Caetano diz que cantar
"só um tapinha não dói", causadora de vaias em seus shows recentes, afasta os
"chatos"
"Não quero gente chata atrás de mim" Na sequência de sua entrevista, Caetano responde sobre a
atual relação dos artistas com a indústria, que emplaca trabalhos de regravações ao
vivo (seu "Prenda Minha", de 98, vendeu 1,125 milhão de cópias), mas empaca no
que os artistas têm de inédito para cantar ("Noites do Norte" está em 115
mil, segundo sua própria gravadora).
(PEDRO ALEXANDRE SANCHES)
Folha - A presença de seu filho Moreno em "Noites do Norte" o aproximou
do rock de guitarras?
Caetano Veloso - O disco tem muita coisa a ver com Moreno. Ele está muito
presente, e Pedro Sá também. Eu estava interessado em coisas técnicas em que eles, por
serem jovens, estão mais inteirados que eu. Sempre trabalhei sem a menor ambição de
controle do resultado sonoro. É uma pena, porque hoje há tanto interesse por meu
trabalho em vários lugares do mundo e eu não tenho uma obra bem-acabada para mostrar.
Era uma anarquia total, era até um modo de resistir ao "producismo" e ao
"losangelismo" que estavam na moda. Para nós era assim: vamos todos para o
estúdio, a turma, e lá a gente toca.
Folha - Hoje você é o contrário disso, não?
Caetano - Eu não esperava perenidade para os discos nem reconhecimento
internacional. Mas os anos foram passando, e em "Velô" (84) resolvi mudar, quis
fazer um disco produzido. Daí em diante foi assim. Mas queria fazer um
"negocim" mais meu e então encontrei Jaques Morelenbaum
Folha - Você se irrita quando ele é tratado como um
padronizador?
Caetano - Ele é um músico de grande capacidade, não é um homogeneizador porque
o que faz em cada um de meus discos e shows é sempre muito diferente. Talvez as pessoas
tenham medo do alto nível e da capacidade de Jaquinho. No Brasil todo mundo se sente
incompetente porque é brasileiro, parece que tem incompetência inata. No fundo é um
pretexto para que a pessoa possa ser preguiçosa e irresponsável.
Folha - Fracassomania?
Caetano - Podia ser, já ouvi, Fernando Henrique adora usar essa expressão. Nunca
usei. Tudo bem, por que não? Eu defendia Pelé nos anos 70 contra todos os formadores de
opinião. Havia uma obrigação de ser de esquerda, de denunciar tortura. Eu achava tudo
errado, você tem o luxo de produzir Pelé e ainda vai reclamar? Tem que ajoelhar na
frente de Pelé. E calar a boquinha.
Folha - Você prefere a reverência à irreverência?
Caetano - Acho altamente irreverente ter coragem de realmente ser reverente com
quem merece ser alvo de reverência. Agora houve um prêmio do canal Multishow, aparece
uma menina, Wanessa Camargo, e a platéia vaia. Você acha que nos Estados Unidos Celine
Dion vai cantar no Oscar e a platéia vai vaiar? Lá há um número enorme de pessoas da
platéia que devem pensar que Celine Dion é um saco. Mas não vão vaiar, porque Celine
Dion, com aquela música intragável, vendeu trilhões no mundo inteiro, e os americanos
não querem destruir a capacidade deles próprios de produzirem e se afirmarem.
Folha - Mas para cada Celine Dion eles têm dez contrapontos
a ela.
Caetano - Não, para cada Celine Dion eles têm 30 Celines Dion, a maioria delas
preta e todas cantando muitíssimo bem. No Brasil não há. As pessoas que têm capacidade
de cantar dificilmente chegam ao estrelato aqui. Só Elis Regina chegou ao estrelato de
primeiro lugar. Você tem Joyce, Jane Duboc, meninas incríveis que ficam no coro o resto
da vida. São carreiras injustamente falhadas. Lá, não, porque a cada antiga Celine Dion
que apareceu o que falou mais alto não foi a vergonha. Quando digo que Sandy canta bem é
porque ela canta. É bom que se possa criar uma indústria competente em torno disso.
Folha - Como avalia a saúde atual da indústria
fonográfica daqui?
Caetano - Houve um crescimento grande do país e uma grande subida no mercado
alguns anos atrás. Depois disso houve uma queda, hoje há uma possibilidade de
instabilidade porque o Brasil é um país muito instável. O governo que está aí fez
muitas trapalhadas, uma em cima da outra. A crise energética é inaceitável, um
presidente não pode ser surpreendido por uma questão relativa a um setor de longo prazo.
