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A palavra de Lampião

26/07/2008

 

 

Foto: Benjamin Abrahão/Aba Film Sociedade Amigos do Cangaço

Lampião dizia que sua saga no cangaço era para vingar a morte dos pais
 

Pedro Rocha 
da Redação

A republicação de uma entrevista com o próprio Virgolino, veiculada pelo O POVO em 1982

A manchete de capa do O POVO do dia 29 de julho de 1938 pôs fim à carreira de Lampião no cangaço para seus leitores - "Decapitados Lampeão, sua mulher e nove comparsas". Depois de boatos e factóides sobre a morte de Lampião, ele de fato estava morto. Nas duas décadas anteriores, ele havia sido um dos principais assuntos da imprensa, principalmente a nordestina, estampando sua imagem em jornais ao mesmo tempo em que se esgueirava das forças policiais pelos descaminhos da caatinga. 

A notícia da morte seguiu em uma cascata de subtítulos em fontes diversas: "Maria Bonita combateu até morrer", "As cabeças dos bandidos esperadas em Maceió", "Vários soldados feridos e um morto" e "Muito dinheiro, armas automáticas e Munições em Poder dos cangaceiros". Por fim, uma chamada para uma entrevista com o interventor de Sergipe, Eronides de Carvalho. 

Dez anos antes, Lampião e o cangaço haviam sido os primeiros assuntos a freqüentar sistematicamente as páginas do O POVO, recém inaugurado. O combate às ações truculentas da polícia na repressão contra o cangaço tornou-se a primeira bandeira ideológica do jornal, e a imagem de cinco cangaceiros foi a primeira fotografia a ser publicada, ainda em 1928. 

Os pontos altos dessa exibição de Lampião na imprensa nordestina foram as poucas entrevistas que concedeu, uma delas publicada no próprio O POVO em 4 de junho de 1928, simultaneamente ao jornal pernambucano A Noite, veículo para o qual a entrevista foi originalmente oferecida por José Alves Feitosa. Virgolino tinha 30 anos, já possuía fama e parecia saber que a vingança da morte dos pais era um bom motivo a ser dado para sua vida no cangaço. Eis a entrevista, reproduzida aqui com a grafia original utilizada na época. 


O MONARCHA SELVAGEM DOS SERTÕES 
Os dados e as informações sobre que escrevemos esta reportagem foram colhidos do próprio Lampeão pelo sr. José Alves Feitosa, que há semanas, no alto sertão, com elle conversou demoradamente. 

Offerecendo à A Noite essas notas interessantíssimas, o sr. Feitosa, offertamo-la, nós, aos nossos gentilíssimos leitores, a quem não queremos mais poupar o prazer curioso de sentir um bocado da pyschologia pittoresca e da vida romanesca do jaguar terrível dos sertões. 

No pé da serra 
Cabia o crepusculo sobre o escampado arido e esbrazeado daquele recanto sertanejo do estado do Ceará, no pé da serra do Araripe: o engenho de rapadura Boa-Vista, a cinco léguas da cidade de Missão Velha, quando o sr. José Alves Feitosa ali chegou. 

Um crepusculo doloroso, sertanejo, manchando a paisagem de sombras e difundindo uma melancolia por tudo... 

Gentis e acolhedoes, os senhores de engenho o receberam, prodigalisando-lhe o conforto de uma hospedagem, onde elle repousaria da viagem exaustiva. 
Ahi, foi que se aproximou de Lampeão. Este assomara à porta, desarmado, fitando o recem-chegado, que o interpellou logo: 

- É o capitão Virgulino Ferreira? 

- Às suas ordens. 

- Já o conhecia aravés de photographias. 

- Ah? Foram esses retratos, de que o sr. fala, que me inutilisaram. Si não tivesse deixado phopographar-me, seria desconhecido e já poderia ter desaparecido, sumindo-me no mundo, indo para longe, ganhar a vida tranquilamente, sem attribulação dessa angustia constante de ser perseguido. 

- E o sr. é perseguido? Dizem na capital que a polícia... 

-... não persegue, porque sou amigo dos officiais. É verdade, mas, ainda assim, as trahições, o sr. compreende. 

