|
20/09/2003
Fagner e Zeca Baleiro promovem encontro de gerações, estilos musicais e Estados nordestinos com disco em dupla PEDRO ALEXANDRE SANCHES Nasce como um encontro de contrastes o disco em dupla do cearense Raimundo Fagner, 53, e do maranhense Zeca Baleiro, 37. Os dois são de gerações diversas, vêm de Estados nordestinos próximos-distantes e cumpriram rotas migratórias divergentes (Fagner, hoje fixado em Fortaleza, viveu muito tempo no Rio; Zeca mora em São Paulo) em busca da música popular de sucesso. Sabem que o ato de união num disco de músicas inéditas feitas em parceria pelos dois (e com vários outros co-autores) tem pesos próprios para cada um deles. Fagner reconhece que andava em certo marasmo ao justificar por que um artista do alto de 30 anos de carreira em disco concedeu o raro privilégio da parceria a um discípulo mais jovem. "Estive em todas as gravadoras, fui prejudicado por várias. Isso às vezes cansa e desestimula. Estava um marasmo para mim, e Zeca entrou nesse espaço da renovação de parceiros", explica Fagner, que no entanto conserva no disco a presença constante do parceiro cearense Fausto Nilo, 59. "Somos uma dupla de três", brinca. Zeca, por sua vez, diz ter consciência do risco de se ligar a uma referência musical sua que partiu do intenso experimentalismo de início de carreira a uma adesão ferrenha à popularidade dita "brega" dos anos 80 em diante. "Talvez fosse mais cômodo fazer uma parceria com um artista mais unânime, e não com Fagner, que num dado momento optou deliberadamente por uma faceta romântica. Mas tenho natureza provocadora, acho que isso também nos aproximou", diz Baleiro. Segundo eles, tudo isso os separa de outro encontro recente (e bem-sucedido), dos Tribalistas Marisa Monte, Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown. "Quando esses encontros acontecem, em geral são entre pessoas da mesma turma, da mesma geração, da mesma prateleira. É louvável o encontro dos Tribalistas, mas é diferente", afirma Zeca. Não querem afirmar com isso que não haja maiores afinidades entre eles -ao contrário. "O nosso universo em comum é o Nordeste", resume Fagner. "Ele é filho de libaneses, eu sou neto de sírios", acrescenta Zeca. "Dizem que dois bicudos não se afinam, mas discordo. Só se afina com dois bicudos", provoca Fagner. Zeca demonstra concordar-discordar: "Os sete shows que fizemos juntos foram uma grande experiência para que este disco existisse. Se tivéssemos discutido ali estava tudo sepultado". E Fagner se lembra de ponto que julga crucial na consumação do acordo: "Nos une a preocupação poética e melódica, que sempre tive e peguei dele agora". (© Folha de S. Paulo) Dupla reaproxima o "Nordeste de cima" Artistas falam sobre música baiana e nordestina, o "pessoal do Ceará" dos anos 70 e sucesso popular DA REPORTAGEM LOCAL Fagner e Zeca Baleiro afirmam que não têm como meta intencional promover uma reaproximação do "Nordeste de cima", que ficou ofuscado, nos 90, pela hegemonia baiana da axé music. Mas não se furtam de discutir o tema. "A Bahia não é o Nordeste, nem o axé é um tipo de música associado ao Nordeste", começa Zeca. "A música baiana é ensaiada no Nordeste e se apresenta no Sul. Os baianos estão muito mais virados para o sul", provoca Fagner. Aí se localiza outra peculiaridade do disco da dupla, que foi gravado no Ceará, no estúdio de Fagner, de forma totalmente independente de gravadoras -só ao final do processo a gravadora Indie Records encampou o trabalho. O selo de Zeca, o também independente MZA, cedeu o artista para o projeto. Zeca conta ter escrito letras tendo à janela a praia do Mucuripe, tema de "Mucuripe" (72), melancólica canção que lançou os compositores Fagner e Belchior