Fotos: Foto: Kiko Barros
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Francisco Brennand
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HENRIQUE NUNES
Repórter
O escultor
pernambucano Francisco Brennand ganha sua primeira individual
em Fortaleza. No
Museu de Arte Contemporânea do Dragão do Mar, “Brennand: uma introdução”
renova a parceria com o crítico de arte Olívio Tavares de Araújo, um dos
maiores especialistas em arte do País. A exposição celebra os 200 anos do
Banco do Brasil e segue para Porto Alegre e Belo Horizonte. A seguir,
Brennand fala sobre sua obra
Desde 98, o senhor expõe sob a curadoria de Olivio Tavares de
Araújo. Como vem sendo esta parceria?
Dada a nossa amizade e aproximação nessa sucessão de exposições, há pontos
de contato de absoluta concordância em relação à análise do meu trabalho em
geral. O discordante é natural de pessoa a pessoa. Ele dá uma importância
enorme às minhas esculturas, e não tem o mesmo entusiasmo em relação à
pintura. Eu sou o contrário. Sou um pintor com coração de escultor. Todos
meus grandes prêmios foram de pintura desde o Salão do Estado de Pernambuco,
há 20 anos.
Mas hoje sua obra se tornou mais reconhecida por suas esculturas em
cerâmica.
Sou um escultor que trabalha com cerâmica, não aceito que digam que sou
ceramista. Isso vem de minha família, que tinha uma industria de
cerâmica, uma estrutura de 1917, onde fiz meu ateliê, conhecido como
Oficina de Cerâmica Francisco Brennand e ainda, Templo da Várzea. Eu e meus
irmãos brincávamos nessa fábrica de telha de tijolos, um lugar misterioso,
que estava em ruínas, a fábrica havia sido abandonada. Em novembro de 1971,
resolvi recompor, reconstruir tudo. A ruína foi o próprio projeto. Não
queria algo racional, mas dentro de minhas recordações, de uma maneira
fetichista, usando colunas de diferentes alturas, desiguais, fora de
qualquer ortodoxia arquitetônica, então a magia permaneceu. O que sei pela
expressão de quem me visita. São construções antigas onde mantenho as
cerâmicas de seu interior. Tem galpões enormes com mais de 100 metros de
comprimento por 13 a 14 metros de altura.
Uma das características de suas esculturas é uma sexualidade totêmica, sem
artifícios morais.
Este é o termo. Eles têm uma pesada carga sexual, uma rudeza tão grande como
o parto. Reporta às origens, ao enigma da reprodução. As coisas são eternas
porque se reproduzem. Uma quantidade enorme de ovos, algumas tocadas, outras
quebradas, de onde saem animas de toda espécie. Na mitologia antiga, se
pressupunha que o homem teria nascido do ovo. Os falos também estariam
incluídos na sistemática reprodutiva, mas com liberdade enorme. Trabalho com
cerâmica, mas não sou realista, não com trabalho com a forma real ,
fotográfica de uma realidade passageira, mas com os aspectos múltiplos da
realidade.
Em suas esculturas, há também uma ênfase em mulheres sofridas e
mitos gregos e bíblicos. Fale sobre esses aspectos da sua arte.
Preocupação central é humana, a fragilidade e a miséria humana. Passeio
através de uma simbologia enorme de diferentes mitos, sobretudo gregos,
ligados à nossa civilização, a Grécia é o mundo moderno. Figuras
desafortunadas, sobretudo m relação às mulheres, não porque seja a parte
mais fraca: é porque elas são muito mais sensíveis, ligadas à natureza. Elas
permanecem e são a matriz necessária à nossa sobrevivência. Também trato dos
mitos bíblicos, mas tudo isso com uma liberdade censurável, porque não estão
ligados a ortodoxias religiosas. Faço uma indagação do sagrado, uma
indagação panteísta. Faço temas como a Torre de Babel com formas orgânicas,
bundas e falos superpostos. Para resumir, não existem torres inocentes, as
torres não são inocentes, a torre, em si, já era uma representação, no caso
de Babel, do pecado da soberba. E assim podemos chegar às torres gêmeas no
mundo moderno, construídas por soberbos e destruídas por demônios.
