Notícias
Glauber Rocha livre

20/09/2003

O cineasta Glauber Rocha (1939-81), cujo "Di' tem exibições proibidas por sentença judicial de 1981  Folha Imagem

Tese sustenta que é inválida a proibição do filme "Di", em que Glauber Rocha registra o enterro de Di Cavalcanti

SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL

   No cartaz em papel ofício, uma seta para a direita indica o caminho que leva ao auditório Paulo Emílio Salles Gomes.

   A sinalização improvisada é uma cortesia com os visitantes que, não habituados à arquitetura da Escola de Comunicações e Artes da USP, percorreriam seus corredores na manhã daquela quinta (4/9), em busca da atração anunciada: "Di-Glauber: Filme como Funeral Reprodutível".

   Trata-se da tese de mestrado desenvolvida pelo advogado José Mauro Gnaspini, 30, com a orientação do professor Rubens Machado e o potencial de provocar conseqüências muito além do mundo acadêmico.

   Gnaspini questiona a validade da decisão judicial que, em 1981, proibiu exibições públicas do filme "Di", no qual o cineasta Glauber Rocha (1939-1981) registra o enterro do artista plástico Emiliano Di Cavalcanti (1897-1976).

   A interdição foi solicitada por Elizabeth Di Cavalcanti, filha do artista -um dos mais célebres modernistas brasileiros-, que considerou profanatória a atitude do cineasta no enterro de seu pai e a obra que dali resultou.

   A herdeira de Di Cavalcanti venceu ação em que pedia indenização por danos morais. Segundo Gnaspini, o valor pago pela Embrafilme (co-produtora e distribuidora de "Di") equivaleria hoje a aproximadamente R$ 400 mil.

   No filme, de 18 minutos, Glauber mostra imagens do velório de Di (no Museu de Arte Moderna, no Rio) e de seu enterro (no cemitério São João Batista), ao som de sambas nas vozes de Paulinho da Viola e Jorge Ben e de um discurso em que repassa sua relação com o artista, analisa a obra de Di no contexto brasileiro e mundial e narra o que seriam pensamentos além-túmulo: "Di por Di. Sou um gênio, uma glória nacional, não encham o meu saco".

   No processo contra "Di", a defesa foi feita pela Embrafilme, que era responsável pela comercialização da obra. Eis aí, segundo Gnaspini, uma falha que torna a sentença de proibição ineficaz.

   "Um processo só vale se for regularmente constituído, contra a parte certa", diz o advogado. Gnaspini argumenta que o questionamento sobre "Di" é de ordem moral, questiona o teor da obra, e não uma questão patrimonial (pela qual a Embrafilme poderia responder, como detentora dos direitos de exibição).

   Sendo a obra considerada uma extensão da personalidade do artista, a participação do autor seria imprescindível em sua defesa, diz Gnaspini em sua argumentação. "Glauber Rocha foi privado de um bem -sua obra- sem jamais ser ouvido em juízo, não teve direito ao contraditório."

   De acordo com o advogado, não é sequer necessária uma nova manifestação da Justiça, declarando nula a sentença. "Você não precisa retirar do mundo jurídico o que nunca entrou", afirma.

   Como consequência desse raciocínio, o filme poderia ser exibido, sem que isso significasse desrespeito à lei. "Minha tese não libera o filme, até porque ele nunca esteve proibido. Meu trabalho joga luzes sobre uma questão que ficou obscura", diz Gnaspini.

   Na opinião do advogado Marcos Bitelli, especialista em direito da comunicação, "se o diretor não foi chamado a se defender no processo, a rigor, existe um problema de eficácia da sentença".

   Bitelli diz que "é possível que os herdeiros de Glauber Rocha coloquem o filme para ser exibido, sem ferir a sentença, porque não foram partes no processo. Mas nada impede que os herdeiros de Di Cavalcanti repitam a ação, com relação à preservação da imagem, da honra ou da intimidade".