No anno passado, Isaias Arruda, meu grande amigo, chefe político cearense, surpreendeu-me numa localidade deste Estado com um cerco policial terrível, de que me livrei não sei como. 

Estas cousas são que magoam... 

Uma trahição, o diabo! 

Gosto dos oficiaes e odeio os chefes de polícia. 

Não é verdade que eu haja emboscado para matar ao dr. Eurico Souza leão. 
Ignorava que esse chefe de policia viajava, naquelle tempo, pelo sertão... 

Se soubesse, com franqueza, eu teria aventurado... 

- Como foi assassinado seu irmão? 

- É invenção. Elle não foi morto. Está são, vivo e bolindo. 

Aquillo foi brincadeira "só para atrapalhar"... 

- E Sabino? 

- A mesma coisa. 

Está vivo, no Riacho do Navio, à frente de alguns homens. Vou encontrar-me, agora, com elle. 

- Disse-me, há pouco, que se pudesse abandonaria o cangaço... 

- Sim. Porque não vivo a vida do cangaço por maldade minha. 

É pela maldade dos outros. Dos homens que não têm a coragem de lutar corpo a corpo como eu e vão matando a gente na sombra, nas tocaias covardes. 

Tenho que vingar a morte dos meus paes. Era menino quando os mataram. Bebi o sangue que jorrava da pelle de minha mãe, e beijando-lhe a boca fria e morta, jurei vinga-la... 

É por isso, que de rifle de costas, cruzando as estradas do sertão, deixo um rastro sangrento a procura dos assassinos de meus paes. 

(...) 

É por isso que eu sou cangaceiro. 

Não sei quando hei de deixar os horrores desta vida, onde o maior encanto, a maior belleza seria exttinguir a maldade daquelles que roubaram a vida de minha mãe e de meu pae e de minhas irmãs. 

Dizendo isto, Lampeão ergueu-se, tomando o chapéo. 

Despediu-se do nosso informante. 

À porta um seu companheiro o "- arreou", isto é, entregou-lhe as cartucheiras e o mosquetão, um fuzil Mouser cortado na extremidade do cano. 

Apertando as mãos hospitaleiras de Rosendo, o dono da rustica engenhosa, o monarcha sanguinolento dos sertões tomou a estrada poeirenta para as incertezas do seu destino. 

Deante da maravilha da vida de Lampeão cheia de episodios romanescos e impressionantes como aquelle em que ha a scena commovente e soberba do juramento sobre a bocca hirta de uma mãe, quem ousará atirar a primeira pedra sobre o quadrilheiro immortalisado nas chronicas sangrentas dos sertões? A vida... (O POVO, 4.6.1928) 

(© O Povo, 26.07.2008)


As carneiras

Pedro Rocha
Da Redação

As cabeças de Lampião e Maria Bonita, decepadas em 1938, hoje estão enterradas em um cemitério em Aracaju. Mas antes disso, percorreram um longo caminho

Há quatro anos, o professor Dr. Lamartine Lima, da Faculdade de Medicina da Bahia, ligou para Vera Ferreira, neta de Virgolino e Maria, com notícias das cabeças de seus avós: fortes chuvas na capital baiana haviam deteriorado o Cemitério Quinta dos Lázaros, e 400 carneiras funerárias - espécie de gaveta - foram interditadas pela defesa civil. As do casal de cangaceiros estavam entre elas e deviam ser exumadas. A família decidiria o destino. Era um novo fato no longo percurso dos despojos dos cangaceiros à sepultura definitiva. 

As cabeças haviam sido decepadas logo após os assassinatos em Angicos, em 1938, e expostas como troféus em cidades do sertão nordestino. Depois, enviadas a Maceió e, posteriormente, a Salvador para estudos de antropologia criminal. Ao lado das de cinco outros cangaceiros, entre eles Corisco, elas permaneceram em exposição no Instituto Nina Rodrigues até 1969, quando foram enterradas no Cemitério Quinta dos Lázaros em caixas de madeira contendo cal virgem - provavelmente depois substituídas pelas tais carneiras. 

