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O Mago da Várzea

16/07/2008

 

 

Fotos: Foto: Kiko Barros

Francisco Brennand
 

HENRIQUE NUNES
Repórter

O escultor pernambucano Francisco Brennand ganha sua primeira individual em Fortaleza. No Museu de Arte Contemporânea do Dragão do Mar, “Brennand: uma introdução” renova a parceria com o crítico de arte Olívio Tavares de Araújo, um dos maiores especialistas em arte do País. A exposição celebra os 200 anos do Banco do Brasil e segue para Porto Alegre e Belo Horizonte. A seguir, Brennand fala sobre sua obra

Desde 98, o senhor expõe sob a curadoria de Olivio Tavares de Araújo. Como vem sendo esta parceria?
 
Dada a nossa amizade e aproximação nessa sucessão de exposições, há pontos de contato de absoluta concordância em relação à análise do meu trabalho em geral. O discordante é natural de pessoa a pessoa. Ele dá uma importância enorme às minhas esculturas, e não tem o mesmo  entusiasmo em relação à pintura. Eu sou o contrário. Sou um pintor com coração de escultor. Todos meus grandes prêmios foram de pintura desde o Salão do Estado de Pernambuco, há 20 anos. 
 
Mas hoje  sua obra se tornou mais reconhecida por suas esculturas em cerâmica.
 
Sou um escultor que trabalha com cerâmica, não aceito que digam que sou ceramista. Isso vem de minha família,  que  tinha uma industria de cerâmica,  uma estrutura de 1917,  onde fiz meu ateliê, conhecido como Oficina de Cerâmica Francisco Brennand e ainda, Templo da Várzea. Eu e meus irmãos brincávamos nessa fábrica de telha de tijolos, um lugar misterioso, que estava em ruínas, a fábrica havia sido abandonada. Em novembro de 1971, resolvi recompor, reconstruir tudo. A ruína foi o próprio projeto. Não queria algo racional, mas dentro de minhas recordações, de uma maneira fetichista, usando colunas de diferentes alturas, desiguais, fora de qualquer ortodoxia arquitetônica, então a magia permaneceu. O que sei pela expressão de quem me visita. São construções antigas onde mantenho as cerâmicas de seu interior. Tem galpões enormes com mais de 100 metros de comprimento por 13 a 14 metros de altura.
 
Uma das características de suas esculturas é uma sexualidade totêmica, sem artifícios morais.
 
Este é o termo. Eles têm uma pesada carga sexual, uma rudeza tão grande como o parto. Reporta às origens, ao enigma da reprodução. As coisas são eternas porque se reproduzem. Uma quantidade enorme de ovos, algumas tocadas, outras quebradas, de onde saem animas de toda espécie. Na mitologia antiga, se pressupunha que o homem teria nascido do ovo. Os falos também estariam incluídos na sistemática reprodutiva, mas com liberdade enorme. Trabalho com cerâmica, mas não sou realista, não com trabalho com a forma real , fotográfica de uma realidade passageira, mas com os aspectos múltiplos da realidade.
 
Em suas esculturas, há também uma ênfase em mulheres sofridas e mitos gregos e bíblicos. Fale sobre esses aspectos da sua arte.
 
Preocupação central  é humana, a fragilidade e a miséria humana. Passeio através de uma simbologia enorme de diferentes mitos, sobretudo gregos, ligados à nossa civilização, a Grécia é o mundo moderno. Figuras desafortunadas, sobretudo m relação às mulheres,  não porque seja a parte mais fraca: é porque elas são muito mais sensíveis, ligadas à natureza. Elas permanecem e são a matriz necessária à nossa sobrevivência. Também trato dos mitos bíblicos, mas tudo isso com uma liberdade censurável, porque não estão ligados a ortodoxias religiosas.  Faço uma indagação do sagrado, uma indagação panteísta. Faço temas como a Torre de Babel com formas orgânicas, bundas e falos superpostos. Para resumir, não existem torres inocentes, as torres não são inocentes, a torre, em si,  já era uma representação, no caso de Babel,  do pecado da soberba. E assim podemos chegar às torres gêmeas no mundo moderno, construídas por soberbos e destruídas por demônios.
 