Essa visão vem de uma formação humanista.
Estudei na Europa, minha ligação com escritores é muito intensa, desde a
juventude. Inclusive sou um grande amigo de um cearense dos Inhamuns, o
poeta César Leal, que vive há muitos anos aqui em Recife. Convivi com
escritores de uma maneira geral, Gilberto Freyre e muitos outros. Essa
influência literária sempre me acompanhou, por isso mesmo, mantenho um
diário desde 1949, quando fiz minha primeira viagem à Europa. Muitos
pintores escreveram diários, com observações a respeito de quadros. Eu
escrevo em cadernos. Não digito, mas faço depois de uma maneira mais
correta. Dizem os ortodoxos que não deve ser corrigido, mas não tenho a
pretensão de ser escritor. A correção é necessária. Acho correto do ponto
de vista formal. Modifico palavras. Ainda hoje pego textos do início deste
diário e modifico palavras, não situações, até para me surpreender.
Você publicará este diário?
Depende da capacidade e do convite de uma editora qualquer, não quero forçar
a barra. Estive na iminência de publicar pela Topbooks, quase sairia, mas
não caminhou.
O senhor usa linguagem poética, desenhos, ficção?
Poesia, não. Desenhos sim, mas não muitos. Não quis fazer algo
muito ilustrado. Inventei uma nova forma para uma expressão que não seria só
a minha, com diferentes alter-egos, pessoas quase ficcionais, que darão a
esse diário uma expressão maior, uma curiosidade maior. De 49 a 99, não dei
opiniões políticas, como se estivesse numa plataforma espacial, numa torre
de marfim, me atendo mais sobre os problemas da arte. De 99 em diante, faço
outros personagens falarem abertamente sobre o mundo moderno, o dia-a-dia.
O que motivou esta ruptura?
Achava necessário, são tantas as opiniões contraditórias a meu respeito,
opiniões políticas e morais que não pratico, uma série de ilações... Antes
que me castiguem, me manifesto sobre coisas corriqueiras e sobretudo sobre
política, não há notícia que eu não faça uma interpretação. As notícias são
espetáculos. O suposto seqüestro desta colombiana, Ingrid Betancourt, mais
francesa que colombiana, por isso que o Sarkozy tá metido nesta encrenca, é
um conto de fadas, as coisas não aconteceram assim. Eles não seriam
ludibriados assim. E o candidato à Presidência (John McCain), por
coincidência estava presente exatamente neste dia... Quando pensei em
publicar esse meu caderno, que não gostaria de chamar nem de jornal, nem de
diário, pensei em chamá-lo de “Cadernos Arábicos”, porque falava muito em
mulheres, como se eu fosse um sultão. Quando Sérgio Lacerda, diretor da
editora Nova Fronteira, era um entusiasta do diário, mas ele morreu muito
jovem. Mas foi bom porque era um material em formação ainda. Depois
modifiquei, passei a chamar “O nome do livro” e de “O nome do outro”, o
material de 99 pra cá. Essa outra pessoa fala exatamente como gostaria de
ter falado. Entraram personagens ficcionais, por exemplo, precisava de
alguém que falasse de política internacional. É difícil entrar num assunto
distante, já é difícil penetrar nos meandros da política brasileira,
sobretudo no seio dos oito grandes países. Você passa um pouco ao lado da
verdade, o que é a mesma coisa que mentir. Queria uma pessoa que estivesse
dentro das estruturas, falasse esta linguagem. Por que a Amazônia não foi
tratada por outros. A Amazônia foi retalhada e dividida por outras pessoas
que não nós próprios brasileiros, os sucessivos governos estão estarrecidos
com isso. Em uma exposição minha recente em Manaus, falava-se todas as
línguas. Esses índios de Roraima estão na Europa, com o Papa. Daqui a pouco
vamos ter um novo Kosovo. Eles estão sendo conduzidos para se chegar a um
resultado qualquer, esta é a verdade da real política. Quanto aos desenhos,
o diário de 58 é cheio de desenhos, e de textos manuscritos. Aconteceu
mais, mas não queria encher meu diário com ilustrações, que acredito terá
um certo valor literário. Não quero transformá-lo num álbum de desenhos nem
num almanaque. No dia que falo de Ionescu, não vou botar a fotografia dele.