O processo de exumação possibilitou que Lamartine Lima examinasse mais uma vez os crânios de Maria Bonita e Lampião, repetindo o que já havia feito em 1965 e, de certa forma, empreendendo o que o próprio médico Estácio de Lima - primeiro responsável pelos estudos dos crânios - planejou: que as cabeças fossem preservadas para posteriores análises mais aprofundadas. Lamartine constatou definitivamente: "Pude analisar a cabeça de Lampião abertamente e constatar que não possuía o principal estigma anatômico apontado pela antropologia criminal: as fossetas de lombroso". Essa característica anatômica seria índice de uma possível determinação biológica das propensões criminosas. 

A notícia também fez com que Vera, então já dedicada ao estudo e promoção da memória do cangaço, fosse buscar os despojos dos avós e levá-las a Aracajú para enterrá-las em um cemitério na cidade onde mora ainda hoje. Uma irmã, que a acompanhou, passou mal ao ver as cabeças. Vomitou. "Eu confesso que foi doloroso ver as cabeças, pegar as cabeças deles. Fiz das tripas coração pra poder fazer aquele trabalho", relembra Vera, que, antes do sepultamento, ainda precisou arrumar outra carneira emprestada de um amigo. Hoje, ela ainda trabalha para a construção de um Memorial do Cangaço, onde pretende deixar definitivamente as cabeças debaixo do chão. 

Exposição 
Apesar de não estarem à vista do público desde 1969, as cabeças continuam à mostra até hoje, reproduzidas em fotografias que as expõem dispostas na escadaria da igreja de Piranhas, cidade alagoana de onde partiu a volante do tenente João Bezerra, que comandou a morte dos 11 cangaceiros em Angicos. 

"A foto que eu não gosto é a das cabeças", falou Expedita Ferreira na abertura da exposição de fotografias Cangaceiros, mês passado, em Fortaleza. A filha de Lampião percorreu as duas salas do Dragão do Mar com as paredes tomadas por cerca de 100 imagens do bando de Lampião e seus subgrupos. Depois de cumprimentar vários curiosos que vinham a ela guiados pelo burburinho fino sobre seu parentesco, conseguiu olhar os registros de uma vida na qual nasceu, mas não viveu. 

Na caminhada, Expedita evitou uma espécie de "instalação" em que é reproduzida a escadaria da igreja de Piranhas e distribuídas, assim como na famosa fotografia, 11 ampliações das cabeças dos cangaceiros mortos. Não ouviu o comentário de um dos visitantes: "Eu acho que essas cabeças deviam ser maiores, do tamanho natural, né não? Podia tá mais enfeitado também". 

E-MAIS 

Segundo o jornalista Moacir Assunção, autor do Os homens que mataram o facínora (Record), o médico Estácio de Lima, ante a ameaça do sepultamento das cabeças, declarou à Folha da Noite de 22 de maio de 1958: "O ex-rei Faruk, do Egito, nunca reclamou ao Museu de Londres a posse das múmias". 

Em seu livro Como dei cabo de Lampeão, o tenente João Bezerra assim justificou as decapitações: "Carregar os bandidos seria crear uma situação perturbadora pondo em perigo duas vidas: a minha e a do soldado ferido, que necessitávamos de socorros médicos urgentes [...] Por outro lado, aquelas cabeças eram um documento autêntico para provar ao público que Lampeão tinha morrido". 

A notícia da morte dos cangaceiros em Angicos repercutiu inclusive no jornal estadunidense The New York Times, que, como escreve Moacir Assunção, "publicou uma grande matéria, em local de destaque da página, retratando o assassinato do bandoleiro [...]. O texto fazia ainda uma correção de outra matéria do mês de janeiro imediatamente anterior, na qual, erroneamente, Lampião havia sido dado como morto de tuberculose na própria cama no estado Sergipe". 

(© O Povo, 25.07.2008)


Um certo remorso

A ex-cangaceira Aristéia Soares já havia abandonado o cangaço quando as cabeças passaram por sua cidade. Ela viu de longe. A polícia segurando e gritando: "Esta cabeça é de Lampião. Essa, de Maria Bonita..." Apesar disso, estava feliz por ter se entregado à polícia e não passar mais os sofrimentos da vida no mato. Mesmo assim, não falava sobre essa parte de sua vida. Pedro Soares, 54, seu filho, cresceu sabendo vagamente do passado da mãe. Aristéia falou mais sobre o assunto depois que o pesquisador João de Souza tornou-se seu amigo e começou a descobrir as histórias. 