Essa visão vem de uma formação humanista.
 
Estudei na Europa, minha ligação com escritores é muito intensa, desde a juventude.  Inclusive sou um grande amigo de um cearense dos Inhamuns, o poeta César Leal, que vive há muitos anos aqui em Recife. Convivi com escritores de uma maneira geral, Gilberto Freyre e muitos outros. Essa influência literária sempre me acompanhou,  por isso mesmo, mantenho um diário desde 1949, quando fiz minha primeira viagem à Europa. Muitos pintores escreveram diários,  com observações a respeito de quadros.  Eu escrevo em cadernos.  Não digito, mas faço depois de uma maneira mais correta. Dizem os ortodoxos que não deve ser corrigido, mas não tenho a pretensão de ser escritor. A correção é necessária.  Acho correto do ponto de vista formal. Modifico palavras. Ainda  hoje pego textos do início deste diário e modifico palavras, não situações, até para me surpreender.
 
Você publicará este diário?
 
Depende da capacidade e do convite de uma editora qualquer, não quero forçar a barra. Estive na iminência de publicar pela Topbooks, quase sairia, mas não caminhou.
 
O senhor usa linguagem poética, desenhos, ficção?
 
Poesia, não. Desenhos sim, mas não muitos. Não quis fazer algo muito ilustrado. Inventei uma nova forma para uma expressão que não seria só a minha, com diferentes alter-egos, pessoas quase ficcionais, que darão a esse diário uma expressão maior, uma curiosidade maior. De 49 a 99, não dei opiniões políticas, como se estivesse numa plataforma espacial, numa torre de marfim, me atendo mais sobre  os problemas da arte. De 99 em diante, faço outros personagens falarem abertamente sobre o mundo moderno, o dia-a-dia.
 
O que motivou esta ruptura?
 
Achava necessário, são tantas as opiniões contraditórias a meu respeito, opiniões políticas e morais que não pratico, uma série de ilações... Antes que me castiguem, me manifesto sobre coisas corriqueiras e sobretudo sobre política, não há notícia que eu não faça uma interpretação. As notícias são espetáculos. O suposto seqüestro desta colombiana, Ingrid Betancourt, mais francesa que colombiana, por isso que o Sarkozy tá metido nesta encrenca, é um conto de fadas, as coisas não aconteceram assim. Eles não seriam ludibriados assim. E o candidato à Presidência (John McCain), por coincidência estava presente exatamente neste dia... Quando pensei em publicar esse meu caderno, que não gostaria de chamar nem de jornal, nem de diário, pensei em chamá-lo de “Cadernos Arábicos”, porque falava muito em mulheres, como se eu fosse um sultão. Quando Sérgio Lacerda, diretor da editora Nova Fronteira,  era um entusiasta do diário, mas ele morreu muito jovem. Mas foi bom porque era um material em formação ainda. Depois modifiquei, passei a chamar “O nome do livro” e de “O nome do outro”, o material de 99 pra cá. Essa outra pessoa fala exatamente como gostaria de ter falado. Entraram personagens ficcionais, por exemplo, precisava de alguém que falasse de política internacional. É difícil entrar num assunto distante, já é difícil penetrar nos meandros da política brasileira, sobretudo no seio dos oito grandes países. Você passa um pouco ao lado da verdade, o que é a mesma coisa que mentir. Queria uma pessoa que estivesse dentro das estruturas, falasse esta linguagem. Por que a Amazônia não foi tratada por outros. A Amazônia foi retalhada e dividida por outras pessoas que não nós próprios brasileiros, os sucessivos governos estão estarrecidos com isso. Em uma exposição minha recente em Manaus, falava-se todas as línguas. Esses índios de Roraima estão na Europa, com o Papa. Daqui a pouco vamos ter um novo Kosovo. Eles estão sendo conduzidos para se chegar a um resultado qualquer, esta é a verdade da real política. Quanto aos desenhos, o diário de 58 é cheio de desenhos, e de textos manuscritos.  Aconteceu mais,  mas não queria encher meu diário com ilustrações, que acredito terá um certo valor literário. Não quero transformá-lo num álbum de desenhos nem num almanaque. No dia que falo de Ionescu, não vou botar a fotografia dele. Essa pesquisa fica a critério do leitor. Tenho idéia de publicar em três volumes. Digitei 1000 folhas, cada um deve ficar com 250 folhas,  não quero fazer um calhamaço. Não será o diário todo, uma seleção, mas o que está manuscrito fica. Não quero me transformar num chato interessante. Não será um diário de viagem, embora a Europa seja um mundo fantástico.
 
