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13/06/2001 O mistério da bossa João Gilberto, que faz 70 anos, perpetuou músicas de compositores que permanecem no anonimato da MPB ANA
CECILIA MARTINS Pouca gente sabe que o carioca Bororó - nascido Alberto de Castro Simões da Silva - foi uma espécie de padrinho artístico de João Gilberto, além de responsável pela incursão de Orlando Silva no meio musical. Mas, certamente, não são poucos os que conhecem os versos de A cor do pecado, samba-choro criado pelo compositor em 1939, gravado primeiro por Sílvio Caldas e mais tarde por João Gilberto. Enquanto sua música ganhou o mundo, Bororó (1898- 1986) continuou o mesmo: oficial de Justiça, boêmio, anônimo. Segundo pai - ''Bororó não ligava para fama. Era um boêmio inveterado que tinha um grande talento para compor, mas nunca ficou conhecido além do meio musical'', conta o pesquisador Humberto Franceschi. ''Bororó adotou João no Rio. Era como um segundo pai. Deu para ele um violão e boas lições musicais'', acrescenta Dalton Vogler, amigo do cantor e presidente da Associação Defensora de Direitos Autorais Fonomecânicos (ADDAF). Bororó, autor também de Curare - choro que antes de ser gravado por João integrou o repertório de Orlando Silva -, é personagem típico da trajetória do cantor baiano. João nunca escolheu as músicas que interpretou levando em conta a reputação de seus autores. ''Ele escolhia as canções que prestavam para o seu jogo peculiar. Foi assim com O pato, por exemplo. Ele ouviu a música numa dessas gravações furrecas, gostou do ritmo, achou que a forma lhe servia e resolveu gravar'', comenta Dalton, que manteve contato com Neuza Teixeira - hoje já falecida, como Jayme -, quando ela aparecia para receber seus direitos autorais. ''A música O pato foi gravada em todo o mundo e rendeu algum dinheiro para a dupla. Mas fama, nem pensar'', afirma Dalton, ele mesmo um compositor reservado. É autor de Balada triste. João nunca conheceu Jayme e Neuza. Também nunca esteve com o pernambucano Inaldo Vilarinho, que escreveu os versos e as notas de Eu e meu coração, em parceria com Antonio Botelho. Antes de o baiano gravar a música, Doris Monteiro e Maysa já haviam feito isto. ''Mas quando João gravou, Ivaldo ficou extasiado pois era, antes de tudo, seu grande fã'', lembra Genilde Lobato de Medeiros, 70 anos, viúva de Vilarinho, morto em 1993. Bem que Inaldo, radialista e autor de frevos carnavalescos, tentou estar frente a frente com João. ''Fomos assistir a uma apresentação aqui no Recife para tentar falar com ele, mas não conseguimos. Acabamos conversando mesmo pelo telefone'', diz a viúva. A gravação do intérprete consagrado não rendeu dinheiro a Inaldo Vilarinho. Também não lhe lançou para a fama. ''Mas ele experimentou uma satisfação única, que valeu por tudo isso'', acredita Genilde. Tom e João - ''João sempre teve uma espécie de magia. Era cair na sua boca que a música virava sucesso'', comenta Dalton Vogler, que promoveu o encontro do João e Tom Jobim durante noites insones nos bares e boates do Rio em meados dos anos 50. ''Eu tocava na época com Johnny Alf na boate do Plaza Copacabana, e Tom e João sempre iam nos assistir. De tanto se esbarrarem, acabaram ficando amigos. Quando gravou Chega de saudade, de Tom e Vinícius de Moraes, em 1958, João me convidou para ouvir a gravação na Odeon e me perguntou se eu achava que era bom'', conta. Dalton falou que sim. Estava certo. A gravação estourou. E João continuou carreira a fora gravando músicas que encontrava pelo caminho, compostas por pessoas que esbarrava pela vida. Foi assim que chegou até É preciso perdoar, escrita pelo jurista e compositor bissexto Carlos Coqueijo em parceria com Alcyvando Luz. João e Coqueijo se conheceram através de Dona Patu, mãe de João, que morava no mesmo edifício que o juiz - que chegou a ministro do Tribunal Superior do Trabalho - e sua mulher, Aydil Costa, em Salvador. Ficaram amigos. ''Certa vez estávamos em Nova Iorque e fomos visitar João. Passamos a noite inteira no apartamento dele ouvindo Coqueijo cantar É preciso perdoar, incessantemente. Só paramos para comer uma salada. João guardou a música de ouvido e um tempo depois gravou'', conta Aydil, 69 anos, viúva de Coqueijo, morto em 1988, aos 64. Coqueijo era bem relacionado e desfrutava de grande conhecimento musical. Chegou a dirigir o Teatro Castro Alves, em Salvador, e recebia em casa artistas como Gilberto Gil, Maria Bethânia e Caetano Veloso. ''Nós apresentamos João a Caetano num jantar em nossa casa'', recorda Aydil, que se dedica atualmente a digitalizar uma série de fitas com gravações caseiras de João, Astrud e Coqueijo. ''Tem até uma música de João, que Coqueijo fez a letra e que nem nome tem'', sublinha a viúva, lembrando de outras composições do marido que saíram do circuito caseiro, como Ave Maria do retirante, gravada por Maysa e Fafá de Belém. Coqueijo também teve outras canções agregadas ao repertório do Quarteto em Cy. ''Mas É preciso perdoar, interpretada por João, foi o ponto mais alto de sua trajetória musical'', garante Aydil. Foram apenas 11 as músicas que João compôs e que foram gravadas. Uma atitude coerente para um artista que aposta essencialmente em um trabalho de recomposição. Por isso, sempre esteve atento a tudo que ouvia. Dessa maneira, João captou as nuances musicais de outros tantos coadjuvantes da história da música brasileira como Janet de Almeida(Pra que discutir com a madame?), Denis Brean (Bahia com h), Jonas Silva (Rosinha) e Dadinho (Cordeiro de Nanã). Nomes que estão de fora de quase todos os livros de referência da MPB, mas que se mantêm presentes - e permanentes - nos acordes e na voz de João. (Jornal do Brasil)
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