Essa pesquisa fica a critério do leitor. Tenho idéia de publicar em três
volumes. Digitei 1000 folhas, cada um deve ficar com 250 folhas, não quero
fazer um calhamaço. Não será o diário todo, uma seleção, mas o que está
manuscrito fica. Não quero me transformar num chato interessante. Não será
um diário de viagem, embora a Europa seja um mundo fantástico.
Como foi sua convivência com o Velho Continente?
Morei em Paris e viajei a Espanha, Itália, também morei na Itália, numa
fábrica na região da Úmbria, onde aconteceu a grande civilização etrusca. Em
53, voltei definitivamente ao Brasil. As viagens posteriores foram apenas
para exposições. Nunca turísticas, nunca fiz uma viagem turística, nem no
Brasil, nem na Europa, nem nos Estados Unidos, onde fui em 1993 receber o
(Prêmio Interamericano de Cultura) Gabriela Mistral (concedido pela
Organização dos Estados Americanos). Além de Volpi, do Brasil, só eu ganhei
esse prêmio que homenageia a poetisa chilena que ganhou o primeiro Nobel de
Literatura. O Nobel esqueceu dos músicos, dos artista plásticos. A outra
viagem, foi para minha operação de próstata.
Você fala no sofrimento, na dor, como inspiração.
Joseph Conrad, autor “do Apocalipse Now”, falava no final de sua
obra: “o horror, o horror...”. O horror existencial. Não há nada que possa
corrigir nossa miséria humana, nossa fragilidade, insensatez. Temos o
retrato do mundo. Somos regidos pela tolice, pela danação. Não existe uma
terceira forma. Não sou palmatória do mundo, nem desmancha prazer. Não sou
grande freqüentador de festas, mas compreendi as festas no dia que
compreendi o (escritor mexicano) Octavio Paz, que diz que a festa é um
desafio dos homens aos deuses.
Você
resistiu mas acabou usando a cerâmica, mesma atividade de seu pai. Como foi
esse processo?
Há um preconceito típico do século XIX, em torno de “artes menores
e maiores”. Cerâmica, gravura, tudo que não fosse escultura de mármore,
pintura em óleo, era menor, era arte aplicada. Apesar de ter nascido no
universo da cerâmica, meu pai era fascinado e colecionador de porcelanas,
resisti, pintei primeiro em óleo sobre tela. Não queria fazer esculturas.
Fiz apenas algumas peças de barro. Mas quase como um castigo, chegando a
Paris, a convite de Cícero Dias, a primeira exposição que vi foi uma de
cerâmica de Picasso, de quando ele viveu no Mediterrâneo entre 46 a 49.
Então, em fevereiro de 49, tinha uma exposição de cerâmicas de Picasso. Isso
foi uma pancada na cabeça. Em resumo: eu era um idiota total, um ignorante.
Picasso, depois, Gaudí, Gauguin. Não existem cartas de nobreza na arte.
Logo que cheguei ao Brasil trabalhei com murais. Não ia trabalhar logo com
volumes, numa mudança com suporte. As encomendas de painéis ou murais
começaram a me fazer essas diferenças, às vezes bastante acentuadas. Por
exemplo, os formatos de um quadro a óleo tem três metros por dois, mas um
mural comum tem 20, 30, 100 metros quadrados. Em 61, pintei um mural em
Miami, com 700 metros quadrados. Esse processo de ampliação de formato me
levava a ter problema para a escolha de motivos. A figura humana depois de
um certo momento de gigantismo fica grotesca. Mesmo os egípcios acabavam no
corpo humano com cabeça de bicho. Os próprios insetos ampliados se
transformam em monstros. Eu utilizei o mundo vegetal. Nesta propriedade,
temos remanescentes da Mata Atlântica, não era algo imaginário, era a
realidade onde nasci. Isso deu certo. Fiz murais gigantescos. Foi um ato de
pintura, todas as vezes que pego um pincel para pintar um jarro, um mural,
é um ato de pintura. Também como muralista não existe ninguém que tenha
feito mais murais que eu. E isso é um ato de pintura. Os afrescos
renascentistas não eram pintura? Por influência dos mexicanos, vários
artistas voltaram à tradição renascentista do mural. Eles influenciaram Di
Cavalcanti, Clóvis Praciano, Caribé, Portinari... Mas não me influenciaram,
admiro muito mas não me influenciaram como motivo. Fui para o mundo vegetal,
escapei do mundo político. Como Orwell fez a “Revolução dos Bichos”, fiz a
“Revolução dos Vegetais”.