Como foi sua convivência com o Velho Continente?
 
Morei em Paris e viajei a Espanha, Itália, também morei na Itália, numa fábrica na região da Úmbria, onde aconteceu a grande civilização etrusca. Em 53, voltei definitivamente ao Brasil. As viagens posteriores foram apenas para exposições. Nunca turísticas, nunca fiz uma viagem turística, nem no Brasil, nem na Europa, nem nos Estados Unidos, onde fui em 1993 receber o (Prêmio Interamericano de Cultura) Gabriela Mistral (concedido pela Organização dos Estados Americanos).  Além de Volpi, do Brasil, só eu ganhei esse prêmio que homenageia a poetisa chilena que ganhou o primeiro Nobel de Literatura. O Nobel esqueceu dos músicos, dos artista  plásticos. A outra viagem, foi para minha operação de próstata.
 
Você fala no sofrimento, na dor, como inspiração.
 
Joseph Conrad, autor “do Apocalipse Now”, falava no final de sua obra: “o horror, o horror...”. O horror existencial. Não há nada que possa corrigir nossa miséria  humana, nossa fragilidade, insensatez. Temos o retrato do mundo. Somos regidos pela tolice, pela danação. Não existe uma terceira forma. Não sou palmatória do mundo, nem desmancha prazer. Não sou grande freqüentador de festas, mas compreendi as festas no dia que compreendi o (escritor mexicano) Octavio Paz, que diz que a festa é um desafio dos homens aos deuses.
 
Você resistiu mas acabou usando a cerâmica, mesma atividade de seu pai. Como foi esse processo?
 
Há um preconceito típico do século XIX, em torno de “artes menores e maiores”. Cerâmica, gravura, tudo que não fosse escultura de mármore, pintura em óleo, era menor, era arte aplicada. Apesar de ter nascido no universo da cerâmica, meu pai era fascinado e colecionador de porcelanas, resisti, pintei primeiro em óleo sobre tela. Não queria fazer esculturas. Fiz apenas algumas peças de barro. Mas quase como um castigo, chegando a Paris, a convite de Cícero Dias, a primeira exposição que vi foi uma de cerâmica de Picasso, de quando ele viveu no Mediterrâneo entre 46 a 49. Então, em fevereiro de 49, tinha uma exposição de cerâmicas de Picasso. Isso foi uma pancada na cabeça. Em resumo: eu era um idiota total, um ignorante. Picasso, depois, Gaudí,  Gauguin. Não existem cartas de nobreza na arte. Logo que cheguei ao Brasil trabalhei com murais. Não ia trabalhar logo com volumes, numa mudança com suporte. As encomendas de painéis ou murais começaram a me fazer essas diferenças, às vezes bastante acentuadas. Por exemplo, os formatos de um quadro a óleo tem três metros por dois, mas um mural comum tem 20, 30, 100 metros quadrados. Em 61, pintei um mural em Miami, com 700 metros quadrados. Esse processo de ampliação de formato me levava a ter problema para a escolha de motivos. A figura humana depois de um certo momento de gigantismo fica grotesca. Mesmo os egípcios acabavam no corpo humano com cabeça de bicho. Os próprios insetos ampliados se transformam em monstros. Eu utilizei o mundo vegetal. Nesta propriedade, temos remanescentes da Mata Atlântica, não era algo imaginário, era a realidade onde nasci. Isso deu certo. Fiz murais gigantescos. Foi um ato de pintura, todas as vezes que pego um pincel para  pintar um jarro, um mural, é um ato de pintura. Também como muralista não existe ninguém que tenha feito mais murais que eu. E isso é um ato de pintura. Os afrescos renascentistas não eram pintura? Por influência dos mexicanos, vários artistas voltaram à tradição renascentista do mural. Eles influenciaram Di Cavalcanti, Clóvis Praciano, Caribé, Portinari... Mas não me influenciaram, admiro muito mas não me influenciaram como motivo. Fui para o mundo vegetal, escapei do mundo político. Como Orwell fez a “Revolução dos Bichos”, fiz a “Revolução dos Vegetais”.
 
