Trágico e moderno, tornou-se popular como frasista
inspirado e reacionário, mas é um dos grandes dramaturgos do século XX
por Carlos Haag
Nelson Rodrigues
(1912-1980) é o homenageado da quinta edição da Festa Literária
Internacional de Parati (4 a 8 de julho), a Flip. Editoras lançam novas
edições de sua obra, montagens se multiplicam aqui e lá fora. É óbvio
ululante que ele merece tudo isso, dirá você. “Toda unanimidade é burra e a
opinião pública é uma doente mental”, diria, talvez, Nelson. Não importa,
pois ele nos faz falta, embora, após a biografia de Ruy Castro, os estudos
de Sábato Magaldi, as séries da TV, a edição, até em inglês, de sua prosa e
teatro, não seja mais o incompreendido “anjo pornográfico”, mas um
reconhecido autor nacional, digno de festas literárias.
Nelson, no fim da vida, caiu no pior ostracismo possível: a fama. Odiado
pela esquerda, como reacionário, e pela direita, como tarado, falava-se nele
todo o tempo, sem que fosse compreendido. De repente, sumiu, virou folclore,
fonte de citações divertidas e ponto. Por um período, suas obras
não-teatrais voltaram às livrarias, em edições logo esgotadas. Agora, depois
de uma complexa negociação de direitos autorais, a Agir, da Ediouro, relança
toda a sua obra em prosa, coleção iniciada com A vida como ela é, O
casamento e que traz, agora, O homem proibido (assinado, em 1941, por Suzana
Flag) e o celebrado Óbvio ululante. A Nova Fronteira, que detém os direitos
de sua obra para o teatro, lança agora uma edição trilíngüe (português,
inglês e francês) de O beijo no asfalto. A obra terá também adaptação para
os quadrinhos de Arnaldo Branco e Gabriel Góes. Pela mesma editora, é
relançado Trágico, então moderno, de Angela Leite Lopes.
Mas, nesses
últimos tempos, bem mais do que conhecer Nelson, precisamos do impossível:
dele. “O brasileiro não está preparado para ser ‘o maior do mundo’ em coisa
nenhuma. Ser o ‘maior do mundo’ em qualquer coisa, mesmo em cuspe à
distância, implica uma grave, pesada e sufocante responsabilidade”, disse,
num hoje-mais-do-que-nunca, necessário puxão de orelhas nacional. O país
parece, enfim, ter dado razão ao desabafo rodriguiano de que “o homem não
nasceu para ser grande e um mínimo de grandeza já o desumaniza”. Procure, em
vão (e para além dos imitadores de plantão), um texto sagaz como o dele,
capaz de dar conta do que é o nosso país. Andamos muito mal-humorados,
secos, insossos, incapazes de arrancar, da realidade nacional, as pequenas
delícias cotidianas, na sociedade e na política, que fizeram grande o
melodrama rodriguiano. Como ele nos faz falta. “Abominando a dissolução do
indivíduo na massa informe, preza a dignidade dos que resistem à
mediocridade da visão de mundo e das formas de comportamento mais
generalizadas. Para ele, a tragédia do homem consiste no fato de, sendo
finito e limitado, carregar o anseio pelo infinito e a perenidade como uma
condenação”, escreveu Adriano de Paula Rabelo, autor da tese de doutorado
Formas do trágico moderno nas obras teatrais de Eugene O’Neill e de Nelson
Rodrigues.
“Ninguém faz nada em arte se lhe falta a dimensão de Vicente Celestino.
Todos nós somos um pouco o autor de Acorda, patativa. Shakespeare viveu
grandes momentos de Vicente Celestino: Ricardo III tem coisas de Coração
materno e de Ontem rasguei o teu retrato”, disse numa entrevista em 1978.
“Nelson, consciente de utilizar a tradição do melodrama, ainda a advoga como
ingrediente indispensável à obra de arte. Seu gênio mandou às favas o
preconceito e intuiu que a exploração do melodrama poderia fornecer um
imenso repertório de recursos de extraordinária teatralidade, acessível a
uma platéia mais vasta”, observa o pesquisador e encenador Caco Coelho.
