Letícia Lins
O ano de 2005 está dando ao escritor
Ariano Suassuna bons motivos para festejar. Além de celebrar os 50 anos de
“Auto da Compadecida”, uma das peças mais populares da dramaturgia
brasileira, relançada pela Agir numa edição de luxo revista pelo autor,
Suassuna viu aquela que é considerada sua obra-prima, “A Pedra do Reino”
(editora José Olympio), voltar às livrarias depois de 20 anos fora de
catálogo. Nessa entrevista, o autor — um dos convidados mais esperados da
Festa Literária Internacional de Paraty, que acontece em julho — confessa
como somente uma década depois de ter escrito “A Pedra do Reino” descobriu
os motivos que o levaram a produzi-lo: a vingança pelo assassinato do pai,
quando ele tinha apenas 3 anos de idade.
Escrever o livro foi uma forma de
buscar a redenção do seu “rei” e inverter o conceito vigente na década de 30
do século passado, segundo o qual as forças rurais que o pai liderava eram o
obscurantismo e o urbano é que representava o progresso. Razões familiares,
políticas e íntimas à parte, “A Pedra do Reino” é inspirado em um episódio
ocorrido no século XIX, no município sertanejo de São José do Belmonte, a
470 quilômetros do Recife. Ali, em 1836, uma seita tentou fazer ressurgir o
rei Dom Sebastião, transformado em lenda em Portugal depois de desaparecer
na Batalha de Alcácer-Quibir, quando tentava converter mouros em cristãos no
Marrocos. Sob o domínio espanhol, os portugueses sonhavam com o retorno do
rei que restauraria a nação usurpada.
A manifestação de sebastianismo no
Brasil está presente não só no livro de Suassuna como é lembrada em
Pernambuco durante a Cavalgada da Pedra do Reino, que acontece anualmente no
lugar onde inocentes foram sacrificados pela volta do rei. O escritor
paraibano, que há muito escolheu Recife como moradia, cita seu novo livro em
gestação, no qual espera fundir os três gêneros aos quais se dedica: o
romance, o teatro e a poesia, entrelaçados numa espécie de revisão de tudo o
que já escreveu. A obra do autor, aliás, já mereceu numerosos estudos em
todo o Brasil, o mais recente deles assinado pela antropóloga Maria
Aparecida Lopes Nogueira, autora de “Ariano Suassuna, o cabreiro
tresmalhado” (editora Palas Athena), no qual ela analisa minuciosamente a
tragédia pessoal presente na literatura de Suassuna.
Lançado há quase 30 anos, “A Pedra do Reino” passou duas décadas fora de
catálogo. Alguma restrição de sua parte?
ARIANO SUASSUNA: Não, nenhuma. O que houve foi que minha editora, a
José Olympio, passou por dificuldades. Então, apesar de o livro estar na
época vendendo bem, ficou por mais de 20 anos fora de catálogo. Não houve
nenhuma grande revisão do livro, que permanece com a mesma estrutura e
algumas pequenas modificações.
O poeta João Cabral de Melo Neto dizia que, na idade madura, jamais
escreveria de novo “Morte e vida severina”, afirmando que seu poema mais
famoso foi um arroubo de juventude. Hoje o senhor escreveria “A Pedra do
Reino” com o mesmo ímpeto?
SUASSUNA: Com certeza. Mantive todo o livro nessa edição. E lhe digo
como já disse mais de uma vez: se me dissessem que iam queimar todos os
livros e só me dessem o direito de salvar uma obra, salvaria “A Pedra do
Reino”.
No sertão de sua infância os descendentes e parentes próximos vingavam
com a morte o assassinato de entes queridos. O seu pai foi assassinado por
divergências políticas. Escrever “A Pedra do Reino” foi sua melhor vingança?
SUASSUNA: Foi mais do que uma vingança. Foi uma forma de evitar o
crime e buscar a redenção.
O senhor teve essa percepção ao escrever o livro ou só depois tomou
consciência de que “A Pedra do Reino” foi uma forma de manter viva a imagem,
o rosto, a presença do seu pai?
