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 Tropicália - O Movimento que Não Terminou

 

A Tarde

Caetano Veloso
 

Exposição no Rio de Janeiro mostra como a idéia lançada por artistas como Hélio Oiticica e Caetano Veloso inuencia a cultura brasileira até hoje -- e começa a repercutir em escala mundial

Marcelo Rezende

No início há uma palavra, Tropicália, e um encontro mítico: Hélio Oiticica e Caetano Veloso. O ano é 1967. Oiticica era um agente provocador das artes brasileiras e Caetano, um cantor jovem disposto a pôr suas idéias em circulação. Em abril, o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro recebia a exposição Nova Objetividade Brasileira, e nela Oiticica apresentava a instalação Tropicália, um ambiente em forma de l abirinto com p lantas, areia, araras, um aparelho de TV e capas de Parangolé (um tipo de obra de arte feita para ser usada como roupa). Depois de "Tropicália, a obra", surge "Tropicália, a música". "Ouvi primeiro o nome Tropicália, sugerido como título para minha canção, do cineasta Luís Carlos Barreto, que me ouviu cantá-la em São Paulo e se lembrou do trabalho de um tal Hélio Oiticica. Resisti a pôr em minha música o nome da obra de um cara que eu nem conhecia", lembra Caetano Veloso. Depois da canção, "Tropicália, o disco". Lançado em 1968, o LP Tropicália: ou Panis et Circenses reúne Gilberto Gil, Caetano, Tom Zé, Gal Costa, Os Mutantes e Nara Leão. Tropicália foi ainda a moda colorida, um jeito feliz de namorar e um programa de domingo pela televisão. Surgia, assim, "Tropicália, o movimento".


A história continua, 40 anos depois, com "Tropicália, a exposição". Tropicália Uma Revolução na Cultura Brasileira (1967-1972) chega ao Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (o mesmo onde Hélio Oiticica, morto em 1980, aos 43 anos, exibiu sua obra fundadora) neste mês, após ter passado pelos Estados Unidos, Alemanha e Inglaterra. A exposição foi elaborada pelo Museu de Arte Contemporânea de Chicago e o Museu do Bronx, de Nova York, na esteira da redescoberta do trabalho e do pensamento de Oiticica a partir de meados da década passada. Os tropicalistas brasileiros conseguiram algo raro e poderoso na cultura: uma inesperada trapaça com o tempo. Hoje, a Tropicália interessa ao mundo. Do mesmo modo que Marcel Duchamp faz mais sentido para a arte agora do que Pablo Picasso (com sua concepção de que uma idéia é já uma criação artística), o Tropicalismo ganha neste início de século um caráter mundial. Mas o que aconteceu para que algo tão brasileiro passasse a ser tão sedutor?


A resposta começa com a globalização e a Internet. Num mundo cada vez mais multicultural e interativo, a colagem de gêneros e a participação do espectador preconizadas pela Tropicália fazem total sentido. Assim, para o curador da exposição, o argentino Carlos Basualdo, o Tropicalismo é algo que continua e oferece várias possibilidades. Por isso há na mostra o consagrado e o novo, e assim os brasileiros Oiticica e Lygia Clark estão confortáveis ao lado da artista contemporânea francesa Dominique Gonzalez-Foerster. E há também uma aproximação entre Gilberto Gil e Caetano Veloso com estrelas jovens da música pop atual, como o norte-americano Beck e a banda inglesa High Llamas.

"A Tropicália pode ser um item nostálgico numa revista de onda rock britânica: algo que 'foi'. Mas ela é algo 'que é' quando nem precisa ser lembrada pelo seu nome", diz Caetano Veloso. "Para mim, o próprio fato de esse acontecimento da cultura brasileira só ter começado a ser assimilado internacionalmente depois de décadas é prova de que sua complexidade exigirá trabalho de quem quer que se aproxime", diz o cantor sobre esse ressurgimento no qual se misturam ineditismo, nostalgia e estratégias de mercado.