   "Vamos averiguar a veracidade legal do que atesta a tese", diz João Rocha, filho de Glauber Rocha. Ele diz que a família do cineasta não quer "entrar em atrito com dona Elizabeth [Di Cavalcanti]" nem objetiva ter lucro com eventuais exibições do filme, que ficariam restritas ao circuito não-comercial, de escolas e cineclubes.

   "Mas se é direito nosso [exibir o filme], vamos correr atrás dele. Até porque "Di" é um patrimônio cultural, não pertence a nós, mas ao povo brasileiro", diz Rocha.

   Carlos Roberto Souza, curador do acervo da Cinemateca Brasileira, onde as cópias do filme estão depositadas, diz que a procuradoria jurídica da instituição está lendo a tese.

(© Folha de S. Paulo)


Herdeira de Di reafirma validade da proibição

DA REPORTAGEM LOCAL

   Procurada pela Folha, Elizabeth Di Cavalcanti Veiga, herdeira do pintor Emiliano Di Cavalcanti e autora da ação que proibiu a exibição do filme "Di", preferiu se manifestar apenas por escrito e por meio de seu advogado, Gustavo Martins de Almeida. A seguir, os principais trechos de suas respostas. (SA)

Folha - Qual é sua opinião sobre a tese de José Mauro Gnaspini e como reagiria se o filme passasse a ser exibido?
Gustavo Martins de Almeida -
A lei reguladora do direito autoral em vigor na época era a lei 5.988/ 73. Logo, a ação dirigida contra a Embrafilme foi correta. O fato de se tentar vedar a distribuição do filme não necessariamente exige a presença do autor.
Na hipótese de um quadro de determinado pintor ser proibido, depois de alienado a uma galeria, a proibição de exibição se dirige à galeria que adquiriu o quadro. A galeria jamais poderá alterar a obra, aí, sim, direito moral do pintor, mas a proibição se dirige a ela.
No caso, ninguém poderá alterar o filme sem autorização dos herdeiros de Glauber. Mas, por decisão judicial, o filme não poderá ser exibido. E como a exibição é contratada com a produtora, ela era parte legítima.

Folha - Pretende entrar com nova ação, desta vez dirigida aos responsáveis pelo espólio do cineasta Glauber Rocha, pedindo a proibição do filme?
Martins de Almeida -
A família não pretende pedir para proibir novamente o que já está proibido, por decisão judicial transitada em julgado [em que não cabe mais recurso].

Folha - Gnaspini diz também que, em decorrência da falha na instalação do processo, seria possível pedir a devolução da indenização paga. Como avalia essa afirmação?
Martins de Almeida -
Improcedente, pois a indenização foi devida e paga pela Embrafilme, de comum acordo.

Folha - Gnaspini afirma que o fato de o velório de Di Cavalcanti haver sido realizado em local público demonstra que a família atendeu ao interesse da população em prestar suas últimas homenagens ao artista e, dessa forma, abriu mão de uma cerimônia íntima e privada. Por isso, estaria descaracterizado o ato de profanação. Como reage a essa afirmação?
Martins de Almeida -
O corpo de Di Cavalcanti foi levado para o MAM sem que a família, extenuada pelo período anterior à sua morte, pudesse impor sua oposição.
O fato de o local ser público não permite filmagens livres, como close do rosto no caixão. Se a Constituição prega a liberdade de expressão, ela também condiciona essa liberdade ao respeito à imagem das pessoas, inclusive dos mortos. O novo Código Civil reforça ainda mais essa tese.

Folha - Por que a sra., no decorrer do processo, tomou a decisão de retirar a queixa específica contra o cineasta Glauber Rocha e suspender o pedido de destruição do filme, limitando sua solicitação à proibição das exibições?
Martins de Almeida -
Conquanto a obra ofenda a imagem de seu pai, Elizabeth não quis atingir diretamente nem condenar o diretor Glauber Rocha.
Mas também não quis e não quer que esse fato, especialmente incômodo na sua vida, se repita com a exibição da obra.

(© Folha de S. Paulo)

Com relação a este tema, saiba mais (arquivo NordesteWeb)


powered by FreeFind


Google
Web Nordesteweb