“Adotando o melodrama, ele estaria comungando dos mesmos valores culturais
do povo brasileiro, capturando-lhe a carne e o espírito. De quebra, daria um
tapa com luva no autoritarismo do establishment intelectual. No Brasil, o
dramalhão é realista por espelhar o vasto universo social dos subúrbios e
das favelas, comportamentos típicos do povo, seus gostos, moral, mitos e
tabus”, completa.
É por isso que
sentimos sua ausência. “Nós, da imprensa, somos uns criminosos do adjetivo.
Com a mais eufórica das irresponsabilidades, chamamos de ‘ilustre’, de
‘formidável’, qualquer borra-botas.” Ele sabia do que falava. Nascido em
Recife, em agosto de 1912, era o quinto filho da série de quatorze rebentos
do jornalista Mário Rodrigues e um dos vários a seguir o métier paterno.
Como ficava pouco em casa, o pai de Nelson permitia que os filhos o
visitassem nas redações dos vários jornais em que trabalhou ou dirigiu. Não
sem razão, uma vizinha pediu à mãe do futuro autor de Vestido de noiva que
ele parasse de freqüentar a casa dela. Detalhe: ele tinha quatro anos. Aos
oito anos, participando de um concurso de redação escreveu uma história de
adultério. Aos 15, apaixonado por uma estrela da companhia teatral de Alda
Garrido, invadiu o palco com um buquê de flores nas mãos. Foi expulso aos
pontapés de cena. Naqueles tempos, quem gostava de apanhar era ele.
Antes, aos 13 anos, já tinha virado jornalista de verdade, repórter de
polícia no jornal do pai, ao lado dos irmãos Milton, Roberto (ilustrador de
genial morbidez) e Mário Filho. Abandonou os estudos, parando na terceira
série do ginásio e não voltou mais para a escola. Jeitoso, agradou o pai com
seus textos e ganhou o privilégio de ter uma coluna assinada. Abusou:
enxovalhando Rui Barbosa, voltou, como penalidade, para a seção policial.
Estava trabalhando, aliás, quando uma socialite, que fora denegrida na
primeira página, entrou na redação para atirar no pai e acabou matando
Roberto. Sua vida entra em parafuso em poucos anos: Mário pai morre três
meses depois da tragédia, a família passa fome, ele contrai tuberculose,
fica quase cego, ganha uma úlcera e perde o irmão Joffre, também
tuberculoso. “As tragédias pessoais e familiares, além das que cobriu como
repórter policial em idade precoce, calaram fundo na alma do jovem Nelson e
ajudaram a enformar suas concepções. Daí, a presença marcante, em suas
obras, de personagens e acontecimentos marcados por um destino inexorável do
qual não se pode escapar”, observa Rabelo.
“Eu sou um
triste”, suspirava, ainda adolescente. “Trágico e moderno, o destino se
manifesta na sua literatura como resultado de sua concepção pessimista do
homem como um ser frágil, ignorante, incoerente, desesperado e um tanto
enlouquecido perante a ilogicidade da vida, a indiferença da natureza, a
falta de amor e o descontrole dos impulsos sexuais”, resume o pesquisador.
Tinha paixão pelo Dr. Stockman, personagem da peça de Ibsen, O inimigo do
povo, um solitário que tem razão contra toda a sociedade. Mas há sempre uma
luzinha em todo túnel escuro. “No âmbito de suas vidas medío¬cres, os
personagens de Nelson nutrem como grande ambição de sua existência o anseio
pelo amor eterno, puro, sincero, num mundo que teria conspurcado o amor
verdadeiro com o sexo pelo sexo, uma espécie de queda do paraíso que gerou
toda a sorte de males que assolam a humanidade”, avalia Sábato Magaldi.
Casa-se em 1940 com Elza Bretanha e, desesperado para sustentar a nova
família, descobriu a solução ao passar diante de um teatro, onde havia uma
fila gigante para a comédia A família Lerolero.