Era um momento político conturbado. Como você lidou com as críticas
inevitáveis?
Picasso, Portinari, Niemeyer achavam normal que a arte fosse de
esquerda. Nunca fui de esquerda nem de direita, o homem é muito mais que
isso. Fui acusado por ter um latifúndio, pelo meu nascimento. Lidei de uma
maneira muito simples, trabalhei como Chefe da Casa Civil de Miguel Arraes
pouco antes dele ser preso. André Malraux, Ministro da Cultura francês,
tinha um projeto casa de cultura em presídios. Com colaboração de Lina Bo
Bardi, elaborei um projeto semelhante em Recife. Não tínhamos preconceito.
Também fui grande amigo de Violeta Arraes e seu marido. E de muitos
intelectuais como o antropólogo Olivio Xavier, o poeta César Leal. Mas veio
a revolução e esse projeto acabou.
E sua relação com a cultura popular?
Isso está muito ligado hoje ao espírito do meu grande amigo Ariano Suassuna.
Fala-se em pintores e escultores primitivos, mas não existe arquitetura
primitiva. A choupana não fere a ortodoxia da arquitetura.
Gaudí mudou isso.
Gaudí, o grande arquiteto da modernidade. Le Corbisier fez um prefácio do
livro do Gaudí, dizendo que ele foi o grande arquiteto da modernidade. A
minha surpresa foi enorme quando o vi. Meus mestres de pintura não falavam
dele. Quem me deu os primeiros rudimentos de Gaudí foi um motorista de táxi.
Uma das razões de eu ter admitido fazer a reforma deste conjunto à maneira
do que os europeus chamam de arqueologia industrial foi ter conhecido
Gaudí, um arquiteto de gênio. Eu fiz uma reforma prevenida pelo fantasma
dele. Gaudí é admirado por metade dos arquitetos modernos, algo que passei a
refletir na minha obra. O uso da cerâmica que ele usou imoderadamente,
pedaços de azulejo. Ele não tinha pretensão de fazer as pastilhas como os
romanos, usando cacos, para fazer coisas monumentais, maravilhosas, uma
liberdade de fazer imensa. Tudo aquilo que ele desenhou é enormemente
original. Deu impulso e um caráter de revolução à arquitetura da época. Ele
não quebrou tradição nenhuma, está embutido no gótico e na arquitetura
oriental. De qualquer forma, foi como se descobrisse uma Atlântida, uma
civilização perdida, ele me emocionou em todos os sentidos, um arquiteto que
tinha o que glorificar, não deve existir arquitetura sem ter o que
glorificar.
Em seu estúdio, há uma frase de Wittgenstein sobre isso: “a
arquitetura imortaliza e glorifica, por isso não pode haver arquitetura na
qual não haja nada para glorificar”. E a arquitetura e a filosofia também
fazem parte de seu cenário criativo.
Isso é capital. Dois catalães disseram que isso era fascista porque ele foi
colega de Hitler. Sou muito ligado a Plotino, todas as coisas se confundem,
entre todas as coisas há uma força misteriosa que nos une. Temos
dificuldades em relação ao planeta porque nos preocupamos com tolices. O
planeta está em um estado tão avançado de destruição, de iminente desastre,
que deveria ser preocupação de todos os países se buscar um espaço de
proteção ambiental. Os usineiros não respeitavam nada disso, meu pai
preservou. Para chegar até aqui, você passa por uma floresta de Mata
Atlântica, a 20 quilômetros do Marco Zero. Em relação ao que glorificar, de
início eu pensava que era uma fábrica abandonada. Meu pai foi pioneiro na
indústria nordestina de cerâmica, a fábrica estava caindo e ele estava vivo.