A mãe, nos últimos meses, depois de uma visita a Fortaleza, onde encontrou Durvinha, sua antiga amiga no cangaço, perguntava-se: "Mas será que ainda vou ver Durvinha?", e gostava de dizer que a companheira havia sido a mulher mais bonita no cangaço. A dúvida se desfez negativamente este mês com o falecimento de Durvinha, em Belo Horizonte. Ela era uma das boas lembranças de uma época à qual não deseja retornar. Aos jornalistas que lhe perguntam ainda hoje se gostaria de voltar ao cangaço, responde: "Deus me defenda, homi". 

A revelação dessas histórias não mudaram a vida de Pedro. O trabalho na roça e a vida simples no povoado de Jardim Cordeiro, no município alagoano de Delmiro Gouveia, continuam até hoje, vez por outra interrompida por alguma viagem em que acompanha a mãe nos eventos sobre o cangaço. Além dessas excursões, restou daqueles tempos um certo remorso ao ver a foto da cabeça de uma de suas tias, Eleonora, que não conseguiu escapar. "Se eu pudesse encontrar o cara que matou ela, eu ainda tinha coragem de fazer alguma coisa. Mas isso acabou, né? Porque dizem que ela já tinha se rendido e outros contam que ele matou enganado, pensando que era um homem". 
 

(© O Povo, 25.07.2008)


O espelho de Lampião

Pedro Rocha 
da Redação

A pesquisadora francesa Elise Grunspan-Jasmin analisa em entrevista ao O POVO a construção da imagem de Lampião através das fotografias publicadas na imprensa da época

O vulto de Lampião fazia rebuliço quando notícias anunciavam sua aproximação. Assim foi por mais de 20 anos, num enfrentamento aberto contra o poder de repressão estatal. Um enfrentamento que ganhou dimensões espetaculares na imprensa, principalmente através da publicação de fotografias. De um lado dessa disputa estavam cangaceiros e o próprio Lampião, que pousavam imponentes nas imagens ao mesmo tempo em que a captura do bando, pelas forças policiais, parecia impossível. Doutro, registros das volantes, de acordos governamentais e cangaceiros mortos. 

A autora do livro Lampião - Senhor do Sertão (Edusp), a francesa Elise Grunspan-Jasmin, analisou as cerca de 200 fotografias relativas ao cangaço, reunidas em diferentes arquivos públicos e coleções privadas do Nordeste brasileiro, e escreve na entrevista abaixo por e-mail sobre a ascensão e queda do homem que já morreu mito. 


O POVO - Que momento marca a entrada de Lampião na imprensa? 
Elise Gruspan-Jasmin - Sua incorporação aos Batalhões Patrióticos, em 1926, marca o início de sua vida pública, sua ruptura definitiva com a sociedade do sertão, à qual não se reintegrará nunca mais, e, principalmente, a sedução de um enfrentamento com o Brasil inteiro por intermédio da imprensa. Foi, a partir de então, que instaurou-se um diálogo entre Lampião e interlocutores que ora eram seus admiradores, ora seus inimigos. A imprensa e a fotografia veiculam essa imagem de Lampião, o que, para a época, é extremamente inovador. O ano de 1926 registra uma virada na vida de Lampião. A incorporação de Lampião aos Batalhões Patrióticos devia, na verdade, ser seguida de uma anistia e da obtenção oficial da patente de capitão. Sabemos que não foi nada disso. As promessas não foram mantidas: ao sair de Juazeiro, Lampião continuava a ser um criminoso perseguido pelas forças policiais, e sua patente de capitão não tinha estritamente nenhum valor. Acho que foi depois do episódio de Juazeiro que Lampião tomou consciência da influência dos jornais sobre a construção da sua imagem, mas renunciou à relação direta com a imprensa. É a partir dessa traição que se constrói e se elabora a última imagem do cangaceiro Lampião, a de um homem que, descobrindo que não voltará a pertencer à sociedade do sertão, vai, doravante, enfrentá-la e desafiar o Brasil inteiro. 

