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Como um artesão, Osman Lins cria labirintos verbais

14/09/2003

 


RODRIGO PETRONIO
FREE-LANCE PARA A FOLHA

   É um lugar-comum entre historiadores ressaltar a importância da perspectiva, criada no século 15 e espinha dorsal do Renascimento. Mas poucos perceberam o quanto ela foi empobrecedora, pois homogeneizou as representações em uma única visão. Em outras palavras: trocou o olho "espiritual" pelo olho "carnal" e deu origem àquela arte que Duchamp batizou pejorativamente de "retiniana". As infinitas figurações existentes até então foram reduzidas ao despotismo de uma técnica: o ponto cêntrico.

   Nesse sentido, é notável a lucidez de Osman Lins (1924-78) em uma entrevista concedida à revista "Escrita", em 1976. Nela, relata o impacto que sofreu quando tomou contato com a arte românica e com os vitrais medievais na França. Nessa arte, diz, não há centro: o mundo é visto como um caleidoscópio. E arremata: só veremos algo semelhante bom tempo depois, com o advento da arte moderna no século 20. A antologia "Osman Lins - Melhores Contos" é uma ótima iniciação à obra desse artesão de labirintos verbais e uma entrada para o seu universo literário multifacetado.

   Os contos foram extraídos de dois livros: "Os Gestos" (57) e "Nove, Novena" (66). Tendo em vista que o autor levou quase dez anos trabalhando no primeiro e sabendo-se que há um intervalo semelhante entre aquele e este, tal reunião deixa de ser mero mostruário de seus melhores momentos e transforma-se em uma síntese de boa parte de sua carreira literária e transformações estilísticas.
"Os Gestos" segue uma linha de tom realista, com cenas vazadas por fortes doses de lirismo que em alguns momentos tende ao expressionismo. Doentes, crianças, um discurso feito em face de um morto, o triste reencontro de dois amigos de infância: são cenas fechadas, que se passam na intimidade dos personagens e registram a impossibilidade do amor e questões ditadas pela morte.

   Nessa obra vemos alguns recursos de que Lins vai se valer depois, como experiências com discurso indireto livre e com as combinações possíveis de um enredo. Mas eles só vão se tornar a marca indelével do estilo maduro do autor em "Nove, Novena". São desse livro os contos mais engenhosos, nos quais a figuração da miséria vem sempre perpassada pela lucidez da forma.

   Assim, temos estórias magistrais, como "Conto Barroco ou Unidade Tripartita", onde o embaralhar de várias linhas narrativas funciona como as linhas melódicas de uma invenção a várias vozes, e é a base para a criação de uma realidade (brasileira) plasmada pela alucinação, a morte e a decadência. Essa aventura narrativa segue em crescendo e culmina em uma obra-prima: "Retábulo de Santa Joana Carolina".

   Nesse conto, Lins cria uma fábula medieval alocada em plena realidade nordestina. Desde a subdivisão em mistérios (dos autos religiosos) até a criação de recursos tipográficos para marcar uma cena ou personagem. O resultado é uma visão da literatura como um microcosmo do universo e uma mágica de correspondências onde a forma literária é quase uma equivalente estrutural da vida: um espaço virtual onde as coisas se interpenetram e se comunicam.

   A antologia foi prefaciada e selecionada por Sandra Nitrini, que também assina o posfácio da peça que inspirou o filme "Lisbela e o Prisioneiro". Resta a esperança de que os lançamentos iluminem esse que foi um dos grandes escritores brasileiros do século 20.

   Quem sabe com seu trabalho de dramaturgo, contista e romancista, também não volte à circulação uma de suas facetas mais instigantes e polêmicas: a de ensaísta. Dada a persistência dos problemas inculturais brasileiros, como sempre atualíssimos, seria no mínimo um ótimo reconforto.

Osman Lins - Melhores Contos 
Autor: Osman Lins
Editora: Global
Quanto: R$ 32 (224 págs.)

Lisbela e o Prisioneiro
Autor: Osman Lins
Editora: Planeta
Quanto: R$ 32 (120 págs.)

(© Folha de S. Paulo)

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