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Atualidade cruel da obra de Josué de Castro

26/09/2003

Capa do livro Geografia da Fome, de Josué de Castro

Autor de Geografia da Fome é lembrado nos 30 anos de sua morte, num momento em que o Governo Lula tenta erradicar o problema no País

   Cientista e cidadão do mundo, o pernambucano Josué de Castro foi um pioneiro em seu tempo, lutando contra o tabu dos meios acadêmicos com seus estudos e seu combate à fome. Autor dos clássicos Geopolítica da Fome, Geografia da Fome e Homens e Caranguejos, ele é lembrado na passagem dos 30 anos de sua morte com a Semana Josué de Castro, que tem início hoje na Fundação Joaquim Nabuco.

   Embora a fome e a miséria nunca tenham sido erradicadas no Brasil, como pretende agora o presidente Lula, o que dá à obra de Josué de Castro uma cruel atualidade, suas obras durante muito tempo eram raras de ser encontradas e circulava em meios restritos, sendo praticamente banida nos anos da ditadura militar instaurada em 1964.

   Não obstante, nos anos 90, um dos principais movimentos culturais já eclodidos em Pernambuco, o Manguebit ou Mangue Beat, teve em Josué de Castro e nos seus estudos sobre a fome, no mangue e nos homens-caranguejos seus ícones e estuário e fonte de alimento, conforme escreve o pesquisador Túlio Velho Barreto, da Fundaj, no artigo ao lado.

(© Jornal do Commercio-PE)


A DESCOBERTA DA FOME

Prefácio ao livro Homens e Caranguejos, Lisboa 1966.

   No mangue, tudo é, foi ou será caranguejo, inclusive o homem e a lama.

   Não foi na Sorbonne, nem em qualquer outra universidade sábia que travei conhecimento com o fenômeno da fome. A fome se revelou espontaneamente aos meus olhos nos mangues do Capiberibe, nos bairros miseráveis do Recife - Afogados, Pina, Santo Amaro, Ilha do Leite. Esta foi a minha Sorbonne. A lama dos mangues de Recife, fervilhando de caranguejos e povoada de seres humanos feitos de carne de caranguejo, pensando e sentindo como caranguejo.

   São seres anfibios - habitantes da terra e da água, meio homens e meio bichos. Alimentados na infância com caldo de caranguejo - este leite de lama -, se faziam irmãos de leite dos caranguejos.

   Cedo me dei conta desse estranho mimetismo: os homens se assemelhando em tudo aos caranguejos. Arrastando-se, acachapando-se como caranguejos para poderem sobreviver.

   A impressão que eu tinha, era de que os habitantes dos mangues - homens e caranguejos nascidos à beira do rio - à medida que iam crescendo, iam cada vez se atolando mais na lama.

   Foi assim que senti formigar dentro de mim a terrível descoberta da fome.

   Pensei a princípio que era um triste privilégio desta área onde eu vivo - a área dos mangues. Depois verifiquei que, no cenário de fome do Nordeste, os mangues eram uma verdadeira terra da promissão, que atraía homens vindos de outras áreas de mais fome ainda - das áreas da seca e da monocultura da cana-de-açúcar, onde a indústria açucareira esmagava, com a mesma indiferença, a cana e o homem, reduzindo tudo a bagaço.

   Vê-los agir, falar, lutar, viver e morrer, era ver a própria fome modelando com suas despóticas mãos de ferro, os heróis do maior drama da humanidade - o drama da fome.

   E foi assim que, pelas história dos homens e pelo roteiro do rio, fiquei sabendo que a fome não era um produto exclusivo dos mangues. Que os mangues apenas atraíram os homens famintos do Nordeste: os da zona da seca e os da zona da cana. Todos atraídos por esta terra de promissão, vindo se aninhar naquele ninho de lama, construído pelos dois e onde brota o maravilhoso ciclo do caranguejo. E quando cresci e saí pelo mundo afora, vendo outras paisagens, me apercebi com nova surpresa que o que eu pensava ser um fenômeno local, era um drama universal. Que a paisagem humana dos mangues se reproduzia no mundo inteiro. Que aqueles personagens da lama do Recife eram idênticos aos personagens de inúmeras outras áreas do mundo assolados pela fome. Que aquela lama humana do Recife, que eu conhecera na infância, continua sujando até hoje toda a paisagem de nosso planeta como negros borrões de miséria: as negras manchas demográficas da geografia da fome.