Está errado, é incompetência. A perda da respeitabilidade política pela liberação de
verbas para os parlamentares não votarem a favor da CPI da corrupção foi algo muito
malfeito. E sobre o artigo de José Arthur Giannotti na Folha, se há uma área cinza em
que a moral não deve entrar, justamente essa não deveria ser dita. Não deve ser
explicada como uma mostra de maior inteligência ainda. Há algo de doentio nessa
superioridade errada do lado USP do PSDB.
Folha - Em entrevista à Folha em 97, você classificava
como má-fé dizer que FHC pudesse ter comprado votos de parlamentares para a reeleição.
Reviu aquela impressão?
Caetano - Essas tramóias e essa zona de sombra moral de que fala Giannotti de
fato existem e têm que existir. Mas para existir quem faz tem que saber fazer, tem que
saber mantê-la na sombra. Não basta posar de bacana. Não falo isso para dizer que tenho
a mesma opinião dos críticos do governo, nem da reação popular a ele. Há uma evidente
perda de perspectiva, mas até aqui a passagem de FHC pela Presidência tem um saldo
positivo e uma marca positiva na história futura do Brasil.
Folha - Voltando ao mercado fonográfico, os artistas têm
precisado fazer muitos discos ao vivo e de regravações para ter sucesso.
Caetano - Olha, como isso não tem impedido que discos novos com algo novo a dizer
apareçam, não vejo nenhum problema. Os discos de canções regravadas são bons, porque
engrossam o caldo da memória brasileira. Antigamente, no Brasil, parecia que a pessoa
tinha que ir se descartando logo de si mesma. Quanto a isso, os discos ao vivo e as
revisitações de repertório são de extrema positividade. Há casos que vão para um
nível baixo de comercialismo e oportunismo, de aproveitamento do que é mais fácil. Mas
isso é o mercado. Eu não sou o mercado, sou um artista e sou livre.
Folha - De "Prenda Minha" para o disco inédito,
você perdeu nove em cada dez compradores. O mercado não o aprisiona num modelo de
valorizar só o que você já foi?
Caetano - Não, de jeito nenhum. "Noites do Norte", que é um disco
difícil, vendeu mais ou menos o que meus discos vendem. O caso de "Prenda
Minha" é que saiu da norma. Se 150 mil chegarem a comprar "Noites do
Norte" já é muita coisa, já é um disco danado. Não posso posar de coitadinho,
como não sou, nem dizer que o mercado está me estrangulando.
Talvez as coisas fiquem repetitivas. Talvez não, com certeza. Mas é uma tendência
natural de quem vende, fazer o que vende mais facilmente. É claro que a gravadora tem que
querer isso. Seu jornal não quer que você faça de modo a que ele venda mais? Vocês
não fazem coisas muito mais abjetas do que qualquer um de nós possa fazer para que o
jornal venda mais?
Folha - Você pode responder em relação a seu meio, sem
comparar?
Caetano - Essa comparação é que é importante. Mas a questão é que é natural
que uma empresa que vende discos queira vender discos. E que, se ela descobre qual a
melhor maneira de vender discos, ela vai tender a fazer isso. Nunca vi o "New York
Times" dizer que Ray Charles é um imbecil. Abro a Folha e vejo dizerem isso de mim e
de Chico Buarque.
Folha - Que são imbecis?
Caetano - Praticamente. Só falta xingar a mãe da gente. O artigo sobre o disco
de Chico falava mais de mim que dele. Era desrespeitoso, ofensivo, horrendo.
Folha - Você é orientado pela culpa por ser branco e
homem, como afirmou texto do "JB"?
Caetano - Não sou branco. Nem sou homem. O artigo é confuso, mas me fez bem,
porque tratou com muito amor o show. A questão racial é crucial para mim. O movimento
negro, sob influência dos americanos, trouxe muitas coisas boas, mas também têm
ameaçado muitos tesouros nossos. Essa sensação espontânea de que não se tem que
pensar as pessoas como divididas racialmente é um tesouro, é algo divino, que o Brasil
tem como experiência e deve ser reencontrado.
Folha - Essa postura não oculta atrás dela um homem
branco, poderoso, um "senhor de escravos"?
Caetano - Joaquim Nabuco diz que cada indivíduo brasileiro é um composto de
senhor e escravo. É esse composto que é nosso dever transformar em cidadão. Passando a
ser cidadão, você vira alguma coisa que transcende isso.
Folha - Você tem reagido bem às vaias à música do
tapinha?