OP - Como esse momento se diferencia das fotos feitas dez anos depois por Benjamin Abrahão? 
Elise - Em 1936, ele é o "Rei do Cangaço", se deixa ver, se exibe no seu universo familiar. Ele não tem mais, desde muito tempo, a esperança de reintegrar à sociedade. As fotografias de Benjamin Abrahão testemunham da organização de uma vida com suas próprias leis, códigos, costumes. Lampião é, ao mesmo tempo, chefe de grupo e chefe de família e deixa parecer sobre as fotografias todos os momentos de uma vida que ele encenou. Nas fotografias feitas por Benjamin Abrahão, Lampião vai diferenciar-se: tomará distância em relação aos códigos tradicionais em vigor até então no cangaço, cuidando de sua aparência e organizando uma verdadeira cenografia entorno de sua pessoa e de sua atividade. Ele passa a cuidar dos detalhes de seu vestuário: imensos chapéus decorados com medalhas, correias recobertas com peças de ouro, fruto de suas pilhagens, alforjes bordados com cores soberbas, punhais imensos incrustados de pedras etc. Agora ele é reconhecível entre todos. 

OP - Lampião tinha um senso estratégico e consciente do uso de sua imagem? 
Elise - É uma questão muito delicada. Analizando a iconografia do cangaço, a gente não pode escapar a tentação de pensar que Lampião, de uma certa forma, instrumentalizou a fotografia para construir sua lenda e, até mais, fez da fotografia um dos elementos da sua manipulação das mídias. Eu, pessoalmente, acho que Lampião, certamente, sem instrumentalizá-la ou manipulá-la, entendeu o impacto que a fotografia podia ter na construção da sua personagem e na interação que ele podia ter com os seus adversários. 

OP - Houve uma reação deliberada dos adversários? As fotos se diferenciam em que dos retratos de cangaceiros? 
Elise - Na leitura dos jornais do litoral do Nordeste, assim como os do sul do País, fica evidente que a fotografia teve um papel considerável na demonstração de poder de cada um dos campos. Algumas fotografias representam as autoridades governamentais e policiais dos diferentes estados do Nordeste em reuniões estratégicas, conferências de imprensa ou jantares oficiais organizados nas diferentes capitais do Nordeste. A repressão do cangaço já não é mais unicamente um problema das volantes em ação no sertão. Essas imagens registradas na imprensa reforçam a idéia de uma participação ativa das personalidades políticas das grandes cidades do litoral na elaboração de planos de combate contra o cangaço. Visam contrabalançar a infinidade de artigos criticando o pouco envolvimento dos políticos das grandes cidades do litoral frente ao drama que sofria o sertão. Paralelamente às imagens de reuniões oficiais, aparecem nos jornais, a partir de 1935, fotografias que mostram oficiais ou soldados das forças volantes em campanha contra o cangaço no sertão. Os oficiais e soldados das volantes - particularmente os da força de Nazaré, inimigos irredutíveis de Lampião - são quase sempre retratados em uniforme de campanha. Seu traje, embora não seja ricamente enfeitado, assemelha-se, em diversos aspectos, ao dos cangaceiros, permitindo identificar a região de onde provêm os personagens e os códigos de identificação das roupas dos combatentes. Esse tipo de fotografia foi privilegiado na imprensa da época até a morte de Lampião, por reposicionar a relação de forças entre Lampião e seus adversários em um contexto regional claramente determinado. 

OP - Nessa disputa, o que representa a famosa foto das cabeças decapitadas em Angicos? 
Elise - Foi nessa ocasião que a encenação e a iconografia macabra do cangaço teve seu auge. Em uma espécie de resposta à alegação de poder e invulnerabilidade do célebre cangaceiro, decapitaram-no e exibiram sua cabeça e a de seus companheiros como troféus, a fim de mostrar aos olhos do mundo que esse corpo fechado, impermeável às balas e às facas, podia ser fragmentado. Essa fotografia, exibindo numa encenação elaborada, cadáveres profanados e mutilados, coloca o público diante de uma violência que desperta a sensação de ausência de limites. Tudo parece ser permitido, em uma espécie de derrapagem descontrolada. A imagem aqui é destituída de seu poder de sacralização do sujeito, e não passa de um objeto difamador, que sugere exclusão, uma despossessão post-mortem. 

