O berro
impresso das manchetes, lançado pela Agir, traz 163 crônicas escritas
por Nelson Rodrigues na Manchete e Esportiva
José Teles
teles@jc.com.br
Nelson Rodrigues foi um dos maiores estilistas da literatura
brasileira. Mesmo em seus textos mais efêmeros o humor ácido, as
hipérboles, valorizam material jornalístico que deveria no dia seguinte
servir apenas para embrulhar peixe no mercado. É o que acontece com as
crônicas que escreveu sobre futebol, durante cinco anos, para a extinta
revista Manchete Esportiva. Na recente reedição da obra de Nelson
Rodrigues, estes textos foram reunidos por Marcos Pedrosa de Souza, no
livro Crônicas completas na Manchete Esportiva 55-59, com o subtítulo O
berro impresso das manchetes (Agir, 540, página R$ 59,90).
Assim como revolucionou a linguagem do teatro brasileiro e a crônica
de costumes, não fez por menos como colunista esportivo. Mesmo que se
ocupe na maioria das vezes do futebol carioca, suas observações e
tiradas fazem que um simples embate entre Flamento e Olaria acontecido
há 50 anos seja ainda hoje interessante. Ao comentar sobre um Brasil x
Tchecoslováquia, inicia com o resultado do jogo e mais uma de suas
hilárias generalizações: “Em futebol qualquer resultado é bom, menos o
empate. O empate deprime e desmoraliza os jogadores, o juiz, os
bandeirinhas, e o público. Convenhamos – é trágico um sentimento assim
universal de frustração... Quando o match acabou com o placar
rigorosamente virgem, experimentamos a seguinte sensação: - de que tudo
ia começar de novo. De fato, uma partida sem gol não existe”.
O cronista não se atém apenas à partida, e nem sempre ao futebol,
incursiona pelo boxe, pelo remo, pelo atletismo. Quem analisaria desta
maneira o papel do técnico numa equipe?: “Um técnico de futebol funciona
apenas como um técnico de futebol. Essa limitação, porém, é muitas vezes
fatal. Pelo seguinte: o rendimento de um jogador, em campo, depende, não
raro, de fatores extra-esportivos. Por exemplo: uma dor-de-cotovelo.
Castigado por uma dor-de-cotovelo um craque já está incapacitado para um
simples e reles arremesso lateral. E aqui eu pergunto: como tratar a
frustração amorosa de um jogador? Não há de ser com individual, não há
de ser com ginástica, não há de ser com bate-bola. É o momento em que o
técnico deixa de ser técnico para se tornar um pouco o confessor, um
padre, o psicólogo... o técnico tem que ser um consultório sentimental
para o craque...”
Ao contrário da maioria dos cronistas, que chamaria de “idiotas da
objetividade”, Nelson vê o futebol também nas entrelinhas. Para ele um
jogo não é apenas um jogo, tem a profundidade de um drama
shakespeareano. Na medida que firmava seu nome na crônica esportiva, ele
enriquecia a coluna escolhendo o personagem da semana. E aí mostra a
clarividência do grande escritor. No início de 1958, quando Pelé, embora
famoso, não tinha vaga de titular garantida na seleção brasileira
(Leônidas da Silva, por exemplo, combatia até sua escalação), ele foi o
primeiro a coroar o adolescente de 17 anos: “O que nós chamamos de
realeza é, acima de tudo, um estado de alma. E Pelé leva sobre os demais
jogadores uma vantagem considerável: a de se sentir rei da cabeça aos
pés. Quando ele apanha a bola e dribla um adversário é como quem enxota,
quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento... Quero crer que a sua
maior virtude seja justamente a imodéstia absoluta. Põe-se por cima de
tudo e de todos. Acaba intimidando a própria bola, que vem os seus pés
com uma lambida docilidade de cadelinha. Hoje até uma cambaxirra sabe
que Pelé é imprescindível na formação de qualquer escrete. Na Suécia,
ele não tremerá de ninguém. Há de olhar os húngaros, os ingleses, os
russos de alto a baixo. Não se inferiorizará diante de ninguém...Com
Pelé no time, e outros como ele, ninguém irá para a Suécia com a alma
dos vira-latas. Os outros é que tremerão diante de nós”. Mais do que um
comentário, uma premonição.
Garrincha para a maioria da crônica era, quando muito, simplório e
puro como passarinho, com o qual não poucas vezes foi comparado. Nelson
vai mais a fundo em sua análise do fenômeno Mané: Todos nós dependemos
do raciocínio. Não atravessamos a rua, ou chupamos um chicabon, sem todo
um lento e intricado processo mental. Ao passo que Garrincha nunca
precisou pensar. Garrincha não pensa. Tudo nele se resolve pelo
instinto, pelo jato puro e irresistível do instinto. E por isso mesmo,
chega sempre antes, sempre na frente, porque jamais o raciocínio
adversário terá a velocidade genial do seu instinto”.
Para um “idiota da objetividade” uma goleada de 5x1 é no máximo
homérica. Nelson vê nela a tragédia: “Sim, amigos, quando o Botafogo
desfechou no adversário, à queima-roupa, o quinto gol, eu me senti como
se fora testemunha de um crime. Era como o assassinato de alguém, ou
antes, o assassinato de um time”, escreveu ele num comentário sobre uma
goleada infligida pelo Botafogo ao Flamengo, pelo campeonato carioca.
O Berro impresso das manchetes traz 163 crônicas, ou seja, todas que
escreveu na Manchete Esportiva. Poucas estão datadas, mesmo quando não
se sabe quem é o jogador de quem ele fala, ou que vários times já não
existam. Graças à genialidade de Nelson Rodrigues, estes craques e times
tornaram-se atemporais.
(©
JC Online)