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Zuleno se foi, tranqüilo

15/07/2008

 

 

Foto: JC Imagem

Zuleno Ferreira da Veiga Pessoa
 

O pintor e desenhista morreu aos 92 anos. Seu corpo foi enterrado em Santo Amaro

Olívia Mindêlo

Comeu pouco como de costume, descansou e, por acaso, não tocou nas tintas. À noite, deitou-se para dormir como num dia qualquer e, por volta da 1h de ontem, abriu subitamente os olhos, voltando a fechá-lo em seguida, para sempre. O último dia do artista plástico pernambucano Zuleno Ferreira da Veiga Pessoa, ou simplesmente Zuleno, no domingo passado, em sua casa, foi a síntese de seu estado de espírito em vida: tranqüilo. Muita gente, sobretudo aos 92 anos, idade em que estava, vê a morte como uma ameaça diária, mas não ele. Espírita kardecista devoto, vegetariano e lúcido até o fim, se foi com a paz de quem cultivou menos a vaidade e mais a simplicidade durante seus dias de existência. E deixou não só uma pintura significativa para o Estado e o País, mas um jeito de ser que vai continuar inspirando artistas, familiares e amigos durante um bom tempo.

“Impressionante é que ele era muito mais espírito do que carne. Profundamente crente. Não falava em morte, tanto é que perdeu a mulher, Julieta, com muita tranqüilidade”, recorda o historiador e amigo do artista Leonardo Dantas Silva, que vai proferir hoje um voto de pesar pela morte do pintor, na reunião do Conselho Estadual de Cultura, do qual é conselheiro.

Como ele, todos que conviveram com Zuleno são unânimes ao falar sobre seu caráter e sua obra. “Conheço muita gente que ele ajudou, não só financeiramente, mas com palavras de conforto. Tínhamos prazer em trabalhar com ele”, diz Sérgio Oliveira, dono da Galeria Arte Maior, com a qual o artista trabalhou nos últimos 20 anos de sua vida, embora também tenha se relacionado com o marchand Carlos Ranulpho, nome por trás da comercialização de obras de outros talentos pernambucanos do século 20, como Vicente do Rego Monteiro, Cícero Dias e Lula Cardoso Ayres, com quem Zuleno conviveu.

O colunista social deste JC José de Souza Alencar, Alex, faz questão de enfatizar a destreza artística de Zuleno: “Ele foi um desenhista excepcional. Embora valorizasse mais a pintura, estava sempre esboçando algo, e sabia desenhar como poucos”. Para Alex, a maneira como costumava conciliar as cores fortes foi um dos segredos da “beleza e do sucesso de sua pintura”. “E o interessante é que ele sempre se habituou a pintar com tinta a óleo. Não esta feita para pintor, mas a industrial, que se pinta geladeira e grade, e é muito mais difícil de manusear”, revela o colunista. Ele foi colega de trabalho do artista no Jornal do Commercio, onde Zuleno exerceu a função de ilustrador entre as décadas de 1950 e 1970. “Naquela época, havia uma dificuldade de foto, então ele desenhava para o jornal, e vivia disso”, lembra Alex. Leonardo Dantas Silva, que também dividiu os expedientes como o amigo no JC, ressalta que ele ainda foi design gráfico de anúncios locais, assim como também fez desenhos para a TV Jornal.

Tanto como ilustrador gráfico quanto como pintor, Zuleno sempre teve a disciplina como meta. Não é à toa que não deixou de pintar até os últimos dias, em sua residência, no bairro de Monsenhor Fabrício, onde foi obrigado a morar há cerca de quatro anos, quando sua casa em Campo Grande foi assaltada. “Ele estava com uns projetos novos. Era muito ativo, apesar da fraqueza da idade”, atesta a professora Telma Pessoa, filha do artista, que deixa também o filho caçula, Luciano.  

(© JC Online)


Garoto pobre fez primeiros desenhos com um graveto

Nascido em Pesqueira, Agreste pernambucano, no dia 2 de agosto de 1915, Zuleno Pessoa aprendeu a desenhar e pintar sozinho, a partir dos outros e do que via ao seu redor. O artista Renato Vale, que conviveu com Zuleno a partir da década de 1970, lembra que ele costumava comentar um fato marcante de sua infância: o dia em que a mãe, de origem pobre, vendo-o desenhar no chão com um graveto, lhe deu uma caixa de lápis. “Ele nunca se esqueceu disso”, diz Vale.

De autodidata passou a desenhista profissional e seguiu fazendo bicos, até passar a viver do próprio traço como desenhista gráfico no Jornal do Commercio, no Recife. Depois de deixar a empresa, seus traços ainda continuaram sendo sua fonte de renda. “Ele sempre vendeu muito os seus quadros”, lembra o colunista Alex.

De acordo com o marchand Sérgio Oliveira, da Galeria Arte Maior, suas pintura custam atualmente entre R$ 5 mil e R$ 20 mil. Como é de costume, é provável que esse valor cresça, com a morte de Zuleno. “É fascinante poder viver da própria arte e Zuleno viveu. Ele também estimulava os outros, comprando trabalhos e trocando”, diz Renato Vale.

A consagração de sua obra veio com uma exposição, na década de 1950, no Museu de Arte de São Paulo, o Masp, quando ainda funcionava na Rua Sete de Abril. O convite partiu do italiano Pietro Maria Bardi e, depois disso, sua obra passou a ser objeto de desejo de galerias do Sudeste, assim como do Recife.

MULHERES

Zuleno pintou paisagens, temas religiosos e abstratos, mas foi a figura feminina a protagonista de suas obras, seja na fase monocromática, carregada de preto, ou na de cores vibrantes, que manipulava em busca de contrastes e da luminosidade. O foco no olhar dessas personagens, que quase sempre fitam o espectador, é uma marca constante, assim como o gosto pela forma geométrica. Não se sabe ao certo quantas obras deixou, mas o suficiente para continuarmos nos depararmos com muitas delas por aí. (O.M.)

(© JC Online)


Depoimentos:

“Sou suspeita para falar. O trabalho de papai é maravilhoso. Ele não pintava por dinheiro, mas porque amava o que fazia. Sobreviveu da pintura, mas não era ansioso por dinheiro”. Telma Pessoa, filha.

“O artista morre, mas a obra fica, e sempre supera o artista. Daqui a 20 anos, a gente vai ver pinturas de Zuleno circulando pelo mercado. Foi uma obra significativa. Ninguém vai esquecer”. Sérgio Oliveira, marchand.

“Tinha Zuleno como um pai, que eu escolhi. Era uma pessoa querida, que me ensinou muito. Não a técnica, mas a me profissionalizar no ofício e a me espiritualizar. Ele tinha um coração muito aberto. Não tinha preconceito nem medo de nada”, Renato Vale, artista plástico.

(© JC Online)

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