SUASSUNA: Só uma década depois entendi que o que escrevi tinha sido
uma busca daquela redenção. E hoje acho que é isso mesmo. Mas não percebi
isso quando publiquei o livro em 1971. É a descoberta do rei que nunca
morre. O livro é dedicado a meu pai e a mais doze pessoas. É como se ele
representasse para mim aquela figura tão importante do tempo em que eu
assistia às cavalhadas de menino. Então, meu pai é o imperador a quem o
livro é dedicado. E os doze outros são os cavaleiros, os pares dele. Tanto
que entre eles encontram-se Euclides da Cunha, Antônio Conselheiro, José
Lins do Rego e até Leandro Gomes de Barros, o maior autor de folhetos de
cordel do Nordeste. Por esse motivo, concluí minha dedicatória a João
Suassuna, santos, mártires, poetas, profetas e guerreiros do meu mundo
mítico do sertão.
Depois de ter o pai assassinado o senhor cresceu ouvindo falar mal dele,
que representaria o rural, o atrasado. O urbano é que era o progresso. Seu
esforço foi para fazer uma inversão desses valores?
SUASSUNA: Eu realmente sentia muito isso. Essa visão de que as forças
rurais que ele liderava eram o atraso, o obscurantismo, o mal. E as outras
representavam o bem e o progresso. “A Pedra do Reino” foi uma das armas que
usei para reagir contra essa visão estreita.
“A Pedra do Reino” foi encarada como um marco da ficção nordestina depois
do ciclo regionalista da década de 30. Apesar de abordar o mundo famélico e
mágico do sertão, ele teria uma mensagem universal?
SUASSUNA: Eu o fiz com a intenção de ser universal. Se eu o consegui
ou não, é difícil determinar porque só o tempo vai dizer. Mas realmente
acredito que o ser humano é o mesmo em todos os lugares e em todos os
tempos. Então, se em “A Pedra do Reino” consegui tocar na vida, na história
do homem nordestino, estou tocando, também, nos problemas dos homens de
todos os lugares do mundo.
(©
O Globo)
Encontro decisivo com
João Cabral
Gerson Camarotti
Enviado especial RECIFE
Há 50 anos, o dramaturgo e romancista
paraibano Ariano Suassuna colocava um ponto final na obra que seria uma das
mais populares do teatro brasileiro: o “Auto da Compadecida”. No mesmo ano,
o poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto também concluía “Morte e vida
severina”, seu poema de maior repercussão. Os dois textos foram escritos no
Recife de 1955. E não foi mero acaso, como revela Suassuna cinco décadas
depois.
Segundo ele, as duas obras foram
escritas num momento de grande troca de idéias entre os dois escritores.
Nessa época, acusado de ser subversivo e afastado do Itamaraty, João Cabral
voltou para o Recife, onde viveu por três anos. O dramaturgo e o poeta se
aproximaram com o mesmo interesse: conhecer de forma mais profunda o
romanceiro popular do Nordeste.
— Nós estávamos muito preocupados com
o mesmo tema. A gente queria uma identificação entre o povo brasileiro do
Nordeste e a literatura que esse povo faz. Nem João era e nem eu sou do
povo. Tínhamos em comum a vontade de fazer com que a nossa literatura
pulsasse em consonância com esse povo do Brasil real. Não se tratou bem de
uma influência mútua. Foi um encontro. Isso aconteceu de maneira
extraordinária — revela hoje Ariano Suassuna.
Folheto de cordel deixou João Cabral entusiasmado
Para marcar os 50 anos de pelo menos
uma dessas obras, “Auto da Compadecida”, a editora Agir está lançando uma
edição especial de luxo. Com ilustrações do artista plástico Dantas
Suassuna, o livro comemorativo traz ainda textos do doutor em literatura
Carlos Newton Júnior, do escritor Raimundo Carrero e do poeta Bráulio
Tavares, além de fotos de montagens históricas da peça no teatro, no cinema
e na TV.
O primeiro encontro entre Suassuna e
Cabral ocorreu numa conferência sobre poesia que o irmão do poeta, Evaldo
Cabral, promoveu no Recife. Ariano deu uma aula sobre o romanceiro popular.
— Lembro que João ficou muito
entusiasmado, porque na aula eu li um folheto de cordel em que havia um
pedaço em que o boi fazia um testamento. Num trecho, dizia: “Os ossos do boi
Espácio/ dão mil pares de botão”. João achou isso maravilhoso.