Era um momento político conturbado. Como você lidou com as críticas inevitáveis?
 
Picasso, Portinari, Niemeyer achavam normal que a arte fosse de esquerda. Nunca fui de esquerda nem de direita, o homem é muito mais que isso. Fui acusado por ter um latifúndio, pelo meu nascimento. Lidei de uma maneira muito simples, trabalhei como Chefe da Casa Civil de Miguel Arraes pouco antes dele ser preso. André Malraux, Ministro da Cultura francês, tinha um projeto  casa de cultura em presídios. Com colaboração de Lina Bo Bardi, elaborei um projeto semelhante em Recife. Não tínhamos preconceito. Também fui grande amigo de Violeta Arraes e seu marido. E de muitos intelectuais como o antropólogo Olivio Xavier, o poeta César Leal. Mas veio a revolução e esse projeto acabou.
 
E sua relação com a cultura popular?
 
Isso está muito ligado hoje ao espírito do meu grande amigo Ariano Suassuna. Fala-se em pintores e escultores primitivos, mas não existe arquitetura primitiva. A choupana não fere a ortodoxia da arquitetura.
 
Gaudí mudou isso.
 
Gaudí, o grande arquiteto da modernidade. Le Corbisier fez um prefácio do livro do Gaudí, dizendo que ele foi o grande arquiteto da modernidade. A minha surpresa foi enorme quando o vi. Meus mestres de pintura não falavam dele. Quem me deu os primeiros rudimentos de Gaudí foi um motorista de táxi. Uma das razões de eu ter admitido fazer a reforma deste conjunto à maneira do que os europeus chamam de arqueologia industrial foi ter conhecido Gaudí,  um arquiteto de gênio. Eu fiz uma reforma prevenida pelo fantasma dele. Gaudí é admirado por metade dos arquitetos modernos, algo que passei a refletir  na minha obra. O uso da cerâmica que ele usou imoderadamente, pedaços de azulejo. Ele não tinha pretensão de fazer as pastilhas como os romanos, usando cacos, para fazer coisas monumentais, maravilhosas, uma liberdade de fazer imensa. Tudo aquilo que ele desenhou é enormemente original. Deu impulso e um caráter de revolução à arquitetura da época. Ele não quebrou tradição nenhuma, está embutido no gótico e na arquitetura oriental. De qualquer forma, foi como se descobrisse uma Atlântida, uma civilização perdida, ele me emocionou em todos os sentidos, um arquiteto que tinha o que glorificar, não deve existir arquitetura sem ter o que glorificar.
 
Em seu estúdio, há uma frase de Wittgenstein sobre isso:  “a arquitetura imortaliza e glorifica, por isso não pode haver arquitetura na qual não haja nada para glorificar”. E a arquitetura e a filosofia também fazem parte de seu cenário criativo.
 
