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Quando o Ceará cabia numa rua

15/07/2008

 

 

Foto: REPRODUÇÃO/ARQUIVO RICARDO GUILHERME

O dramaturgo Carlos Câmara


Há exatos 90 anos, entrava em cena o Grêmio Dramático Familiar, principal referência do teatro cearense da primeira metade do século passado. O Caderno 3 deste domingo revive os principais atos da companhia liderada pelo dramaturgo Carlos Câmara (1881-1939) e seu mais importante cenário: o Boulevard Visconde do Rio Branco, originalmente conhecido como o Calçamento da Messejana

MAGELA LIMA
Repórter


Unha e carne. Companheiros inseparáveis. Fundado para proporcionar espetáculos — “a título de simples diversão” — aos moradores do Boulevard Visconde do Rio Branco, o Grêmio Dramático Familiar (1918-1939) praticamente se funde e se confunde ao seu principal cenário. Além disso, a trupe amadora, capitaneada pelo dramaturgo Carlos Câmara, demarca o primeiro grande momento do teatro no Ceará. Poucas vezes, ali da frieza do palco, artistas foram acalorados pelo público de forma tão efusiva. Peças modestas, encenadas por autodidatas, apresentadas num tablado improvisado — feito de caixotes e cobertos com palha — definitivamente pararam uma Fortaleza afrancesada, metida a belle epoque.

Enquanto o suntuoso Theatro José de Alencar, de 1910, sediava com pompa as temporadas de companhias visitantes, o teatrinho do Grêmio Dramático Familiar surpreendia pelo apelo popular. O frisson era tanto que os cinemas anunciavam nos jornais da época que não haveria sessão, devido às apresentações do senhor Carlos Câmara. Também as linhas de bonde se curvavam ao sucesso absoluto do grupo, interrompendo a circulação e criando horários específicos para atender melhor aos espectadores. Apostando na combinação música e comédia, o Grêmio Dramático familiar entra em cena, apresentando números variados mais ligeiros. Dentre eles, trechos da ópera-cômica “Os sinos de Corneville”, ainda reforçando um diálogo com as nossas heranças do teatro português.

Na seqüência, se afirma um incentivo aos autores locais. Primeiro, Carlos Severo (1864-1926), com “Hotel do Salvador”. Depois, tem início o império de Carlos Câmara. Devido a escassez de textos, os amigos do Grêmio Dramático Familiar acabaram por convencer o poeta e jornalista a escrever cenas. Assim, em apenas oito dias, “A Bailarina” foi concluída. A peça não só revelou um talento fabuloso, como potencializou os atrativos do novo grupo. Carlos Câmara, também assumindo a função de diretor, encantou ao apresentar uma trama cujos personagens pareciam pinçados da realidade. Os tipos do autor falavam o sotaque do Ceará de então. E mais: viviam suas dores e alegrias. Que o diga o título do primeiro espetáculo autoral do coletivo: “bailarina” era o modo como o fortalezense daquele período fazia graça da temida da gripe espanhola, de 1918, a “ballerina”.

O mistério do Boulevard

O pesquisador Miguel Ângelo de Azevedo, Nirez, aponta o Grêmio Dramático Familiar como um dos mistérios mais curiosos da cultura cearense. “A dimensão simbólica do teatro do Carlos Câmara não condiz com a pouca quantidade de informação que se tem. Praticamente, não existem registros sobre o Grêmio Dramático Familiar. Aqui e acolá, aparece uma fotografia; aqui e acolá, um jornal ou outro faz uma menção às apresentações, mas é muito pouco diante do que o grupo representou para a Fortaleza daquele início do século”, observa. Para Nirez, Carlos Câmara foi um verdadeiro gênio. “O teatro dele parou a cidade porque falava para a cidade”, diz. O veterano ator e diretor Haroldo Serra, um dos mais comprometidos atualizadores da obra do dramaturgo, rebate veementemente a rubrica de regional para o fundador do Grêmio Dramático Familiar.

“Todas as vezes que montei Carlos Câmara, fiz questão de avaliar como a sua dramaturgia falaria para outros públicos de fora do Ceará. Levei esse ano ‘O casamento da Peraldiana’ ao Rio de Janeiro e, mais uma vez, tive a certeza de que o Carlos Câmara não é um autor local. Falando do Ceará, de Fortaleza, localizando uma cidade no mundo, falou do homem e suas tensões mais individuais, que são, por excelência, universais”, argumenta o líder da Comédia Cearense. De acordo com Serra, o forte de Câmara e sua trupe era, sim, o humor refinado e contundente. “Crítico, mas sem nenhuma apelação”, resume.

(© Diário do Nordeste)

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