A partir daí, a convivência foi
intensa. João Cabral incorporou-se ao grupo Gráfico Amador, fundado pelo
artista plástico Aloísio Magalhães e do qual participava Ariano. O poeta
ficou tão animado que lançou pelo Gráfico Amador um pequeno livro,
“Aniki-Bobó”, editado por Aloísio. Estimulado pelas experiências em arte
gráfica, que tiveram origem com o pintor Vicente do Rego Monteiro, o poeta
freqüentava as reuniões do grupo.
Foi num desses encontros que João
ouviu de Ariano que no sertão de sua infância, quando alguém encontrava uma
pessoa morta no caminho, tinha a obrigação religiosa de ajudar a carregar o
corpo. A pessoa que ajudava dizia a frase-ritual: “Chega irmão das almas,
não fui eu que matei não”. A frase que já havia sido transcrita na peça “Uma
mulher vestida de sol”, de Ariano, está presente numa das principais
passagens de “Morte e vida severina”.
João Cabral estava no seleto grupo de cinco
integrantes do Gráfico Amador que ouviu a primeira leitura da “Compadecida”.
Quando Ariano terminou de ler a peça, o poeta perguntou:
— Me diga uma coisa, você se
desconverteu?
— De maneira nenhuma. Não estou
falando mal da Igreja. Estou falando do que está errado nas pessoas da
Igreja — explicou Ariano.
Poema perdeu as marcações para teatro
O curioso é que nenhum dos dois
imaginava o sucesso que teriam “Compadecida” e “Morte e vida”. Até aquela
data, Ariano já tinha escrito sete peças, sem ter sido publicado, e apenas
uma fora encenada, com pouca repercussão. Já “Morte e vida” por pouco não
caiu no esquecimento. O texto havia sido encomendado por Maria Clara Machado
em 1954. Depois de pronto, ela disse que o Tablado não tinha condições para
levá-lo ao palco. O poema perdeu as marcações para teatro e foi parar no
livro “Duas águas”.
Apesar da amizade e troca de
experiências sobre o romanceiro popular entre os dois escritores, as obras
têm características distintas. Cinco décadas depois, o próprio Suassuna
aponta as diferenças e traça um paralelo entre os dois textos:
— No “Auto da Compadecida”, o meu
trabalho é mais de teatralização. Existe a presença forte dessas histórias
populares dos folhetos de cordel. Já “Morte e vida severina” é todo baseado
na invenção poética de João. Tem ligação com romanceiro, mas é um poema
dramático com qualidade poética superior. Talvez, por isso, não tenha a
possibilidade de atingir o povo como conseguiu a “Compadecida”. Não por
minha causa, mas por causa das histórias populares.
(©
O Globo)
Caleidoscópio da cultura brasileira
Embora se defina essencialmente como
um escritor, Ariano Suassuna não é só isso. É um painel, um caleidoscópio da
cultura brasileira e um caminho legítimo para se pensar sobre a cultura e o
povo. É o que afirma a antropóloga Maria Aparecida Lopes Nogueira, autora de
“Ariano Suassuna, o cabreiro tresmalhado” (editora Palas Athena), um livro
que constitui um divertido e indispensável passeio pelo universo de
arquétipos, mitos, crendices, costumes e até profecias que norteiam a
cultura sertaneja. A obra, originalmente uma tese de doutorado da autora na
PUC-SP, conduz o leitor a uma viagem mágica ao mundo do autor de “A Pedra do
do Reino”, através da qual o leitor descobre as linhas mestras, raízes e até
mesmo os dramas familiares que deram origem à obra de um dos mais populares
escritores brasileiros.
— Ariano é um antropólogo implícito,
um pensador da cultura através do qual se entende melhor o povo brasileiro —
resume ela que tentava, de início, limitar o estudo à obra literária do
escritor.
Mas não foi possível. É que ela
descobriu um homem tão múltiplo que ampliou sua proposta inicial de pesquisa
e terminou mergulhando na universalidade não só de Suassuna como da própria
cultura sertaneja.
— Era um universo paradoxal,
contraditório, conflitual. Além de grande escritor, Ariano é artista
plástico, tapeceiro, poeta, letrista. Tive que partir do princípio de que um
homem e sua obra refletem toda a densidade da cultura de uma sociedade.
Nessa perspectiva, a arte é um caminho para se entender um povo — afirma
Aparecida.