REVOLTA POLÍTICA
Para a cultura brasileira, a Tropicália foi um momento único. Para músicos e artistas de diferentes lugares, quatro décadas depois, é uma espécie de mapa em um planeta no qual as culturas se misturam e os valores culturais, morais e políticos parecem menos sólidos. Como afirma o norte-americano Beck, em sua canção Tropicalia, do álbum Mutations (1998): "Você não saberia o que dizer para si mesmo/ amor é a pobreza que não se vende/ a miséria espera em hotéis vagos/ ser expulsa". Beck, que assume ter sido influenciado pela Tropicália, é um dos grandes inovadores da música pop atual. Seu último álbum foi lançado no final do ano passado pela internet, e os ouvintes poderiam fazer suas próprias versões das canções. É uma obra completamente interativa da música pop. Num certo sentido, nada mais tropicalista. E, aqui, Beck faz um cumprimento a Hélio Oiticica.


Hoje, nas mais diferentes bienais, não importa de qual nação, está presente o conceito de que arte significa não apenas o que se pinta, esculpe ou filma. Oiticica, já nos anos 60, punha essa idéia em movimento: "Sob a luz dos desenvolvimentos artísticos dos anos 1990 e 2000, o trabalho de Oiticica aparece como um precursor-chave", diz a crítica inglesa Claire Bishop, organizadora de Participation (2006), um volume com textos de autores que pregavam o fim da atitude passiva do espectador diante da obra de arte em sintonia com o que, na esfera da música pop, Beck preconiza em seu trabalho. No livro está Oiticica: "Eu o escolhi porque seu trabalho continua como uma das mais bem resolvidas expressões de forma estética e revolta política realizadas na arte", diz ela.

Revolta e política, como diz Claire. E também poesia e beleza. Esses foram os elementos presentes em toda a trajetória de Hélio Oiticica, que em 1964 ano do golpe militar no Brasil se torna passista da Mangueira e passa a conviver intensamente com a comunidade do morro. Nos anos seguintes, reivindica uma arte que promova uma relação com aquele que a observa. Isto é, a grande arte é feita quando se constrói relações com quem a vê, e todas as diferenças, sobretudo de classe social, são abolidas. Um instante marcante é quando Oiticica cria a bandeira com a frase "Seja Marginal, Seja Herói", uma homenagem ao bandido Cara de Cavalo, assassinado pelo esquadrão da morte em 1966. O crítico Mário Pedrosa, no mesmo ano, no jornal Correio da Manhã, explica essa aproximação de Oiticica com a favela: "Foi durante a iniciação ao samba que o artista passou da experiência visual, em sua pureza, para uma experiência do tato, do movimento". Essa lição dada pelo samba está viva e presente na cena artística atual. Um exemplo: a 27a Bienal de Arte de São Paulo, realizada no ano passado, exibiu uma produção que reivindica o fato de que toda arte é política. Como no trabalho do artista tailandês Rirkrit Tiravanija (presente na mesma bienal), que apresenta em suas "exposições" jantares preparados por ele mesmo. Sua obra é promover encontros: "Não é o que você vê o mais importante, mas o que acontece entre as pessoas", diz. Oiticica é um dos precursores dessa idéia, a de que aproximar pessoas é uma forma de engajamento político.

A exposição no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro se compõe de mais de 250 objetos (obras, cartazes, poesia, roupas), divididos entre teatro, artes visuais, arquitetura e o impacto comportamental gerado pela Tropicália. Seu sucesso em Londres foi imenso, e provocou a reaparição de Caetano Veloso e Gilberto Gil na capital britânica, e foi até a ocasião para um reencontro dos Mutantes, que resultou num CD ao vivo. Mas esse ambiente de quase total aceitação pode conter ainda alguns problemas. Entre eles, o modo como a arte brasileira passa ser vista no exterior. "A crítica americana e européia, hoje em dia, é incapaz de escrever um só artigo sobre qualquer artista contemporâneo nacional, sem mencionar sem a menor razão o nome da Lygia Clark ou do Hélio Oiticica", diz o artista plástico Vik Muniz, um dos brasileiros mais reconhecidos no circuito mundial da arte. "Lygia e Hélio se transformaram na Carmen Miranda e no Pelé das artes plásticas no circuito internacional."

(© Bravo Online)

 

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