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O poeta Solano Trindade
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Poeta
pernambucano que flagrou a fome no País e foi perseguido pelos seus versos é
lembrado em eventos culturais e em documentário que estréia hoje
Schneider Carpeggiani
Liberto Trindade
tinha oito anos quando a polícia invadiu sua casa. Com a violência da ação,
caiu no chão e diz que nunca mais voltou a ser uma criança (em suas próprias
palavras) “normal”. Passou a sofrer de dores de cabeça e “de distúrbios” que
ele mal consegue explicar. Eram os anos 40, auge do Governo de Gaspar Dutra.
A ação foi motivada por um punhado de versos infames do seu pai, Solano
(1908/1974), que teimou em ver o que não devia, nas constantes viagens que
fazia entre Rio de Janeiro e Caxias – fome. A paisagem da janela do trem
inspirou versos em que as palavras ressoam como o barulho da máquina
correndo sobre os trilhos: “estação de Caxias/ de novo a dizer/ de novo a
correr/ tem gente com fome/ tem gente com fome/ tem gente com fome.”
O flagra que
Solano Trindade deu na fome renderia barulho ainda por mais algumas décadas.
O poema Tem gente com fome, em 1973, foi musicado pelo Secos & Molhados,
colorido grupo que contrastava com os cinzentos anos vividos pelo Brasil. A
censura proibiu a veiculação da faixa. E proibiu repetidamente até que em
1979 o ex-vocalista Ney Matogrosso conseguiu gravá-la no álbum Seu tipo.
“Eles liberaram a música do nada”, lembrou o cantor, em entrevista para o
documentário Solano Trindade – 100 anos, vídeo de 35 minutos da dupla
Alessandro Guedes e Helder Vieira.
O
documentário tem estréia dupla hoje, aniversário dos 100 anos do escritor,
ativista pelos direitos negros, ator, teatrólogo e artista plástico. O
primeiro acontece no auditório da Livraria Cultura, às 19h. O segundo, no
Espaço dos Pontos de Cultura, dentro do Festival de Inverno de Garanhuns, às
21h.
O projeto da
dupla revela ao público, pela primeira vez, detalhes sobre a vida e a luta
de Solano. Entre eles, a citada violência sofrida por Liberto, quando da
invasão da polícia, e uma conversa com D. Maria da Penha, 98 anos, única
irmã do poeta a continuar morando no Recife, no bairro da Cabanga. “Foi
muito difícil juntar todos os pedaços da vida dele, porque não há livro dele
ou sobre ele nas livrarias e as informações são muito desencontradas. Só
conseguimos montar as peças a partir de depoimentos orais”, explica Helder.
Um dos depoimentos mais fortes do vídeo é do ator Sérgio Mamberti, que
conviveu com Solano e o considera “seu mestre”.
O
documentário que estréia hoje é apenas a primeira parte do projeto de
Helder/Alessandro. Aprovado pela Lei Rouanet e em processo de captação de
recursos, o passo seguinte é passar o vídeo para película e fazer gravações
fora do Estado. Em Garanhuns, junto com a exibição do documentário, haverá
um recital poético com a presença de Fernando Chile, Valmir Jordão, Cida
Pedrosa, Silvana Menezes, Ceça e Rogério Barata. Será uma edição especial do
projeto Quartas literárias. Cida Pedrosa fará uma leitura de uma carta que
ela escreveu para Solano, que o JC publica com exclusividade (ver ao lado).
Solano será o
homenageado do festival A letra e a voz, que a PCR realiza mês que vem. Na
ocasião, a Fundação de Cultura lança livro de poemas de Solano falando de
Pernambuco, organizado pela escritora Inaldete Pinheiro. A última edição das
obras do poeta foi de 2001, reunindo seus quatro livros e hoje esgotada. A
Fliporto, marcada para novembro, presta homenagem ao escritor com debate
entre Inaldete e Cláudia Cordeiro, viúva de Alberto da Cunha Melo, grande
estudioso da obra de Solano.
Um
dos temas mais polêmicos da literatura é o da existência de poéticas
características de certos grupos. Haveria uma escrita feminina, gay ou
negra? “É claro que existe uma literatura negra. A nossa literatura
procura recontar por um outro ponto de vista fatos históricos”, é o que
aponta o professor colaborador no mestrado em letras da UFPI, Elio
Ferreira. Em sua tese de doutorado, ele comparou Solano Trindade com o
poeta norte-americano Langston Hughes.
“Nossa idéia
do Brasil foi construída a partir da imagem do índio durante o
romantismo. Autores como Solano trouxeram a imagem do negro para a
formação do País”, aponta Elio. “É claro que existe uma literatura
negra, que é um texto que fala do lugar do negro na sociedade”, acredita
o psicólogo, músico e escritor Lepê Correia. “Apesar da poesia de Solano
ser concreta e política, ele não deixava de ser suave, de tratar das
coisas com carinho. Ele cantava a mulher, as crianças, o maracatu. A
poesia dele não se limitava apenas ao negro e dava voz também a garis,
prostitutas...”, continua Lepê. Para a escritora Inaldete Pinheiro,
Solano foi pioneiro ao assumir que era negro na literatura brasileira.
A
escritora Cida Pedrosa complementa que, apesar da importância da
militância de Solano, não “é possível esquecer que ele foi um poeta
capaz de imagens muito fortes, um grande autor.” (S.C.)
(©
JC Online)