesta tiragem dos outros trabalhos. ''Os livros do Patativa nunca têm muito mais de mil a dois mil exemplares. E a distribuição é sempre muito ruim'', lamenta o professor.

   Os poetas não parecem se preocupar com isso. Enquanto o manuscrito permanece guardado na universidade, a brincadeira continua em outro caderno de Geraldo, também já bastante castigado. É que a produção, até então limitada aos finais de semana alternados, quando Patativa podia vir ao sítio da filha, ganhou o incentivo de um infortúnio. Na mesma semana em que os originais seguiam para a universidade, o poeta levou um tombo sério. No começo de abril, semanas depois de completar 92 anos, ele caiu de meio metro de altura, da entrada da casa de Inês ao chão de terra ressequida. Para quem há anos tem apenas sombras e luzes como visão e, desde os 90 anos, só escuta o que é gritado ao pé do ouvido, ter a capacidade de andar reduzida poderia ser um golpe quase fatal, não fosse Patativa um poeta com nome de ave, que se desloca com a imaginação, apoiado apenas pela memória.

   O tombo serviu de desculpa para o poeta se deixar ficar mais um tempo na serra, aos cuidados de Inês e do marido Raimundo Alencar. Para se ocupar, chama Geraldo e, juntos, se divertem criando versos. ''É um jogo. Como um quebra-cabeças, que clareia o raciocínio e melhora as rimas'', explica o sobrinho, que nunca recusa o convite. ''Deixo a roça de lado e vou'', garante.

   Esse confronto vespertino acontece hoje entre poetas que se respeitam. Mas nem sempre foi assim. Aos 10 anos, Geraldo foi mandado pela primeira vez encontrar o tio. Atendeu de pronto. ''Ouvi dizer que você está fazendo poesia'', principiou Patativa, com voz séria e sem rodeios. O sobrinho inocente não testou o terreno antes de avançar. ''É. E já vou bem umas 100 quadrinhas'', respondeu alegre. Patativa continuou no mesmo tom sisudo, nem parecendo se dar conta da criança que estava ali diante dele: ''E quantas prestam?'', disparou.

   Geraldo acusou o golpe e nunca mais foi leviano ao falar de poesia diante do tio. Nem ele e nem qualquer outro dos 20 e tantos poetas que a Serra do Santana produziu desde que Patativa começou a fazer fama para além do Assaré, da região do Cariri e do próprio Ceará. Poesia para Patativa é coisa séria. Tanto quanto manter os vínculos com a terra. O poeta, que só desistiu de cuidar ele próprio da sua roça aos 70 anos, quando foi convencido pela mulher a trocar a serra por uma casa na cidade de Assaré - e, ainda assim, mandou plantar um pouco de milho e feijão, só para ver crescer da janela - é um crítico feroz da poesia que germina entre parentes e vizinhos de Santana.

   ''Ele é exigente demais'', conta Geraldo. O que explica a preocupação dos parentes mais chegados. Ninguém da família, nem os filhos de Patativa, querem se deixar flagrar pelo mestre experimentando versos. E quem arrisca, o faz num segredo só. Basta Patativa farejar um poeta deixando as fraldas para cair em cima, provar a maciez das rimas, a textura da métrica, o sabor das imagens e cuspir sem dó o que não presta. Geraldo sentiu aos 10 anos a precisão dessas bicadas. ''Fiquei com medo, como todos os outros. Mas não recuei e decidi caprichar'', lembra, orgulhoso.

   O herdeiro de Patativa demorou nada menos do que nove anos para conseguir do tio um arremedo de aprovação e mais sete para ser aceito como parceiro de glosas. ''Patativa é um carrasco quando se trata de poesia'', reclama. Pai de seis filhas, Geraldo também é rigoroso. ''Duas meninas - as mais velhas - fazem poemas. É coisa meio tola, mas sai'', diz. (Jornal do Brasil)

Versos feitos na memória

   Se dependesse de Patativa, o seu sexto livro ainda seria o último e as glosas feitas com Geraldo permaneceriam no caderninho do sobrinho e na sua memória. ''O que eu tinha de dizer já disse, que é para o povo saber. Quem não aprendeu, não quis'', enfatizou, no sítio de Inês. A filha, que acompanha a conversa de lado, maneia a cabeça num desmentido silencioso. O pai continua compondo. Uma produção pequena, estimulada pelo sobrinho e interrompida pelas visitas que chegam sem precisar avisar e são recebidas com hospitalidade e cafezinho.

   Patativa é um fenômeno consagrado, com direito a museu em Assaré, inaugurado há dois anos e muitos livros sobre a sua obra. Com educação limitada a uma rápida incursão de quatro meses por uma escola onde o professor era leigo - e isso aos 12 anos - o poeta é um autodidata. ''Da escola, saí lendo e escrevendo, sem ortografia'', lembra. O resto, conta, aprendeu na vida, devorando os livros que lhe chegavam às mãos. ''Tudo quanto eu lia, decorava. Ficava na mente e assim fui me desenvolvendo.''

   A poesia chegou antes da escrita. Aos oito anos, Patativa se encantou com cordelistas. ''Fiquei maravilhado com aquilo e percebi que poderia reproduzir tudo o que via e sentia em verso.'' E assim fez. Num instante ganhou fama na Serra do Santana, onde era chamado para cantar nas festas, acompanhado da viola, os versinhos que fazia ''para agradar aos matutos'', ou apenas para declamar, sem o apoio do instrumento. Sempre sem escrever, só de memória. Da serra, ganhou o país e, aos 47 anos, publicou o primeiro livro:

A   inda hoje, Patativa declama para um único visitante como se estivesse diante de uma platéia. O braço direito se abre em gestos largos, para enfatizar as rimas, e só quando tosse leva uma rasteira da memória prodigiosa. ''É o fumo, que atrasa a vida de qualquer um'', explica enquanto briga com o isqueiro para acender outro cigarro. Ao final, faz sempre um pequeno intervalo, como se ouvisse palmas, e termina: ''Obrigado''. (J.C.L.)

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