Isso é capital. Dois catalães disseram que  isso era fascista porque ele foi colega de Hitler. Sou muito ligado a Plotino, todas as coisas se confundem, entre todas as coisas há uma força misteriosa que nos une. Temos dificuldades em relação ao planeta porque nos preocupamos com tolices. O planeta está em um estado tão avançado de destruição, de iminente desastre, que  deveria ser preocupação de todos os países se buscar um espaço de proteção ambiental. Os usineiros não respeitavam nada disso, meu pai preservou. Para chegar até aqui, você passa por uma floresta de Mata Atlântica, a 20 quilômetros do Marco Zero. Em relação ao que glorificar, de início eu pensava que era uma fábrica abandonada. Meu pai foi pioneiro na indústria nordestina de cerâmica, a fábrica estava caindo e ele estava vivo. Era uma homenagem a meu velho pai, Ricardo Lacerda de Almeida Brennand (de origem inglesa, meu quarto avô veio de Manchester, chamava-se Eduard)....  A glorificação partiu da obrigação de , como em São Francisco, talvez por meu nome ser Francisco de Paula: “Restaura-me a minha igreja”. Ele levou ao pé da letra essa visão. E eu também levei isso ao pé da letra, eu Francisco de Paula. Toda essa região da Várzea estava ligada à história pernambucana: André Vidal Negreiros e João Fernandes Vieira, da batalha de Guararapes, vieram destas terras, no século XVII. A partir daí as diferentes revoltas... Cheguei a pintar com grande ênfase o mural da Batalha de Guararapes, no governo nacionalista de Jânio Quadros, por quem eu nutria uma grande admiração.
 
Como foi ese processo de redescoberta da cerâmica em seus galpões, inclusive com uma produção de azulejos semi-artesanais, paralela à criação?
 
Eu trabalhei em alguns painéis em cima de azulejos, distinto do ladrilho cerâmico, mais complexo. Fiz alguns murais sobre azulejos depois a cerâmica de mesa, queimada a 1400 graus centígrados, ficou parecida com a cerâmica de Joan Miró. Em 58, fiz um grande mural que está no porto de Guararapes, em Recife, uma exaltação à vida no campo, chama-se “Pastoral”, com pastores tocando flauta, mas tem a nossa mata altântica e carro de boi.  Em seguida, em 61, fiz o grande revestimento desse mural de Miami, pintado em azulejos, que se fosse pintado em cerâmica talvez o peso fosse enorme... Em 71, fiz o mural da Bataalha, encomendado por dois mineiros, do Banco da Lavoura de Minas Gerais, Gilberto e Aloísio Farias. Eles me encomendaram  e insistiram no tema da Batalha dos Guararapes. E pintei um mural de 33 m por 2,5 metros de cumprimento, um mural exterior. A leitura dele é feita por quem passeia na calçada, sobre a expulsão dos holandeses. Um simulacro claro, não sou como Vitor Meireles que fez à maneira do século XIX. Uso a estética da tapeçaria... No centro do mural, tem um soldado brasileiro que carega a bandeira, mas a bandeira da república atual, numa antecipação da nacionalidade. A partir de Guararapes tivemos um endereço certo, de  Brasil. Este mural partiu daqui da Várzea. A Várzea sempre é a referência permanente.
 
É possível dizer que sua obra guarda, em comum com a arte armorial, guarda uma presença telúrica?
 
Existem elementos de identificação, mas não tinha nada a ver com o movimento armorial, ele é rigorosamente brasileiro. Eu acredito nas culturas básicas do mundo, mesopotâmica e grega, que deve à Ásia Menor, e à do Norte, dos vickings. Somos descendentes diretos da cultura mediterrânea, do desenvolvimento de Roma, até chegar ao neo-clacissimo, ligado, claro, às características de um país tropical. Ariano quer acreditar numa cultura autóctone... Somos um povo bastardo, miscigenado,  taí a nossa grandeza. Não sou muito sensível à heráldica, por exemplo. Meu pai estudava pelo lado da família pernambucana dele. Essa preocupação de Ariano, ligada à estética, está no Armorial, agora, já existia nas minhas pinturas, anterior, ao armorial, já existiam elementos simbólicos de uma pintura plana, de claro-escuro, algo que deve ter influenciado Ariano, somos mutuamente ligados. Mas esse mundo da sexualidade irrompeu violentamente, sem nada a ver com o Armorial. Mais ligada à condição humana. Uma das coisas mais ridículas que conheço, desprovidas de sentido, é a idéia da criatura humana conseguir modificar a natureza fazendo uma revolução sexual. Não há modificação nenhuma, somos o que há de ser, como está no Eclesiastes. O judeu Carlo Levi, autor de “O Cristo  parou em Éboli”, um texto famoso, dizia, logo depois da guerra:  “o futuro tem o coração antigo”, o futuro do homem, o homem conta a sua história.
 
