Um filósofo da geografia AZIZ
AB'SABER
Milton Santos foi um filósofo da geografia. Foi um intelectual comprometido
com a sociedade e com os excluídos. Um cidadão que reuniu o conhecimento do mundo do seu
tempo para pensar as necessidades do Brasil.
Eu digo isso com sinceridade porque o conheci quando
ele veio da Bahia como advogado e professor secundário de geografia. Tivemos uma longa
convivência.
Ele fez toda a sua trajetória dentro das
universidades. Primeiro, na PUC de Salvador, depois na Universidade Federal da Bahia e,
depois de 1964, no exílio. Vivendo em condições sofridas, Milton se retirou para a
França.
Lá, ele teve a idéia de buscar um estudo seu sobre
o centro urbano de Salvador e transformá-lo em uma tese de altíssimo nível. Aí
começou a sua carreira internacional, recebendo o espaço que havia sido negado no
Brasil.
Uma vez, Milton nos disse que inspirava o seu
comportamento no ideário de Jean-Paul Sartre: o intelectual tem conservar toda a
independência imaginável.
Milton foi assim. A sua militância não era a da
politica partidária, mas no campo das idéias. Por isso, ele se diferenciou dos demais.
Tinha uma energia permanente e se desdobrava em brigas do cotidiano pelas idéias
originais.
AZIZ NACIB AB'SABER, 76, geógrafo, é professor
emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e pesquisador do
Instituto de Estudos Avançados da USP.
Geógrafo publicou mais de
40 livros e recebeu 20 títulos "honoris causa"
Um dos intelectuais mais conhecidos do Brasil, o geógrafo Milton Santos, 75,
recebeu 20 títulos "honoris causa" pelo mundo. Foi o único pesquisador fora do
mundo anglo-saxão a receber, em 1994, o prêmio Vautrin Lud, o "Prêmio Nobel"
da geografia.
Publicou mais de 40 livros (veja quadro ao lado) e
300 artigos. Foi consultor da OIT (Organização Internacional do Trabalho), OEA
(Organização dos Estados Americanos) e Unesco (Organização das Nações Unidas para
Educação, Ciência e Cultura).
Conciliava seu trabalho acadêmico com a
participação na Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, da qual fazia
parte desde 91, e no Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano. Escrevia regularmente na
seção "Brasil 501 d.C." do Mais!.
Milton de Almeida Santos nasceu a 3 de maio de 1926,
em Brotas de Macaúba, na Chapada Diamantina (BA). Filho de professores primários,
aprendeu a ler e a escrever aos cinco anos. Só foi matriculado num ginásio aos dez anos
-o Instituto Baiano de Ensino, em Salvador. Aos 15 anos, dedicava suas horas de folga a
ensinar colegas menores do colégio.
Descendente de escravos emancipados antes da
Abolição, Santos chegou a pensar em cursar engenharia, mas desistiu quando o alertaram
que havia resistência aos negros na Escola Politécnica.
Isso não impediu que enfrentasse várias manifestações de racismo.
Durante a fundação da Associação dos Estudantes
Secundários da Bahia, da qual Milton Santos participou ativamente, foi convencido a não
se candidatar ao cargo de presidente: seus colegas argumentaram que, como ele era negro,
não seria capaz de conversar com as autoridades.
Terminado o ginásio, Milton seguiu para a
Universidade Federal da Bahia, onde formou-se em direito, em 1948. Dez anos depois, Milton
Santos tornou-se doutor em geografia, pela Universidade de Estrasburgo (França).
Milton Santos também atuou como jornalista, tendo
acompanhado Jânio Quadros numa viagem a Cuba, em 1960, época em que já era um geógrafo
conhecido em seu Estado. Tornou-se amigo e profundo admirador de Jânio, chegando a ser
subchefe da Casa Civil e representante do governo federal em seu Estado. Mas se
decepcionou com a renúncia, em 61.
Em 1964, presidiu a Comissão Estadual de
Planejamento Econômico, órgão do governo baiano. Durante sua permanência na comissão,
Milton Santos foi autor de propostas polêmicas, como a de criar um imposto sobre
fortunas.