(© Jornal do Commercio-PE)


GEOGRAFIA DA FOME

Prefácio da última edição, incluído no livro Fome, Um Tema Proibido

   O assunto deste livro é bastante delicado e perigoso. A tal ponto delicado e perigoso que se constituiu num dos tabus de nossa civilização. É realmente estranho, chocante o fato de que, num mundo como o nosso, caracterizado por tão excessiva capacidade de escrever-se e publicar-se, haja até hoje tão pouca coisa escrita acerca do fenômeno da fome, em suas diferentes manifestações.

   Quais são os fatores ocultos desta verdadeira conspiração de silêncio em torno da fome? Trata-se de um silêncio premeditado pela própria alma da cultura: foram os interesses e os preconceitos de ordem moral e de ordem política e econômica de nossa chamada civilização ocidental que tomaram a fome um tema proibido, ou pelo menos pouco aconselhável de ser abordado publicamente.

   Ao lado dos preconceitos morais, os interesses econômicos das minorias dominantes também trabalhavam para escamotear o fenômeno da fome do panorama espiritual moderno. É que ao imperialismo econômico e ao comércio internacional a serviço do mesmo interessava que a produção, a distribuição e o consumo dos produtos alimentares continuassem a se processar indefinidamente como fenômenos exclusivamente econômicos - dirigidos e estimulados dentro de seus interesses econômicos - e não como fatos intimamente ligados aos interesses da saúde pública.

   Um dos grandes obstáculos ao planejamento de soluções adequadas ao problema da alimentação dos povos reside exatamente no pouco conhecimento que se tem do problema em conjunto, como um complexo de manifestações simultaneamente biológicas, econômicas e sociais.

   Por outras palavras, procuraremos realizar uma sondagem de natureza ecológica, dentro deste conceito tão fecundo de Ecologia, ou seja, do estudo das ações e reações dos seres vivos diante das influências do meio.

   Neste ensaio de natureza ecológica tentaremos, pois, analisar os hábitos alimentares dos diferentes grupos humanos ligados a determinadas áreas geográficas, procurando de um lado, descobrir as causas naturais e as causas sociais que condicionaram o seu tipo de alimentação, com suas falhas e defeitos característicos, e de outro lado, procurando verificar até onde esses defeitos influenciam a estrutura econômico-social dos diferentes grupos estudados.

   O objetivo é analisar o fenômeno da fome coletiva - da fome atingindo endêmica ou epidemicamente as grandes massas humanas. Não só a fome total, a verdadeira inanição que os povos de língua inglesa chamam de starvation, fenômeno, em geral, limitado a áreas de extrema miséria e a contingências excepcionais, como o fenômeno muito mais freqüente e mais grave, em suas consequencias numéricas, da fome parcial, da chamada fome oculta, na qual pela falta permanente de determinados elementos nutritivos, em seus regimes habituais, grupos inteiros de populações se deixam morrer lentamente de fome, apesar de comerem todos os dias. É principalmente o estudo dessas coletivas fomes parciais, dessas fomes específicas, em sua infinita variedade, que constitui o objetivo nuclear do nosso trabalho.

(© Jornal do Commercio-PE)

O cientista e os caranguejos com cérebro
ARTIGO

TÚLIO VELHO BARRETO
Especial para o JC

   Em 1993, no vigésimo aniversário de morte de Josué de Castro, as bandas Chico Science & Nação Zumbi (CSNZ) e Mundo Livre S.A. (MLSA) encaravam a inevitável viagem Recife-São Paulo em busca de reconhecimento. Passados dez anos – comemorados com o projeto A Maré Encheu –, é relevante destacar a influência de Castro sobre os “caranguejos com cérebros”. Sem dúvida, sua obra pode ser tomada como a base conceitual do Manguebit – o que, por si só, já demonstra a vitalidade do autor de Geopolítica da Fome. E poucos se apropriaram de maneira tão precisa do Recife – de sua geografia física e humana e de sua cultura – como ele e os “mangueboys”.

