Foto: REPRODUÇÃO/ARQUIVO RICARDO GUILHERME
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O dramaturgo Carlos Câmara |
Há exatos 90 anos, entrava em cena o Grêmio
Dramático Familiar, principal referência do teatro cearense da primeira
metade do século passado. O Caderno 3 deste domingo revive os principais
atos da companhia liderada pelo dramaturgo Carlos Câmara (1881-1939) e
seu mais importante cenário: o Boulevard Visconde do Rio Branco,
originalmente conhecido como o Calçamento da Messejana
MAGELA LIMA
Repórter
Unha e carne. Companheiros inseparáveis. Fundado para proporcionar
espetáculos — “a título de simples diversão” — aos moradores do
Boulevard Visconde do Rio Branco, o Grêmio Dramático Familiar
(1918-1939) praticamente se funde e se confunde ao seu principal
cenário. Além disso, a trupe amadora, capitaneada pelo dramaturgo Carlos
Câmara, demarca o primeiro grande momento do teatro no Ceará. Poucas
vezes, ali da frieza do palco, artistas foram acalorados pelo público de
forma tão efusiva. Peças modestas, encenadas por autodidatas,
apresentadas num tablado improvisado — feito de caixotes e cobertos com
palha — definitivamente pararam uma Fortaleza afrancesada, metida a
belle epoque.
Enquanto o suntuoso Theatro José de Alencar, de 1910, sediava com pompa
as temporadas de companhias visitantes, o teatrinho do Grêmio Dramático
Familiar surpreendia pelo apelo popular. O frisson era tanto que os
cinemas anunciavam nos jornais da época que não haveria sessão, devido
às apresentações do senhor Carlos Câmara. Também as linhas de bonde se
curvavam ao sucesso absoluto do grupo, interrompendo a circulação e
criando horários específicos para atender melhor aos espectadores.
Apostando na combinação música e comédia, o Grêmio Dramático familiar
entra em cena, apresentando números variados mais ligeiros. Dentre eles,
trechos da ópera-cômica “Os sinos de Corneville”, ainda reforçando um
diálogo com as nossas heranças do teatro português.
Na seqüência, se afirma um incentivo aos autores locais. Primeiro,
Carlos Severo (1864-1926), com “Hotel do Salvador”. Depois, tem início o
império de Carlos Câmara. Devido a escassez de textos, os amigos do
Grêmio Dramático Familiar acabaram por convencer o poeta e jornalista a
escrever cenas. Assim, em apenas oito dias, “A Bailarina” foi concluída.
A peça não só revelou um talento fabuloso, como potencializou os
atrativos do novo grupo. Carlos Câmara, também assumindo a função de
diretor, encantou ao apresentar uma trama cujos personagens pareciam
pinçados da realidade. Os tipos do autor falavam o sotaque do Ceará de
então. E mais: viviam suas dores e alegrias. Que o diga o título do
primeiro espetáculo autoral do coletivo: “bailarina” era o modo como o
fortalezense daquele período fazia graça da temida da gripe espanhola,
de 1918, a “ballerina”.
O mistério do Boulevard
O pesquisador Miguel Ângelo de Azevedo, Nirez, aponta o Grêmio Dramático
Familiar como um dos mistérios mais curiosos da cultura cearense. “A
dimensão simbólica do teatro do Carlos Câmara não condiz com a pouca
quantidade de informação que se tem. Praticamente, não existem registros
sobre o Grêmio Dramático Familiar. Aqui e acolá, aparece uma fotografia;
aqui e acolá, um jornal ou outro faz uma menção às apresentações, mas é
muito pouco diante do que o grupo representou para a Fortaleza daquele
início do século”, observa. Para Nirez, Carlos Câmara foi um verdadeiro
gênio. “O teatro dele parou a cidade porque falava para a cidade”, diz.
O veterano ator e diretor Haroldo Serra, um dos mais comprometidos
atualizadores da obra do dramaturgo, rebate veementemente a rubrica de
regional para o fundador do Grêmio Dramático Familiar.
“Todas as vezes que montei Carlos Câmara, fiz questão de avaliar como a
sua dramaturgia falaria para outros públicos de fora do Ceará. Levei
esse ano ‘O casamento da Peraldiana’ ao Rio de Janeiro e, mais uma vez,
tive a certeza de que o Carlos Câmara não é um autor local. Falando do
Ceará, de Fortaleza, localizando uma cidade no mundo, falou do homem e
suas tensões mais individuais, que são, por excelência, universais”,
argumenta o líder da Comédia Cearense. De acordo com Serra, o forte de
Câmara e sua trupe era, sim, o humor refinado e contundente. “Crítico,
mas sem nenhuma apelação”, resume.
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Diário do Nordeste) |