OP - Quais as interpretações que podemos fazer a partir dessa "encenação elaborada" a qual você se referiu? 
Elise - A fotografia das 11 cabeças cortadas revela uma composição bastante elaborada. As cabeças dos 11 cangaceiros mortos em Angicos pela volante de João Bezerra foram dispostas sobre um lençol branco, estendido sobre os degraus da igreja de Santana do Ipanema. Em torno dessas cabeças estão distribuídas, em cuidadosa simetria, armas, cartucheiras, bornais e chapéus dos cangaceiros, além de duas máquinas de costura. A disposição das cabeças não é aleatória: a de Lampião foi isolada das demais, e aparece em primeiro plano, na base da composição, como para dizer que Lampião - o chefe, o instigador, o arquiteto, o rei do cangaço - agora estava reduzido ao comando de um grupo de cabeças decepadas. Em segundo plano, logo acima da cabeça de Lampião, encontra-se a de Maria Bonita, entre as de Quinta-Feira e Luís Pedro. As cabeças dos outros cangaceiros foram colocadas mais acima: são as de Mergulhão, Elétrico e Caixa de Fósforo. No topo estão as cabeças de Adília, Cajarana, um desconhecido e Diferente. Todas estão etiquetadas e exibem o nome de cada cangaceiro. Os símbolos da riqueza e da força guerreira dos cangaceiros estão presentes, compondo o fundo de uma natureza-morta macabra. Esses detalhes - bordados, ornamentos, peças de ouro - sugerindo brilho, luminosidade que se perdeu para sempre, contrastam violentamente com as cabeças cortadas, remetendo o observador, inapelavelmente, ao ato de decapitação e à profanação dos cadáveres.
 

(© O Povo, 24.07.2008)


Entre mitos

Pedro Rocha
Da Redação



Moradora de Entremontes, em Alagoas, dona Maria do Carmo construiu uma capela para Padre Cícero às margens do cenário da morte de Lampião(Foto: EVILÁZIO BEZERRA)

Na pequena entremontes, em Alagoas, à beira do São Francisco, a memória de Padre Cícero e Lampião convivem sob as marcas da violência

A senhora é devota? "Demais!", responde na mesma hora. "Você já foi a Juazeiro? Juazeiro... Se Deus quiser, eu vou em outubro. Eu vou todo ano". 

A cidade nos anos 1920 já era uma espécie de Meca nordestina. Lampião também contava para seu bando de sua primeira ida à cidade do Cariri cearense. Dizia que seu pai havia lhe levado menino ainda para ser benzido pelo Padre Cícero, seu padrinho. O cangaceiro era profundamente religioso e místico. No bando, Virgolino fez por muito tempo também o papel de líder nas orações religiosas e chegou a ser filmado, por Benjamin Abrahão em 1936, rezando para o grupo com uma Bíblia na mão - as cabeças sem chapéus. 

Padre Cícero ficou com a complicada tarefa de recepcionar o cangaceiro. O encontro se efetivou e, conta-se, Padre Cícero teria tentando convencer Virgolino a deixar o cangaço, mas nem por isso abandonou de um todo os objetivos bélicos do encontro. Com o auxílio de um funcionário público, outorgou a famosa patente ao cangaceiro. A partir daquele momento Lampião seria: capitão.Virgolino havia conseguido um dos principais reconhecimentos que lhe faltavam, o do próprio poder estatal, justamente o responsável por sua sina - a fuga da perseguição das volantes. Logo depois, ele teria descoberto não ter serventia a patente improvisada em Juazeiro, mas nem por isso dispensou a alcunha que passou a usar em alguns de seu bilhetes. Quanto ao Padre, teria tido uma relação ambígua com o encontro, e não mais aceitou receber o cangaceiro, tentando se desvencilhar da imagem do criminoso. Dona Maria lembra: "Bem que Padre Cícero disse que essa raça ia acabar". 