Era uma homenagem a meu velho pai, Ricardo Lacerda de Almeida Brennand (de
origem inglesa, meu quarto avô veio de Manchester, chamava-se Eduard).... A
glorificação partiu da obrigação de , como em São Francisco, talvez por meu
nome ser Francisco de Paula: “Restaura-me a minha igreja”. Ele levou ao pé
da letra essa visão. E eu também levei isso ao pé da letra, eu Francisco de
Paula. Toda essa região da Várzea estava ligada à história pernambucana:
André Vidal Negreiros e João Fernandes Vieira, da batalha de Guararapes,
vieram destas terras, no século XVII. A partir daí as diferentes revoltas...
Cheguei a pintar com grande ênfase o mural da Batalha de Guararapes, no
governo nacionalista de Jânio Quadros, por quem eu nutria uma grande
admiração.
Como foi ese processo de redescoberta da cerâmica em seus galpões,
inclusive com uma produção de azulejos semi-artesanais, paralela à criação?
Eu trabalhei em alguns painéis em cima de azulejos, distinto do ladrilho
cerâmico, mais complexo. Fiz alguns murais sobre azulejos depois a cerâmica
de mesa, queimada a 1400 graus centígrados, ficou parecida com a cerâmica de
Joan Miró. Em 58, fiz um grande mural que está no porto de Guararapes, em
Recife, uma exaltação à vida no campo, chama-se “Pastoral”, com pastores
tocando flauta, mas tem a nossa mata altântica e carro de boi. Em seguida,
em 61, fiz o grande revestimento desse mural de Miami, pintado em azulejos,
que se fosse pintado em cerâmica talvez o peso fosse enorme... Em 71, fiz o
mural da Bataalha, encomendado por dois mineiros, do Banco da Lavoura de
Minas Gerais, Gilberto e Aloísio Farias. Eles me encomendaram e insistiram
no tema da Batalha dos Guararapes. E pintei um mural de 33 m por 2,5 metros
de cumprimento, um mural exterior. A leitura dele é feita por quem passeia
na calçada, sobre a expulsão dos holandeses. Um simulacro claro, não sou
como Vitor Meireles que fez à maneira do século XIX. Uso a estética da
tapeçaria... No centro do mural, tem um soldado brasileiro que carega a
bandeira, mas a bandeira da república atual, numa antecipação da
nacionalidade. A partir de Guararapes tivemos um endereço certo, de Brasil.
Este mural partiu daqui da Várzea. A Várzea sempre é a referência
permanente.
É possível dizer que sua obra guarda, em comum com a arte armorial,
guarda uma presença telúrica?
Existem elementos de identificação, mas não tinha nada a ver com o movimento
armorial, ele é rigorosamente brasileiro. Eu acredito nas culturas básicas
do mundo, mesopotâmica e grega, que deve à Ásia Menor, e à do Norte, dos
vickings. Somos descendentes diretos da cultura mediterrânea, do
desenvolvimento de Roma, até chegar ao neo-clacissimo, ligado, claro, às
características de um país tropical. Ariano quer acreditar numa cultura
autóctone... Somos um povo bastardo, miscigenado, taí a nossa grandeza. Não
sou muito sensível à heráldica, por exemplo. Meu pai estudava pelo lado da
família pernambucana dele. Essa preocupação de Ariano, ligada à estética,
está no Armorial, agora, já existia nas minhas pinturas, anterior, ao
armorial, já existiam elementos simbólicos de uma pintura plana, de
claro-escuro, algo que deve ter influenciado Ariano, somos mutuamente
ligados. Mas esse mundo da sexualidade irrompeu violentamente, sem nada a
ver com o Armorial. Mais ligada à condição humana. Uma das coisas mais
ridículas que conheço, desprovidas de sentido, é a idéia da criatura humana
conseguir modificar a natureza fazendo uma revolução sexual. Não há
modificação nenhuma, somos o que há de ser, como está no Eclesiastes. O
judeu Carlo Levi, autor de “O Cristo parou em Éboli”, um texto famoso,
dizia, logo depois da guerra: “o futuro tem o coração antigo”, o futuro do
homem, o homem conta a sua história.