Caetano - É uma centena ou duas de pessoas entre 2.000. É uma vaia danada, 200
pessoas vaiando. Me divirto um pouquinho. É surpreendente, porque havia sido cantado por
Fernanda Abreu, Adriana Calcanhotto e Rita Lee, e é uma obviedade total.
Folha - As vaias de agora não vêm de você ficar
intransigente na defesa de seu apreço por Sandy e congêneres e marginalizar a elite
cultural que o adorava?
Caetano - Por mim... Afasto os chatos. Não quero gente chata atrás de mim.
Folha - Os chatos que pagam R$ 85 para ver seu show?
Caetano - Uma coisa não tem nada a ver com a outra, que sociologia é essa? Os
dias que mais me vaiaram no Canecão foram os dos ensaios abertos, quando custava R$ 10.
Era uma gente mais jovem, mais ambiciosa intelectualmente, que tem pouco dinheiro e se
sente mais ameaçada por determinadas posições estéticas ou culturais. É uma vontade
de dizer "eu sou mais bacana do que o resto". É do chato bacaninha que estou
falando, não do burguês que tem dinheiro para pagar.
Folha - Por que em "Rock'n'Raul" você tacha Raul
Seixas, que misturava repente e baião com rock, como um mero americanizado?
Caetano - Essa visão foi ele que deu. Desde a Bahia eu sabia de sua
identificação imediata com o rock'n'roll e com a figura do americano. É completamente
diferente do nosso pessoal. Ele às vezes conversava em inglês, teve duas mulheres
americanas, andava de bota americana. Mas ao mesmo tempo era muito "baianista".
Falava com sotaque carregado, só usava gírias de Salvador, isso aparecia na música. Mas
pegou o pós-tropicalismo, um mundo fácil para ele quanto a isso.
Folha - Tom Zé também fez uma música sobre Raul, mas
admitindo sua brasilidade, colocando-o lado a lado com Luiz Gonzaga.
Caetano - Ouvi a música do Tom Zé, vi que eles chegam ao FMI. É bacana, porque
no fundo termina sendo a mesma coisa. Também entendo como enfrentamento, na minha música
Raul diz "mas minha alegria, minha ironia é bem maior do que essa porcaria".
(Folha de S. Paulo)
Lobão critica Caetano com
"declaração de amor" em música
MARCELO BARTOLOMEI
Por discordar das idéias de Caetano Veloso, o cantor Lobão incluiu uma
canção na nova turnê do CD "A Vida É Doce".
"Não é uma homenagem, é uma declaração de
amor. Eu chego até a chorar no final da música... O tom da minha voz é explícito. Não
quero que seja visto como deboche, porque é muito emotivo."
"Para o Mano Caetano" (leia trecho ao lado)
surgiu depois que Lobão conheceu a letra de "Rock'n'Raul", que está no disco
"Noites do Norte", de Caetano.
"Eu nunca mais ouvi aquela música. É uma
homenagem escorregadia, ambígua, ele não pode fazer uma homenagem a um grande inimigo
dele [Raul Seixas", que está enterrado e não pode falar nada", disse Lobão,
que estreou "Para o Mano Caetano" nos palcos durante o Brasília Fest Rock, no
início do mês.
Lobão se preocupou mais com o trecho de
"Rock'n'Raul" em que Caetano diz ter vontade "fela-da-puta" de ser
americano. "Isso não é verdade, e ele está me incluindo. Eu venho retrucando
Caetano sistematicamente muitas vezes."
Segundo ele, "Para o Mano Caetano" é uma
resposta a 20 anos de indignação. "Caetano é uma pessoa que eu adoro, que eu amo,
mas com quem tenho profundas divergências estéticas, filosóficas, existenciais e de
pensamento."
A letra foi publicada em um artigo na internet,
depois ganhou arranjos e uniu suas contundentes palavras a um ritmo heavy metal. "A
letra ficou muito caetânica, porque é ambígua. Até na primeira pessoa do singular eu
não sei se sou eu ou ele, se estou declarando meu amor a eu (sic) ou a ele."
Lobão não poupa o baiano com os trechos "Amado
Caetano: chega de verdade/Viva alguns enganos/Viva o samba, meio troncho,/Meio já
cambaleando/A bossa já não é tão nova/Como pensam os americanos" e "Meu
amado Caetano/Me ensinando a falar inglês/London, London...".
No show que fez em Brasília, Lobão apresentou a
música como "uma canção de amor".
O cantor fará uma turnê no Rio em julho e, em
agosto, vai à Europa mostrar a música, que sairá no Brasil só em DVD gravado pelo
Multishow. (Folha Online) |