   Os estudos pioneiros de Castro sobre a fome, tema tabu em sua época no meio acadêmico, são objeto de novas edições e leituras. Também ganhou impulso, sobretudo do ponto de vista político, com o Fome Zero do Governo Lula. Antes, contudo, D. Hélder Câmara e Betinho lideraram campanhas com o mesmo objetivo de erradicar a fome do País. Mas, naquele período, sua obra não emergiu como agora. Até a reedição do estudo Geografia da Fome e do romance Homens e Caranguejos (2001), pelo menos no Brasil, foi na música onde tornou à superfície de forma mais vigorosa.

   Para se ter uma idéia de sua influência sobre o movimento cultural mais importante surgido no País desde os anos 60, basta uma breve leitura do Prefácio um tanto gordo para um romance um tanto magro, de Homens e Caranguejos, e do manifesto Caranguejos com Cérebros, do Manguebit, encartado no CD Da Lama aos Caos (94), de CSNZ. Da mesma forma, pode-se cotejar a letra de Rios, Pontes e Overdrivers, de Science e Zero Quatro – gravada no primeiro CD do MLSA, Samba Esquema Noise (94) –, que ressalta as “impressionantes esculturas de lama” e percorre vasto itinerário pela periferia do Recife (“É Macaxeira, Imbiribeira, Bom Pastor, é o Ibura, Ipsep”) com trechos do referido prefácio (“o fenômeno da fome se revelou a meus olhos nos mangues do Capibaribe, nos bairros miseráveis da cidade do Recife: Afogados, Pina, Santo Amaro, Ilha do Leite”). Pode-se também comparar Antene-se (Recife, cidade do mangue/ Incrustada na lama dos manguezais/ Onde estão os homens caranguejos”), Da Lama ao Caos (“O sol queimou, queimou a alma do rio/ Eu vi um chié andando devagar/ Vi um aratu pra lá e pra cá/ Vi um caranguejo andando pro sul/ Saiu do mangue, virou gabiru/ Oh, Josué, eu nunca vi tamanha desgraça”) e Risoflora (“Eu sou um caranguejo e estou de andada”) com as palavras que Castro escrevera, em 67, ano da primeira edição de Homens e Caranguejos, para explicar que não foi na Sorbonne onde conheceu o fenômeno da fome, mas na “lama dos mangues do Recife, fervilhando de caranguejos e povoada de seres humanos feitos de carne de caranguejos, pensando e sentindo como caranguejos”.

   Embora a temática do prefácio esteja mais presente nos primeiros CDs de CSNZ, é possível observá-la em Samba Esquema Noise, do MLSA, em Cidade Estuário – a “manguetown” de Caranguejos com Cérebros (“Maternidade, diversidade, salinidade, fertilidade, produtividade/ Recife, Cidade, Estuário/ Recife, Cidade, És tu .../ Água salobra, desova e criação/ Matéria orgânica, troca e produção”) – e confrontá-la novamente com as palavras de Castro a respeito do papel do mangue na formação da cidade: “os mangues iam assim apoderando-se da vida de toda aquela gente (...). Estas estranhas plantas que, em eras geológicas passadas, se tinham apoderado (da) fossa pantanosa onde hoje assenta a cidade do Recife (...). Na verdade, foram os mangues os primeiros conquistadores dessa terra. Foram mesmo, em grande parte, os seus criadores”. Já em Sob o Calçamento, Fred 04 retrata a transformação urbana (“onde há calçamento/ pode crer que havia mangue”).

   De Afrociberdelia (96), há ainda Corpo de Lama, Cidadão do Mundo e o “hino” Manguetown, e de Rádio S.A.M.B.A. (2000), o primeiro sem Science, há Quando a Maré Encher, da banda Eddie, e Caranguejo da Praia das Virtudes. Já o MLSA, a partir de Guentando a Ôia (96), universalizou mais sua temática. Contudo, a influência de Josué de Castro já mostrara-se decisiva na desobstrução das veias da cidade, ainda que para isso uma antena parabólica tenha sido fincada na lama.

(© Jornal do Commercio-PE)

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