Para ela, Suassuna é, na verdade, “um
guerreiro bárbaro e impetuoso que atravessa a vida entre ciladas e
repentes”, e que “não se dobra”.
— Audacioso, solitário e crédulo, ele
continua enfrentando as ameaças da morte caetana de modo insano e feroz —
argumenta.
Para os que não sabem: a morte
caetana é a forma como o sertanejo encara não só a morte física, mas o
desconhecido, o destino incerto, as armadilhas da vida. E elas chegaram cedo
para Suassuna, que teve o pai assassinado por questões políticas
relacionadas à Revolução de 30. Ele, que tinha apenas 3 anos, cresceu lendo
jornais que falavam mal do pai.
Entre o sebastianismo e a morte do pai
Aparecida estabelece uma ligação
entre o sebastianismo presente na obra de Suassuna e o desaparecimento
prematuro do pai. Ela mostra que se no sebastianismo os fanáticos achavam
que sacrificando inocentes e erguendo um castelo o rei português estaria de
volta — como fazia a seita crescida no sertão pernambucano — em “A Pedra do
Reino” Suassuna descobriu a possibilidade de ressurreição do próprio pai, ao
narrar a história de Dom Sebastião.
— A tragédia impregnou de tal forma a
alma de Ariano que ele começou a construir dentro dele a possibilidade de
reencantar a alma do pai — diz ela.
Aparecida também analisa a presença
do profeta, do rei e do palhaço recorrentes na vida e obra do escritor. “O
profeta ressalta a religiosidade na trajetória do autor desde a infância até
o movimento armorial, assim como a preocupação de criar uma obra aberta que
se nutre do amplo leque de fontes classificadas como populares e eruditas. O
palhaço é arquétipo no qual Ariano emerge como contador de histórias.
Consciente desse papel, reconhece a importância dada ao narrador na
transmissão e manutenção do capital cultural. O arquétipo de rei permite a
visualização de uma auto-ética que constitui a base de uma ética plural,
conflitual e complexa, mostrando que o rei surge como temática recorrente
ressoando na figura do pai, de Dom Sebastião e na preferência estética pela
monarquia”, esmiúça a antropóloga. (Letícia
Lins)
(©
O Globo)
O riso a cavalo e o galope do sonho
Alguns escritores brasileiros ignoram a literatura popular em suas obras.
Já na sua o popular e o erudito vivem em simbiose profunda. Por quê?
SUASSUNA: Porque eu considero a literatura popular brasileira como a
forma de expressão literária mais verdadeira do Brasil. Acho que é na
literatura de cordel que está aquele gênero literário no qual o povo
brasileiro se expressou sem nenhuma imposição ou deformação que viesse nem
de cima nem de fora.
O que pesa mais na sua formação: o rei, o profeta ou o palhaço?
SUASSUNA: Na minha visão, de um lado estão o rei e o profeta. Do
outro, o palhaço e o poeta. E isso não é só comigo não. É com todo ser
humano que, de uma forma geral, tenta equilibrar isso. Com os outros não sei
se é assim, mas comigo, quando as imagens do rei e do profeta começam a
pesar muito, dou uma cambalhota. E para usar muito uma expressão do cordel,
presente em “A Pedra do Reino”, faço opção pelo riso a cavalo e pelo galope
do sonho.
E em “A Pedra”, qual o seu lado mais forte?
SUASSUNA: Sei não. Acho que saiu mais ou menos equilibrado. O pessoal
não presta muita atenção a isso. Mesmo nas minhas peças cômicas tem sempre
essa mistura. Por exemplo, “O Auto da Compadecida”, olhada pelo ângulo que
não é cômico, é uma história terrível. Morre todo mundo. E todo mundo acha
graça. Mas isso é como a vida. A vida é assim, uma história terrível. A vida
tem um fundamento trágico e bastaria a morte para dar esse fundamento
trágico à vida, mas tudo isso a gente pode enfrentar através do galope do
sonho.
Já que o senhor fala em vida e em morte, o que seria para nós a morte
caetana? Uma armadilha do destino, o sufocamento de uma cultura pela invasão
estrangeira? Qual a pior?
SUASSUNA: Acho que a invasão da cultura alienígena é pior. Porque a
outra morte caetana nos atinge com uma violência maior, mas não com a
vulgaridade da outra. Essa de cá (a estrangeira) não mata, mas corrompe e
vulgariza, afeta a nossa identidade. E isso é pior do que matar. A
vulgarização da cultura é desprezível. A morte caetana merece um verso. A
outra não.