Você acredita haver uma relação mítica sua com os fornos, a
manipulação da argila?
Toda a minha juventude, observei a pesquisa de meu pai em torno de argilas
ideais. Ele ia até Oeiras, no Piauí, trazia inúmeros técnicos estrangeiros
que passaram pelas fábricas. Buscava informações de todo o leque tecnológico
da cerâmica, essa gente com o conhecimento familiar e essa contribuição
estrangeira, é claro que por tabela eu aprenderia alguma coisa. Não por
preocupação comercial, mas pelo contato. Então, quando me propus a levar
adiante esta fábrica, tinha que saber como lidar com estes fornos, e teria
que produzir alguma coisa. São fornos que trabalham 24 horas. Tenho 100
operários, uma pequena industria, artesanal, de produção pequeníssima,
apenas o bastante para proporcionar a continuidade de minha obra, afinal,
não sou financiado por ninguém. Tudo por uma obsessão. É até de estranhar
que não chegue às raias da loucura, uma obra visionária pra glorificar,
inclusive a arte. A arte é um monumento. Então, a produção artesanal vem
para ajudar, seqüenciar, que não teria de onde tirar dinheiro para poder
manter isso por 37 anos. O porcelanato invadiu o Brasil. Os arquitetos usam
material que vem da Itália. A cerâmica do Brasil era material de banheiro.
Eu trouxe a cerâmica para a sala de visita e para as fachadas. Daí em
diante, começaram as imitações. Tive prejuízos por conta disso. Roubando o
estilo, a assinatura. Mas sempre pareceu que eu era poderoso, “rico”...
Falso rico, quem tem fortuna é minha família , não sou eu.
Apesar disso, sua determinação continua a mesma.
A determinação continua a mesma, com a mesma força. Tenho 81 anos e continuo
com planos. Minha filha perguntou porque estou reformando um galpão. Eu
disse, para pintar quadros grandes. Os ateliês de escultura não têm nada a
ver com os de pintura, que não pode ter poeira, sujeira, a não ser da
própria tinta. Quero ter um ateliê onde possa trabalhar em quadros grandes.
Em 1972, fiz uma série de quadros chamada “Série Amazônica”, figuras míticas
de serpentes e animais não identificáveis, ampliados para uma escala enorme,
esses quadros foram para a Bienal. Nos jornais, pela minha curiosidade, vejo
muitas fotografias de queimadas. Estou colecionando essas imagens e pensando
em fazer grandes pinturas em caráter quase abstrato, de paisagens de
queimada vistas de dois mil metros de altura. Remete a Frans Krajcberg,
esse cara deveria ter uma estátua, um monumento em praça pública, ele se
antecipou a todos nós. Estamos rendidos ou vencidos, ninguém tem coragem de
falar. Ninguém fala sobre a Amazônia. Ariano não fala sobre a Amazônia.
Ariano é um grande homem, no sentido genérico. A pátria não tem mais reação.
Tiraram Marina Silva do Ministério, mas aquele de colete, é uma figura
copacabanal, parece aquele professor de Harward, Mangabeira Unger, isso que
não aceito e caio em cima, estou ficando um Gregório de Matos! E o mundo se
acaba.
Fale sobre essas 37 esculturas, 13 pinturas e cinco desenhos da
exposição, que vão de 1949 a 2002.