Resolveu, então, escrever a sua, A mulher sem pecado, de 1941, que só
conseguiu colocar em cena um ano mais tarde. Em 1943, deu o salto mortal:
Vestido de noiva. Enviou cópias para todos os figurões literários da época,
inclusive Manuel Bandeira, que gostou do texto. Nelson, enfim, estava
prestes a fazer sucesso, mas não havia quem tivesse coragem de investir
dinheiro para montar uma peça cheia de cortes cinematográficos e diferentes
planos cenográficos. Quando um ex-bancário e encenador, Thomaz Santa Rosa, e
um recém-chegado diretor polonês, Ziembinski, se reuniram, a coisa andou.
“Foi uma verdadeira revolução no teatro brasileiro no âmbito da técnica, dos
temas, da linguagem cotidiana, dos personagens postos em cena. Subvertendo
as comédias de costumes, os vaudevilles, as peças pseudofilosóficas que
dominavam o teatro àquela época, Nelson realizou, tardiamente, a
modernização da cena brasileira”, avalia Rabelo. Ele ficou feliz com o
sucesso, mas precisava mesmo de dinheiro. Para tanto, ao longo da vida, fez
de tudo: escreveu folhetins com o pseudônimo de Suzana Flag, uma coluna
sentimental assinada por Myrna, deixou que usassem seu nome como tradutor
dos romances picantes de Harold Robbins (um marketing genial dos editores),
embora não soubesse ler em inglês.
No tempo que
sobrava nas redações, escrevia peças. Foram dezessete delas, entre as quais:
Dorotéia, Álbum de família, Anjo negro, Boca de ouro, Bonitinha mas
ordinária, o Anti-Nelson Rodrigues, Os sete gatinhos, Beijo no asfalto e A
serpente. Teve tempo também para muita prosa: o romance O casamento (escrito
a pedido do antes inimigo, Carlos Lacerda) , o “seriado” Engraçadinha
(depois transformado em livro em duas partes) e as inúmeras crônicas de A
vida como ela é para o Ultima Hora, de Samuel Wainer. Ao longo desse
universo de textos foi desenvolvendo o estilo casual de escrita, pleno de
gíria e tipos cariocas, ao mesmo tempo universais. São seres obsessivos,
apaixonados, neuróticos, hiperbólicos, abissais, sempre em situações-limite,
levando suas taras às últimas conseqüências. A morte, um tema constante, é,
aliás, o último e único gesto de dignidade dessas existências banais e
perdidas, tão características da classe média urbana brasileira (como também
o era o próprio Nelson). Foi com esses mesmos olhos que recebeu bem a
ditadura militar, embora não deixasse de usar seu prestígio junto ao regime
para ajudar amigos.
E também o
filho, Nelsinho, que recusou o privilégio do exílio, conseguido pelo pai com
Médici, e, na prisão, informou o dramaturgo das torturas, que ele
desconhecia. Morreu em dezembro de 1980, no mesmo dia em que, junto com um
grupo de amigos, num “bolão”, fizera treze pontos na loteria esportiva.
“Chegou às redações a notícia da minha morte. E os bons colegas trataram de
fazer a notícia. Se é verdade o que disseram os necrológios, sou de fato um
bom sujeito”, tinha escrito anos antes, após um engano dos jornais. Foi e,
desde então, sem grandes esperanças, aguardamos o retorno de textos
preciosos como os dele, por mais que pudessem, muitas vezes, ser vulgares e,
quase sempre, exagerados. Afinal, como dizia, “o artista tem de ser gênio
para alguns e imbecil para outros; se puder ser imbecil para todos, melhor
ainda”.
"Eis o que nem Joyce, nem Sônia sabiam: Paulo e Carlos eram agoram
amicíssimos. Ambos estavam descontentes com as suas respectivas bem-amadas;
foi isso, justamente, que os aproximou. Passaram a ter conversas diárias.
Mais moço e menos controlado, Carlos inclinava-se a toda sorte de
confidências. Só uma coisa o retinha: a suspeita de que Paulo pudesse
cultivar um romance duplo, com Joyce e Sônia, simultaneamente".
Trecho de O homem proibido, Agir, 464 págs., R$
44,90
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