Você acredita haver uma  relação mítica sua com os fornos, a manipulação da argila?
 
Toda a minha juventude, observei a pesquisa de meu pai em torno de argilas ideais. Ele ia até Oeiras, no Piauí, trazia inúmeros técnicos estrangeiros que passaram pelas fábricas. Buscava informações de todo o leque tecnológico da cerâmica, essa gente com o conhecimento familiar e essa contribuição estrangeira, é claro que por tabela eu aprenderia alguma coisa. Não por preocupação comercial, mas pelo contato. Então, quando me propus a levar adiante esta fábrica, tinha que saber como lidar com estes fornos, e teria que produzir alguma coisa. São fornos que trabalham 24  horas. Tenho 100 operários, uma pequena industria, artesanal, de produção pequeníssima, apenas o bastante para proporcionar a continuidade de minha obra, afinal, não sou financiado por ninguém. Tudo por uma obsessão. É até de estranhar que não chegue às raias da loucura, uma obra visionária pra glorificar, inclusive a arte. A arte é um monumento. Então, a produção artesanal vem para ajudar, seqüenciar, que não teria de onde tirar dinheiro para poder manter isso por 37 anos. O porcelanato invadiu o Brasil. Os arquitetos  usam material que vem da Itália. A cerâmica do Brasil era material de banheiro. Eu trouxe a cerâmica para a sala de visita e para as fachadas. Daí em diante, começaram as imitações. Tive prejuízos por conta disso. Roubando o estilo, a assinatura. Mas sempre pareceu que eu era poderoso, “rico”... Falso rico, quem tem fortuna é minha família , não sou eu.

Apesar disso, sua determinação continua a mesma.
 
A determinação continua a mesma, com a mesma força. Tenho 81 anos e continuo com planos. Minha filha perguntou porque estou reformando um galpão. Eu disse, para pintar quadros grandes. Os ateliês de escultura não têm nada a ver com os de pintura, que não pode ter poeira, sujeira, a não ser da própria tinta. Quero ter um ateliê onde possa trabalhar em quadros grandes. Em 1972, fiz uma série de quadros chamada “Série Amazônica”, figuras míticas de serpentes e animais não identificáveis, ampliados para uma escala enorme, esses quadros foram para a Bienal. Nos jornais, pela minha curiosidade, vejo muitas fotografias de queimadas. Estou colecionando essas imagens e pensando em fazer grandes pinturas em caráter quase abstrato, de paisagens de queimada vistas de  dois mil metros de altura. Remete a Frans Krajcberg, esse cara deveria ter uma estátua, um monumento em praça pública, ele se antecipou a todos nós. Estamos rendidos ou vencidos, ninguém tem coragem de falar. Ninguém fala sobre a Amazônia. Ariano não fala sobre a Amazônia. Ariano é um grande homem, no sentido genérico. A pátria não tem mais reação. Tiraram Marina Silva do Ministério, mas aquele de colete, é uma figura copacabanal, parece aquele professor de Harward, Mangabeira Unger, isso que não aceito e caio em cima, estou ficando um Gregório de Matos! E o mundo se acaba.
 
Fale sobre essas 37 esculturas, 13 pinturas e  cinco desenhos da exposição, que vão de 1949 a 2002.
 