Os desenhos são de 49 em cima dos nus femininos, uma tradição que vem da
Grécia, nada de novo sobre a Terra. Nós nos repitimos. As pinturas têm todo
um recomeço. Cada quadro que pinto é como se fosse um primeiro. Não sou um
pintor processual. Van Gogh dizia: “o que me salva, graças a Deus, é que
nunca aprendi a pintar”. Ele quer dizer que existe uma coisa superior a
saber fazer. Elementos do ofício e uma força que vem do cosmos, da nossa
intuição, do eixo do mundo. Picasso diz, mais além: “O que me salva é que
cada vez eu faço pior”. Fazer pior não quer dizer que seja péssimo, é que o
tropeço é necessário. O pintor que se encontra cedo é processual, se repete
indefinidamente, mesmo o Ademir Martins, um grande. Fazendo cada vez melhor,
mas isso o estagna artisticamete. Isso que eu evito, esqueço que pintei
centenas de outros quadros. Não me baseio no que já fiz. Você não deve estar
preso ao que fez, mas ao que vai fazer.
A exposição é uma “introdução” à sua obra. Como ela foi composta na
Oficina da Várzea e no Parque das Esculturas?
Sou um artista de 81 anos e ainda sou sujeito a contravérsias, ninguém sabe
quem sou, o que faço, sou conhecido mas não pela minha obra. Fiz uma coluna
de cristal em homenagem aos 500 anos do Brasil, disseram que eram enormes
falos, tudo são falos.
Essa visão da sua obra o desagrada?
Evidentente, é um rótulo explorado no mal sentido, no sentido negativo. É
curioso que a nossa sexualidade verdadeiramente enigmática seja matéria de
riso. Noventa por cento das anedotas que se conta são ligadas a sexo. Não
sabemos como denominar as nossas genitálias. Tudo é de um grotesco atroz.
Desde muito cedo, somos instruídos a não acertar. Se descobríssemos a origem
do sexo, da nossa sexualidade, seria descobrir a origem do universo. Teria
interesses religiosos que fazem o impossível para evitar abusos e cair na
revolução sexual, que deu origem à promiscuidade e bagunçou o coreto. Hoje é
preciso apólice de seguro para fazer sexo seguro. Acaba sendo melhor não
fazê-lo.
Como funciona sua visão religiosa?
Sou católico, admirador de João Paulo e desse papa atual, um teólogo. Mas
eles procuram a ortodoxia religiosa, não existe esse negócio de ala
progressista, consevadora, existe a doutrina. Eles não podem ceder, estão no
papel deles. Mas enquanto isso, estamos com a ameaça da fome e da sede.
Pequim terá falta de água nas Olimpiadas. Esses problemas eu não tocava há
dez anos.
O que o motivou?
Talvez o longo silêncio, era necesário esclarecer. Sou bastante opinativo, o
que tem a possibilidade de erro, mas acho que não devo silenciar. Só um ou
outro fala da Amazônia, não vejo uma grande voz brasileira tratando deste
assunto com a seriedade que merecia. Não vejo uma arregimentação da elite
brasileira sobre esse assunto, que está se transformando numa necessidade
urgente.
E a politica?
Não tenho partidos, você deve se engajar a uma idéia maior da condição
humana que deve sobreviver a todas as intempéries. Coisas que estão
acontecendo agora e se aproximam do final até o fim do século. Li um livro
do cientista inglês , James Lovelock, “A Vingança de Gaia”. Simpatizo muito
com o Partido Verde, seria o meu partido, se tivesse. Este deveria ser o
partido de todo o País, estimulados pelo verde da nossa bandeira, uma
espécie de alerta ao mundo, que destruiu suas florestas, enquanto nós
estamos destruindo agora. Não temos uma grita geral, de transformar isso em
literatura, como fez Lobato em relação ao nosso petróleo. Siron Franco é um
pintor engajado, isso não atrapalha sua criação.
A mídia costuma mostrá-lo como um ser mítico, em seu “templo”. Essa
imagem lhe agrada?
Absoluntamente, sou humano, demasiadamente humano. E vulnerável, por isso
me escondo o quanto posso. Não pela segurança no sentido moderno, no
sentido das idéias. Estamos caminhando à nossa revelia ao mundo da fome e da
rebeldia. Lovelock trabalhou na Nasa, e ele diz que há situações
irreversíveis, só se criasse um planeta sobressalente. Temos que pensar no
problema endêmico da fome. O problema é de origem demográfica, malthusiana.