Acabou, mas demorou mais de uma década ainda desde o encontro entre os dois. Afirma-se que o próprio Lampião balançou com os conselhos de Padre Cícero. Mas, ainda na cidade, em uma entrevista que concedeu, o repórter perguntou: 
- Não pretende abandonar a profissão? 
Lampião respondeu: 
- Se o senhor estiver em um negócio e for se dando bem com ele, pensará porventura em abandoná-lo? Pois é exatamente o meu caso. Porque vou me dando bem com este "negócio", ainda não pensei em abandoná-lo

(© O Povo, 23.07.2008)


Mataram Lampião!?

Pedro Rocha
Da Redação



Grota de Angicos, em Sergipe, onde Lampião, Maria Bonita e nove cangaceiros foram assassinadoso em julho de 1938(Foto: Evilázio Bezerra)
 

28 de julho de 1938. policiais alagoanos sob comando do tenente joão bezerra deram cabo do homem mais temido na história do sertão nordestino. lampião caiu morto sem tempo para reagir. maria bonita e mais nove cangaceiros também não escaparam do ataque surpresa. setenta anos depois, poucos da época ainda vivem, mas a notícia ainda impressiona

Seu Elias Marques vem caminhando em passos curtos, o corpo grande entrevado, as pernas que não agüentam. Vem dos fundos da casa, de frente para um praça em Olho D'Água do Casado, município alagoano próximo às divisas com Sergipe e Bahia. Ele ouve o motivo da visita, e fala com voz grossa e funda: "Tá com 70 anos, tá? Num instante se passa. Setenta anos foi onti". Numa quarta-feira, dia 27 de julho de 1938, ele varava a caatinga sob comando do tenente João Bezerra, delegado da cidade alagoana de Piranhas, à beira do rio São Francisco. Era policial volante de Alagoas, e passava de 20 dias ou mais andando no mato, na cata do homem que então já completava mais de 15 anos na testa do bando de cangaceiros mais temido da história do sertão nordestino. Aos 23 anos, não previa que a aposentadoria estava próxima. Na manhã do dia seguinte, viu: um tiro no tórax, outro no baixo ventre e mais um último na cabeça. Lampião estava caído na Grota de Angicos, a menos de um quilômetro do rio, já na banda de Sergipe. Ao lado, Maria Bonita e outros nove cangaceiros. 

Hoje, sem nem mesmo um fuzil que seja da batalha, seu Elias lembra, e tosse. O sereno fez gripe. A saúde é mais a memória, e menos essas dores, no corpo inteiro. Memória das horas escuras, deitado. "Eu já tô quase pra ficar mais ele lá. Dá uma lembrança danada de Lampião. Uma lembrança medonha. Porque eu doente pego a me lembrar. Do que já passou. Do que era bom e era ruim". Naquele dia, estavam na antiga comarca de Pedras, hoje Delmiro Gouveia, quando Bezerra recebeu um telegrama do sargento Aniceto Rodrigues, que estava em Piranhas. A mensagem dizia: "Boi no pasto. Venha urgente". 

O vaqueiro da fazenda Novo Gosto, Joca Bernardes, havia desconfiado do volume das compras de Pedro de Cândido em Piranhas, que possuía família pequena. Joca, por ser coiteiro (uma espécie de informante e contínuo) do cangaceiro Corisco, sabia das relações de Pedro com Lampião, e decidiu entregar o fato nas mãos do sargento. A razão da delação de Joca teria sido, segundo algumas versões, inveja. Provavelmente por uma amante de Pedro que ele cobiçava. 

Aniceto, então, enviou o telegrama. O boi era Lampião. O "pasto" significava que o homem estava pela região. O sargento ainda tratou de despistar os informantes do homem. Gritou pra todo mundo ouvir: a população poderia ficar tranqüila que eles estavam indo para a cidade de Canapi atrás do bando Lampião. Pedro de Cândido teria mordido a isca. Ao chegar em Entremontes, distrito de Piranhas onde morava, cuidou de mandar as compras por seu irmão mais novo, Durval, e repassou o boato. Lampião dormiu tranqüilo. Dispensou os sentinelas. 

Enquanto isso, Elias seguiu na volante de João Bezerra para encontrar os soldados de Aniceto e do aspirante Francisco Ferreira de Melo. A estratégia, previsível, foi "apertar" Pedro, que foi obrigado a levá-los ao local exato do coito dos cangaceiros. "Eu tinha medo que só o diabo, quem não tinha medo de um homem daquele. O homem era valente e atirador. Não sei como o homem não me matou em Angicos. Era valente e atirador, o homem não perdia um tiro, o mosquetão dele era falado". 