Os desenhos são de 49 em cima dos nus femininos, uma tradição que vem da Grécia, nada de novo sobre a Terra. Nós nos repitimos. As pinturas têm todo um recomeço. Cada quadro que pinto é como se fosse um primeiro. Não sou um pintor processual. Van Gogh dizia: “o que me salva, graças a Deus, é que nunca aprendi a pintar”. Ele quer dizer que existe uma coisa superior a saber fazer. Elementos do  ofício e uma força que vem do cosmos, da nossa intuição, do eixo do mundo. Picasso diz, mais além: “O que me salva é que cada vez eu faço pior”. Fazer pior não quer dizer que seja péssimo, é que o tropeço é necessário. O pintor que se encontra cedo é processual, se repete indefinidamente, mesmo o Ademir Martins, um grande. Fazendo cada vez melhor, mas isso o estagna artisticamete. Isso que eu evito, esqueço que pintei centenas de outros quadros. Não me baseio no que já fiz. Você não deve estar preso ao que fez, mas ao que vai fazer.
 
A exposição é uma “introdução” à sua obra. Como ela foi composta na Oficina da Várzea e no Parque das Esculturas?
 
Sou um artista de 81 anos e ainda sou sujeito a contravérsias, ninguém sabe quem sou, o que faço, sou conhecido mas não pela minha obra. Fiz uma coluna de cristal em homenagem aos 500 anos do Brasil, disseram que eram enormes falos, tudo são falos.
 
Essa visão da sua obra o desagrada?

Evidentente, é um rótulo explorado no mal sentido, no sentido negativo. É curioso que a nossa sexualidade verdadeiramente enigmática seja matéria de riso. Noventa por cento das anedotas que se conta são ligadas a sexo. Não sabemos como denominar as nossas genitálias. Tudo é de um grotesco atroz. Desde muito cedo, somos instruídos a não acertar. Se descobríssemos a origem do sexo, da nossa sexualidade, seria descobrir a origem do universo. Teria interesses religiosos que fazem o impossível para evitar abusos e cair na revolução sexual, que deu origem à promiscuidade e bagunçou o coreto. Hoje é preciso apólice de seguro para fazer sexo seguro. Acaba sendo melhor não fazê-lo.
 
Como funciona sua visão religiosa?

 
Sou católico, admirador de João Paulo e desse papa atual, um teólogo. Mas eles procuram a ortodoxia religiosa, não existe esse negócio de ala progressista, consevadora, existe a doutrina. Eles não podem ceder, estão no papel deles. Mas enquanto isso, estamos com a ameaça da fome e da sede. Pequim terá falta de água nas Olimpiadas. Esses problemas eu não tocava há dez anos.
 
O que o motivou?
 
Talvez o longo silêncio, era necesário esclarecer. Sou bastante opinativo, o que tem a possibilidade de erro, mas acho que não devo silenciar. Só um ou outro fala da Amazônia, não vejo uma grande voz brasileira tratando deste assunto com a seriedade que merecia. Não vejo uma arregimentação da elite brasileira sobre esse assunto, que está se transformando numa necessidade urgente.
 
E a politica?
 
Não tenho partidos, você deve se engajar a uma idéia maior da condição humana que deve sobreviver a todas as intempéries. Coisas que estão acontecendo agora e se aproximam do final até o fim do século. Li um livro do cientista inglês , James Lovelock, “A Vingança de Gaia”. Simpatizo muito com o Partido Verde, seria o meu partido, se tivesse. Este deveria ser  o partido de todo o País, estimulados pelo verde da nossa bandeira, uma espécie de alerta ao mundo, que destruiu suas florestas, enquanto nós estamos destruindo agora. Não temos uma grita geral, de transformar isso em literatura, como fez Lobato em relação ao nosso petróleo. Siron Franco é um pintor engajado, isso não atrapalha sua criação.
 
A mídia costuma mostrá-lo como um ser mítico, em seu “templo”.  Essa imagem lhe agrada?
 