Sua obra é considerada por estudiosos um painel da cultura brasileira.
Escritor, poeta, letrista, tapeceiro, artista plástico. Qual o seu lado mais
forte?
SUASSUNA: Sou essencialmente um escritor, o dramaturgo, o poeta, o
romancista. As outras coisas eu uso como suporte de minha literatura. Às
vezes as pessoas me chamam, generosamente, de artista plástico. Não me
considero como tal. Artista é Gilvan Samico, é meu filho Dantas Suassuna. Eu
sou um escritor que eventualmente lança mão de um desenho para ilustrar seus
textos, mas a criação gráfica vem da imagem literária. Se me dissessem “faça
um desenho sobre tal coisa”, eu não saberia. Mas quando digo que a morte
caetana é uma mulher que se transformou em onça alada, aí eu saberia fazer
esse desenho, que vem da forma literária que inventei.
E o próximo livro, quando sai?
SUASSUNA: Este ano. A temática é rural e urbana e pela primeira vez
tem a presença do Recife, uma presença explícita. O Recife é muito forte em
mim. Sobre o resto prefiro não falar, mas posso adiantar que é uma tentativa
de revisão de tudo que escrevi, fundindo pela primeira vez esses três
gêneros aos quais me dedico separadamente: a poesia, o teatro e o romance.
(©
O Globo)
Romance de Ariano já tem data para terminar
Escritor estabeleceu o aniversário de 60 anos de sua
estréia na literatura, em outubro, como um marco para finalizar o novo e
grandioso romance que vem escrevendo, ainda sem título
DIANA MOURA BARBOSA
O novo romance do escritor Ariano Suassuna já tem data
para ganhar o último ponto final. Ele programou para 7 de outubro deste
ano o dia do encerramento do último volume do livro, que ainda não tem
título – ou, pelo menos, o nome ele não revela. A data foi programada por
coincidir com os 60 anos de sua vida literária. Em 7 de outubro de 1945, o
autor publicou seu primeiro texto, o poema Noturno, editado no
suplemento literário do Jornal do Commercio. Enquanto as novas
publicações não chegam, Suassuna brinda ávidos leitores com reedições de
suas obras. E administra a movimentação gerada em torno delas.
Do ano de 2000 para cá, as editoras José Olympio e Agir já
relançaram dois de seus maiores clássicos – A pedra do reino e
Auto da Compadecida, respectivamente – além de mais quatro peças, em
edições de bolso: O santo e a porca, O casamento suspeitoso,
A farsa da boa preguiça e Uma mulher vestida de sol. A
pena e a Lei deve sair no início de julho, em Parati. Além disso, o
livro de ensaios Iniciação à estética também foi reeditado. Quer
melhor que isso? Quase todos já estão esgotados. A pedra do reino,
por exemplo, teve três mil exemplares rodados em dezembro de 2004, depois
de 30 anos fora de catálogo, e logo em seguida, em março de 2005, ganhou
uma outra edição, a sexta.
Por conta do renovado sucesso dos livros antigos, Ariano
Suassuna tem que driblar percalços na agenda – e conseguir tempo para
finalizar o novo romance. Sua casa vive cercada de estudantes em busca de
cumprir tarefas escolares, fãs com pedidos de autógrafos, visitantes
desavisados que desejam “apenas” entrar para conhecer a casa do mestre,
além de uma fila de jornalistas, críticos, pesquisadores e coisas do tipo.
A residência dos Suassuna, hoje, é tratada como se fosse um ponto
turístico em Casa Forte. E é de se imaginar que essa invasão de
privacidade incomode pelo menos um pouco.
Entre uma intromissão e outra, o escritor segue tranqüilo,
bem humorado como sempre, com o semblante calmo, mas determinado, de quem
sabe o desafio que ainda tem pela frente. Até outubro, garante finalizar
seu trabalho, todo escrito e ilustrado por ele, manualmente. Em seguida, é
a vez de seu genro, Alexandre Nóbrega, começar a transcrever toda a obra
no computador. Só então o material segue para uma editora (ainda
indefinida), depois de passar pelas negociações de praxe, é claro.