Lampião, segundo o historiador social Frederico Pernambucano de Mello, era um homem caboclo, media 1,80 metros, calmo e bem educado. Falava baixo e era sedutor. Na juventude havia sido vaqueiro, amansador de burro brabo e almocreve, uma espécie de tropeiro que transportava mercadoria pela região. "Era um homem diferenciado. Lampião teve um talento especial para tudo aquilo a que se dedicou". Mas também um homem violento. "A primeira idéia que vinha na cabeça dele era uma pisa pra desconjuntar o sujeito." 

Percurso histórico 
A história também é contada por Alcineide Maria, 22 anos, guia da trilha que, atualmente, leva turistas ao marco histórico das mortes. Ela anda faceira por entre o chão de pedras, como se desfilasse de havaianas na caatinga - verde verde, nessa época. O texto decorado é interpretado com a desenvoltura de quem o repete há dois anos, quando começou a vir pra cá diariamente do povoado onde mora, a mesma Entremontes do já finado Pedro de Cândido. O sotaque é bonito, e a história tem seus clímax dramáticos, como a versão de que Maria Bonita, ao ver Lampião morto, teria se jogado sobre seu corpo, pedido para não ser assassinada ao soldado José Panta, que, anos depois, contou ainda ter a degolado viva. "Muito bem", diz um dos turistas ao fim da esplanação - palmas. 

O cangaço, na época, já não vivia seu apogeu de meados da década de 1920. Lampião, com 40 anos, já demonstrava traços de cansaço, sustentando-se, principalmente, da extorsão de dinheiro de coronéis através de bilhetes enviados por coiteiros. "A época dos grandes combates já havia passado, mas eles ainda investiam, principalmente, em subgrupos. Investiam em lugares menores, em cidades pequenas, em fazendas, tinha, por exemplo", diz Amaury Corrêa Araújo, odontólogo aposentado e pesquisador há 59 anos do tema. 

Nesse meio tempo, as versões sobre a morte do maior mito nordestino ao lado de Padre Cícero foram se acumulando, na tentativa de cotejar a realidade, enredada num sem número de histórias sobre o homem que, ainda em vida, foi alçado ao olimpo decaído sertanejo, envolto em um cenário contraditório expresso na famosa pergunta: bandido ou herói? Uma imagem que o próprio Virgolino Ferreira também construiu, entre sua profunda discrição no trato com coronéis da região, e sua desavergonhada exposição em trajes coloridos, fotografias na imprensa, entrevistas e até uma película cinematográfica. 70 anos depois ele convive num emaranhado de ditos e destios que põe em xeque esta própria versão apresentada, coligida a partir de alguns fatos mais consolidados. 

APRESENTAÇÃO 

Este caderno é sobre um homem que morreu de forma violenta, teve sua cabeça exposta por mais de 30 anos, e, nem assim, conseguiu ser esconjurado. Pelo contrário, virou mito ainda em vida e, desde então, não deixou de acumular narrativas, orais e acadêmicas. Um homem nordestino, profundo conhecedor do sertão desde os tempos da adolescência e juventude, quanto trabalhou como almocreve, percorrendo a região com mercadorias em lobos de burros. Um homem contraditório acima de tudo: algoz de muitos sertão adentro, suas vítimas; mas também figura respeitada por alguns de seus próprios inimigos, por sua honra e coragem, valores fundamentais na época. 
Recontar e refletir sobre a morte de Virgolino Ferreira da Silva, o Lampião, em 28 julho de 1938, então, é oportunidade de se revisitar episódios com o olhar estranhado doutra época. Mas não só: é também espaço para se pensar aproximações e paralelos com o presente. Este presente que é conseqüência do processo histórico, mas, ao mesmo tempo, constituinte da própria percepção sobre o passado. Nesse percurso, entre o real e o mítico, permanece uma única certeza: ele e o sertão são imensos. 

Pedro Rocha - Enviado a Grota de Angicos

(© O Povo, 19.07.2008)

 

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