Um controle de natalidade como na China. Se eu começar a falar, vão dizer
que sou reacionário, nem os religiosos iriam aceitar. Os religiosos dão
idéia do homem com um ser superior, não vejo isso. Que temos alma imortal...
Isso é perigoso. Acham pouco tanto sofrimento e se quer voltar? Mas pode-se
voltar como a página de um livro, como dizia o poeta Salieri.
Qual sua relação com outras artes, como a música e o cinema?
Muito grande, permanente, basta levar em conta. Nietzsche dizia que se não
existisse a música, a vida humana seria impossível. Meu pai tocava piano, o
que demonstra nele um empresário diferenciado. Vivi sempre entre os
clássicos, Vivaldi, Bach, Mozart. Continuo nesse mundo. Sem isso, para mim a
vida seria um exílio. Minha filha toca piano sempre no meu aniversário. No
mundo barroco também. Quer ver um erudito musical? Olívio Tavares de Araújo,
que escreveu sobre Mozart. E cinema, adoro cinema. Sou amigo de Fernando
Monteiro, romancista e cineasta pernambucano, admirador de Visconti, de
Pasolini. Sou grande admirador de Buñuel, Felinni, em bora tenha preferência
por Visconti. Estes filmes deveriam estar no cinema, mas os americanos não
aceitam, e eles não assinaram o Tratado de Kyoto. Quem vai botar o guizo no
rabo do gato? Eu é que não sou, mas estou falando.
E a pintura e a arte contemporânea?
Não vou exigir deste mundo que as pessoas tenham juízo e pintem como
pintores renascentistas. A sistemática do mundo moderno se fez para outras
formas de expressão, isso é com eles, não tenho nada com isso. Duchamp era
um frustrado que se automutilou. Aliás, ele e seu irmão, Jaques, também foi
um grande pintor. Mas Marcel foi pra Nova York fazer besteira, desacreditar
a pintura, não vejo mérito nenhum nele. Fez nascer uma série de pinturas que
querem macular o que já foi feito, isso me irrita, essa expressão manual
vai durar até o fim, será eterno como o homem, não é o computador, não é
nada. O caráter do traço da mão, da intrepretação real do homem, as coisas
essenciais serão o futuro, o velho homem de que nos fala a Bíblia, imutável.
Por que modificar os construtores de catedrais, da 9ª Sinfonia e da obra
inteira de Shakespeare? De Michelangelo, Van Gogh, Picasso? Vamos fazer este
mundo sobreviver, essa é a palavra básica. O último mural que fiz foi o
“Teorema”, nome de filme de Pasolini: tem um globo terreste que se projeta
no espaço e encontra um homem tombando. Seria Gaia se vingando do homem,
depois da le itura de Lovelock. Uma expressão natural das minhas formas
naturais de pensar. Ele está fixado no muro daqui. Existem idéias
abandonadas, é preciso retomá-las. A Pietá nunca havia saído do Vaticano. O
casal Kennedy fez com que ela saísse para Nova York. Um doidão qualquer,
italiano, leu a notícia, e entrou no Museu do Vaticano, levando um martelo e
danificou a imagem, irremediavelmente. O santo foi para ser mantido no
altar. Então entre os problemas prioritários da condição humana está a
sobrevivência. Quem vão ser nossos Noés? Quem reunirá os grupos humanos em
um mundo de hecatombes, trágico? E ainda se fala em guerra... Querem chover
no molhado, atear fogo ao paiol que está queimando.
E o mercado da arte?
Existe e é necessário no mundo moderno. Antes, os artistas produziam em
função de encomendas. Era “a serviço de”. As esculturas e pinturas não eram
assinadas, eram a serviço de algo maior. Hoje, existe uma individualidade
que exige a presença do autor, eu tenho que estar presente, pra saber quem é
o velhote... Mas não é o que digo, e sim o que faço, o meu trabalho, o que
importa. Talvez isso tenha que hibernar. El Greco passou 300 anos esquecidos
e se tornou um mestre.