No regime militar, Milton Santos combinava as
atividades de redator do jornal "A Tarde", de Salvador, e a de professor
universitário, defendendo posições nacionalistas. Acabou sendo demitido da Universidade
Federal da Bahia e passou 60 dias preso em Salvador. Só foi libertado porque sofreu um
princípio de infarto.
Aconselhado por amigos, aceitou convite para lecionar
no exterior. Foi professor das universidades de Toulouse, Bordeaux e Paris (França);
Toronto (Canadá); Lima (Peru); Dar Assalaam (Tanzânia; Columbia (EUA); Central de
Venezuela e Zulia (Venezuela). Voltou definitivamente ao Brasil em 1977, para lecionar na
USP.
REPERCUSSÃO
ANTONIO CANDIDO, crítico literário, professor emérito da USP: "A morte de
Milton Santos é uma perda irreparável. Ele representava nas ciências humanas o que se
pode chamar de ala combatente. O que foi Florestan Fernandes na sociologia, ele foi na
geografia humana. Nos seus trabalhos, o rigor científico nunca foi obstáculo a uma
consciência social desenvolvida e profundamente arraigada nos problemas do Brasil. Era um
cientista de vanguarda e um grande cidadão".
CELSO FURTADO, economista e ex-ministro do Planejamento (63-64) de João Goulart:
"Conheci o Milton na Europa, no exílio, depois do golpe de 64. Era uma pessoa
modesta, muito simples, e só aos poucos fui percebendo a grandeza de seu pensamento. Não
era apenas um cientista social, era um homem de pensamento muito rico e abrangente. Nunca
tinha visto um geógrafo com tamanha amplidão de vista e percepção dos problemas
maiores da sociedade".
MARTA SUPLICY, prefeita de São Paulo: "São Paulo perde um colaborador que
organizava um grupo para pensar o impacto da globalização nos grandes centros urbanos,
mas o Brasil perde muito mais. Perde um dos seus grandes pensadores, alguém que não
tinha o medo de pensar o novo, uma pessoa como Sérgio Buarque de Holanda e Darcy
Ribeiro".
MARCO AURÉLIO GARCIA, secretário da Cultura de São Paulo: "O país perde um
de seus últimos intelectuais com visão abrangente e profunda do Brasil. A inteligência
sofreu um golpe. Mas as idéias e o exemplo do professor Milton Santos perdurarão".
PAULO SÉRGIO PINHEIRO, coordenador do Núcleo de Estudos da Violência da USP:
"Conheci o Milton em setembro de 1967, em Paris, na casa de Celso Furtado. Era um
mestre e um grande humanista. Foi um dos maiores geógrafos do século 20. Para a USP e a
cultura brasileira, é uma perda chocante".
CARLOS LESSA, economista, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro:
"O Milton era uma figura de proa do país. Ele está para a geografia moderna no
mesmo nível que o Fernand Braudel [historiador francês" está para a história. Era
um intelectual engajado nas causas sociais e democráticas".
MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES, economista, professora emérita da Universidade
Federal do Rio de Janeiro: "Milton Santos morreu? Ai, mas que má notícia você me
deu agora. É uma mágoa terrível. Eu queria muito bem a ele. Ia deitar para dormir um
pouco, mas agora não vou mais conseguir. Eu o prezava muito. É só o que tenho
condições de dizer agora".
FRASES
"O fato de eu ser negro e a exclusão correspondente acabam por me conduzir à
condição de permanente vigília"
"Não sou militante de coisa nenhuma. Essa idéia de intelectual, apreendida com
Sartre, de uma independência total, distanciou-me de toda a forma de militância"
"A cultura oficial brasileira (...) nutriu-se de uma visão vesga do mundo."
"Havia um autoritarismo explícito que convocava à oposição da inteligência,
mas hoje há um autoritarismo encapuzado, mais eficaz, porque nasce niilista e termina
niilista"
"O debate atual do Brasil é esse: não dá para dar as costas à globalização,
só que ela está sendo descrita de maneira incorreta"
MILTON SANTOS
depoimento à revista Adusp, nº 17 |