Absoluntamente, sou humano, demasiadamente humano. E vulnerável, por isso me  escondo o quanto posso. Não pela segurança no sentido moderno, no sentido das idéias. Estamos caminhando à nossa revelia ao mundo da fome e da rebeldia. Lovelock trabalhou na Nasa, e ele diz que há situações irreversíveis, só se criasse um planeta sobressalente. Temos que pensar no problema endêmico da fome. O problema é de origem demográfica, malthusiana. Um controle de natalidade como na China. Se eu começar a falar, vão dizer que sou reacionário, nem os religiosos iriam aceitar. Os religiosos dão idéia do homem com um ser superior, não vejo isso. Que temos alma imortal... Isso é perigoso. Acham pouco tanto sofrimento e se quer voltar? Mas pode-se voltar como a página de um livro, como dizia o poeta Salieri.
 
Qual sua relação com outras artes, como a música e o cinema?
 
Muito grande, permanente, basta levar em conta. Nietzsche dizia que  se não existisse a música, a vida humana seria impossível. Meu pai tocava piano, o que demonstra nele um empresário diferenciado. Vivi sempre entre os clássicos, Vivaldi, Bach, Mozart. Continuo nesse mundo. Sem isso, para mim a vida seria um exílio. Minha filha toca piano sempre no meu aniversário. No mundo barroco também. Quer ver um erudito musical? Olívio Tavares de Araújo, que escreveu sobre Mozart. E cinema, adoro cinema. Sou amigo de Fernando Monteiro, romancista e cineasta pernambucano, admirador de Visconti, de Pasolini. Sou grande admirador de Buñuel, Felinni, em bora tenha preferência por Visconti. Estes filmes deveriam estar no cinema, mas os americanos não aceitam, e eles não assinaram o Tratado de Kyoto. Quem vai botar o guizo no rabo do gato? Eu é que não sou, mas estou falando.
 
E a pintura e a arte contemporânea?

Não vou exigir deste mundo que as pessoas tenham juízo e  pintem como pintores renascentistas. A sistemática do mundo moderno se fez para outras formas de expressão, isso é com eles, não tenho nada com isso. Duchamp era um frustrado que se automutilou. Aliás, ele e seu irmão, Jaques, também foi um grande pintor. Mas Marcel foi pra Nova York fazer besteira, desacreditar a pintura, não vejo mérito nenhum nele. Fez nascer uma série de pinturas que querem  macular o que já foi feito, isso me irrita, essa expressão manual vai durar até o fim, será eterno como o homem, não é o computador, não é nada.  O caráter do traço da mão, da intrepretação real do homem, as coisas essenciais serão o futuro, o velho homem de que nos fala a Bíblia, imutável. Por que modificar os construtores de catedrais, da 9ª Sinfonia e da obra inteira de Shakespeare? De Michelangelo, Van Gogh, Picasso? Vamos fazer este mundo sobreviver, essa é a palavra básica. O último mural que fiz foi o “Teorema”, nome de filme de Pasolini: tem um globo terreste que se projeta no espaço e encontra um  homem tombando. Seria Gaia se vingando do homem, depois da le itura de Lovelock. Uma expressão natural das minhas formas naturais de pensar. Ele está fixado no muro daqui. Existem idéias abandonadas, é preciso retomá-las. A Pietá nunca havia saído do Vaticano. O casal Kennedy fez com que ela saísse para Nova  York. Um doidão qualquer, italiano, leu a notícia, e entrou no Museu do Vaticano, levando um martelo e danificou a imagem, irremediavelmente. O santo foi para ser mantido no altar. Então entre os problemas prioritários da condição humana está a sobrevivência. Quem vão ser nossos Noés? Quem reunirá os grupos humanos em um mundo de hecatombes, trágico? E ainda se fala em guerra... Querem chover no molhado, atear fogo ao paiol que está queimando.
 
E o mercado da arte?

 
Existe e é necessário no mundo moderno. Antes, os artistas produziam em função de encomendas. Era “a serviço de”. As esculturas e pinturas não eram assinadas, eram a serviço de algo maior. Hoje, existe uma individualidade que exige a presença do autor, eu tenho que estar presente, pra saber quem é o velhote... Mas não é o que digo, e sim o que faço, o meu trabalho, o que importa. Talvez isso tenha que hibernar. El Greco passou 300 anos esquecidos e se tornou um mestre.

(© Diário do Nordeste)

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