quando Elis Regina a transformou em sucesso, em 72. Isso daria ao disco uma brisa experimental à moda do Pessoal do Ceará (movimento do início dos anos 70 de que emergiram Fagner, Belchior, Ednardo, Fausto Nilo, Amelinha e vários outros)? Eles acham que o CD não possui esse aroma em predomínio, mas Zeca concorda quanto a um dom mais compacto da música cearense em relação à maranhense. "O Maranhão sempre esteve apartado, nunca teve representantes nacionais. Tivemos nomes isolados, como João do Vale, Chico Maranhão, Nonato Buzar, Alcione. O Nordeste sofre de seca, eu sofri foi com enchente." Fagner diz considerar ilusória a aparente afinidade entre os músicos nordestinos de Ceará, Paraíba (Zé Ramalho, Elba Ramalho) e Pernambuco (Alceu Valença, Geraldo Azevedo). "Fomos desagregados sempre. Fui um pouco aglutinador, virei executivo da CBS e levei grandes porradas por isso", relembra Fagner. "Fiquei um pouco traumatizado, nego achava que eu mandava na gravadora, mas o que eu fazia era gravar os discos." Não esconde uma ponta de melancolia pela desagregação do "pessoal do Ceará". "Meu melhor parceiro foi Belchior, e a última música que fizemos juntos foi no Ceará. Corri atrás de nos reunirmos nos últimos anos, mas nunca deu certo", lamenta. Enquanto o "pessoal do Ceará" se reuniu num disco de 2002 de Ednardo, Belchior e Amelinha, Fagner achou Zeca Baleiro. E celebra o encontro: "A gente tem que ser cavalo-de-batalha da renovação. Não vamos nos furtar de sair por aí mostrando o trabalho". Zeca vai além: "Ninguém aqui é ingênuo. Nós sabemos do potencial comercial desse encontro, que pode agregar o público dele ao meu, o meu público ao dele. Não temo o sucesso popular". Artesão experiente de sucesso popular,
Fagner relativiza fora do alcance dos ouvidos de Zeca Baleiro o discurso que aparentemente
parece desvalorizar o parceiro mais jovem, em detrimento da nostalgia cearense: "Ele
é bicudo também. Tenho que segurar, dar umas broncas de vez em quando". (© Folha de S. Paulo) CRÍTICA Reconciliação nacional é a proposta central do encontro DA REPORTAGEM LOCAL O trunfo inicial de "Raimundo Fagner & Zeca Baleiro" é a dificuldade de decifrá-lo. Não soa óbvio, parece inusitado, envolve riscos de parte a parte. O trunfo central é o esmero com que foi
concebido e produzido. Melancólico quase de ponta a ponta, o disco rejeita a cada sulco a
banalidade e os hábitos arraigados da música popular recente. Pois juntos desfolham o mal-me-quer de uma coleção de baladas agrestes, despojadas, cearenses como na obra rica de Fagner-Belchior-Ednardo -e bem parecidas, nisso, com a produção individual do discípulo Zeca Baleiro. Já cobiçam o relicário da canção popular brasileira "Balada de Agosto", o samba maranhense "Um Real de Amor", a cavalgada cearense "Dezembro", "Hotel à Beira-Mar", o poema tropicalista-piauiense de Torquato Neto "Daqui pra Lá de Lá pra Cá", a belezura de "Azulejo" (dos dois com o mediador Sérgio Natureza). O êxtase se dá em "Três Irmãos", canção tradicional francesa do século 16 vertida por Fausto Nilo ao linguajar trágico de periferia das metrópoles brasileiras. Por ela, duas vozes díspares vertem lágrimas e sublinham que o pessoal do Ceará e o pessoal do Maranhão sangrou para o Sudeste e hoje pertence ao Brasil inteiro. Disco urbano em essência, alegoriza aí o trajeto Garanhuns-Brasília. O último trunfo se encontra em "Cantor de Bolero", cafona e nordestina ao cúmulo. Ali se guarda a maior proposta do disco, de demolição de preconceitos e reconciliação dos "brasis", das classes sociais, dos avessos. No Brasil. (PEDRO ALEXANDRE SANCHES) Fagner & Zeca Baleiro (© Folha de S. Paulo) Com relação a este tema, saiba mais (arquivo NordesteWeb)
|
|
||||