Ao contrário dos seus milhares de fãs e admiradores, o
escritor não parece ter pressa para concluir seu texto. Recentemente, ele
abriu um dos capítulos para acrescentar informações que leu no jornal,
sobre um padre, um palhaço e um professor que foram presos por molestar
crianças. “Eu fiquei impressionado com essa atitude, vinda de pessoas de
quem a gente espera o contrário”, comenta. Desde 1947, Suassuna coleciona
notícias de jornal recortadas e coladas em cadernos, como se fossem
álbuns. “Eu não gosto de obras excessivamente realistas, mas também não
gosto de ficar ausente da realidade, porque o real enriquece o universo
literário, legitima o que seria invenção pessoal”, pontua o escritor.
Um dos entraves para concluir o livro com mais agilidade é
a grandiosidade de sua premissa. Ariano Suassuna já havia divulgado que
pretende colocar toda a sua obra no novo romance. E essa, claro, não é uma
tarefa fácil. O trabalho vai reunir o seu teatro, prosa e poesia, para
isso, terá que ser editado em vários volumes. Para realizar o feito, o
escritor explica, com exclusividade para o Jornal do Commercio, que
o personagem principal do romance é um dramaturgo e ator frustrado, que
terá que passar por uma prova de fogo numa espécie de teatro-tribunal,
quando será julgado pela qualidade de sua criação.
Com esse mote, Suassuna revisita Quaderna, o héroi de A
pedra do reino, que vivia às voltas com sua produção literária,
enquanto o próprio Suassuna aproveitava para discutir – pelo livro, com os
leitores – o fazer e a estética da literatura. Homem grato às pessoas,
autores, livros e personagens que já trouxeram algo de positivo para sua
trajetória, Ariano Suassuna aproveita esse romance também para homenagear
um dos escritores que mais o influenciou, batizando o novo protagonista
como Antero Savedra, por causa de Cervantes, e dando-lhe o apelido de Dom
Pantero, em honra a Dom Quixote. Ele coloca numa só pessoa a ambigüidade
de ser criador e criatura, traço que, para os que são familiarizados com
seu pensamento estético, é uma de suas grandes e brilhantes marcas.
NAS LIVRARIAS
Enquanto o novo livro não chega, resta ao
público apreciar as obras de Suassuna disponíveis nas livrarias. O Auto
da Compadecida, por exemplo, ganhou recentemente a mais bela edição a
que já teve direito. Um volume de luxo, capa dura, com ilustrações
maravilhosas de Manuel Dantas Suassuna e projeto gráfico igualmente
primoroso de Ricardo Gouveia de Mello. O escritor, a princípio, não estava
interessado em tal “edição de luxo”. “Eu não sou muito entusiasmado com
esse negócio de edição de luxo. Eu gosto de livro e eu gosto de ler, mas
eu também gosto de tomar intimidade com o livro. E com o livro de luxo, a
gente fica se sentindo como se ele fosse dono da gente, e não o contrário.
Eu preferia que fosse uma edição popular.” O autor só mudou de idéia
quando viu o protótipo do livro, diagramado e ilustrado: “Aí, eu não só
concordei, como fiquei orgulhoso e contente”. De quebra, o Auto
também ganhou uma edição popular, dessa vez com projeto de Gouveia de
Mello e ilustrado por Romero de Andrade Lima.
Ricardo Gouveia de Mello, dono das criações gráficas que
encantaram Ariano Suassuna, conta que mergulhou no universo estético do
escritor, pontuando o projeto do livro com o visual dos poemas ilustrados
que o escritor assina, as iluminogravuras, e com as iluminuras medievais.
“Ariano achou que o trabalho tinha a ver com a estética dele. E tem. Mas
não é por acaso. Eu bebi na fonte dele para chegar a esse resultado”,
explica Gouveia de Mello.
Depois de se acostumar com o “luxo”, os leitores agora
esperam que o novo e aguardado romance do escritor receba o mesmo
tratamento de alto nível estético e gráfico. “No caso da obra de Ariano,
‘luxo’ não quer dizer pompa. Significa apenas que você tem a liberdade de
trabalhar graficamente com elementos coerentes com a criação literária
dele”, situa Gouveia de Mello. Depois do sucesso do Auto, ele já
assinou mais duas parcerias com Suassuna e a editora Agir.