Notícias
Nunca houve mulher como Gabriela

28/07/2008

 

 

Sônia Braga imortalizou Gabriela na TV e no cinema
 

O livro mais famoso de Jorge Amado completa 50 anos e ganha uma edição comemorativa pela Companhia das Letras que articula as contradições da mulher que era cravo e canela

Schneider Carpeggiani

De vestidinho curto e sorridente, Gabriela sobe no telhado para resgatar a pipa de uma criança. Não faria diferença alguma se o brinquedo voasse para algum lugar inalcançável, a atenção de Ilhéus já não estava mais nele – e sim na mulher deliberadamente ali exposta. Assim como a Ilhéus que recriou com cores escaldantes, Jorge Amado (1912/2001) desviaria o foco da sua atenção de 1958 em diante. O autor de Capitães de areia, Mar morto e Cacau larga a maniqueísta veia stalinista que marcava sua literatura e coloca no lugar cravo & canela.

A mudança não é só de tempero. É sobretudo de posicionamento. O tom autobiográfico dos seus primeiros livros é varrido em Gabriela cravo & canela. Em seu lugar, irrompe o distanciamento de uma terceira pessoa. O Jorge Amado político sai de cena e entra um contador de histórias incansável. Começa a partir daí a saga do maior vendedor brasileiro de livros no exterior – o maior até o dia em que os gringos trocaram o exotismo tropical pelo exotismo angelical (leia-se a auto-ajuda de Paulo Coelho).

A Gabriela despreocupada que escala um telhado é fruto maior de uma desilusão (e não de um devaneio sexual sob o sol baiano): o autor do realismo socialista de antes se vê decepcionado com suas crenças políticas, sobretudo com a revelação das atrocidades de Joseph Stalin. O número de páginas acompanha a mudança. Se antes (como no romance Cacau), pouco mais de uma centena de páginas era suficiente para o autor destilar suas crenças, o Jorge Amado contador de histórias precisaria de umas 400 (como é o caso de Gabriela) para dar conta das inúmeras vozes que ele passa a criar. Afinal, não é só Jorge Amado que precisa falar desta vez, também um infinito bestiário de tipos inesquecíveis e desesperado para dar sua versão da história.

Os 50 anos do livro mais importante de Jorge Amado é comemorado com a 80ª edição a chegar às livrarias brasileiras, desta vez pela Companhia das Letras (que comprou os direitos do legado do autor ano passado). A nova edição tem um longo artigo póstumo do crítico literário e poeta José Paulo Paes, que traz uma análise bem curiosa sobre a infantilidade (que chega por vezes à beira do retardamento mental) e a sensualidade de Gabriela.

“Na sua feliz animalidade, que não conhece outro limite para o desejo que não seja a ânsia de plenitude, própria e alheia, ela é o sexo no grau máximo, pastoral, de naturalidade. Daí que também nesse domínio a sua lógica de bom selvagem seja não menos subversiva do código estabelecido”, escreve o autor. Paulo Paes se foca nesta passagem na naturalidade com que Gabriela trai o malogrado sírio Nacib, seu patrão e amante.

“Ela se entregava de noite ao retirante Clemente ‘como se nada fora’, pois ‘no outro dia era como se ela nem se recordasse, olhava-o como aos outros, tratava-o como aos demais’, paradoxo que o negro Fagundes assim elucida ao companheiro de jornada e de labuta: ‘Ela não é mulher pra se viver com ela. (...) Tu pode dormir com ela, fazer as coisas. Mas ter ela mesmo, ser dono dela como é de outras, isso ninguém vai nunca ser’”, destaca o crítico.

Por mais que seja forte a imagem de Gabriela, o romance não é apenas sobre sua animalidade sexual que a todos seduz. Tendo como mote a intensa paixão entre a cozinheira Gabriela e o comerciante Nacib, Jorge Amado não deixa de teorizar sobre o encontro idílico e trágico entre classes sociais distintas. E, num movimento entre o rural (Ilhéus) e o urbano (Salvador), o autor descreve o declínio de poder dos coronéis baianos, que já não eram os mesmos naquele ano de 1925 (em que se desenrola a história), “um tempo curto de meses e longo de acontecimentos”.

Apesar desse ano a crítica se debruçar em elogios pelos 100 anos (de morte) de Machado de Assis e (de nascimento) de Guimarães Rosa (dois cânones inquestionáveis) é a Gabriela de Jorge Amado (autor sempre questionado) que permanece como imagem maior do Brasil lá fora. Por que? Num artigo sobre o baiano, o crítico José Castello bem definiu: “Os romances de Amado são leves, podem ser lidos na praia sob o sol escaldante, ou em posição preguiçosa em uma rede, entre uma caipirinha e um acarajé”. E o feitiço do exótico permanece...

(© JC Online)


O desejo como estratégia de sobrevivência

Flávia de Gusmão

A personagem Gabriela nasceu em 1958, mas só quase 20 anos depois, em 1975, seu espírito criado por Jorge Amado encontraria um corpo definitivo para abrigá-lo: o da atriz Sônia Braga. O portal utilizado para a incorporação foi a telenovela da Rede Globo, com direção de Walter Avancini e Gonzaga Blota.

Ainda hoje é impensável materializar outra que não a curvilínea Braga no papel que viria a se tornar o arquétipo da mulher brasileira. Tanto é verdade que, dez anos depois, em 1985, o cineasta Bruno Barreto não escolheu outra para incorporar a mestiça na tela grande, num filme que teve o astro italiano Marcelo Mastroianni como seu par romântico. A pergunta é: se o ator Armando Bogus – que interpretou impecavelmente o turco Nacib na televisão – tivesse deixado impressão tão indelével quanto a de Braga, será que ele também não estaria lá? Deixou de ser uma questão de atuação para passar a ser um modelo de personificação.

Gabriela surgiu depois de várias mulatas e negras povoarem o imaginário brasileiro. Era como estivesse sendo preparado, num grande caldeirão de estereótipos, um caldo grosso que depois de enformado resultaria na simbolização perfeita da feminilidade nacional.

Ela não tinha a ganância da personagem histórica Xica da Silva (também transformada em filme, por Cacá Diegues, em 1976), nem a castidade de uma Isaura (romance de Bernardo Guimarães, de 1875, e novela global, de 1976, dirigida por Herval Rossano e Milton Guimarães, em sua primeira versão). Grande parte do impacto do romance e da novela se dá exatamente pela incontrolável carga sexual da personagem. Ela faria amor apaixonada e livremente com que lhe desse na telha, mas não em troca de dinheiro, bem ou poder. Num contexto social repressor na qual nenhuma mulher sairia impune ao exercer livremente sua sexualidade, Gabriela conseguia esta proeza, pois ela era a mulher idealizada, um animal sexual criado para o prazer masculino, mas, aparentemente com uma natureza pura e infantil.

Gabriela epitomizava a saciedade das duas principais necessidades do ser humano: a cópula e a alimentação – além de tudo era uma cozinheira de mão cheia. No entanto, é justamente quando alçada à legitimidade perante esta mesma sociedade, via casamento com o turco Nacib, que a vingança vem a cavalo, sua impunidade acaba. Incapaz de se manter fiel, trai o marido com o dândi Tonico Bastos. O que antes era virtude, volúpia, passa a ser defeito. Ato punido com a separação e seu posterior “rebaixamento” ao cargo de amante. Escravizado pelo sexo e pelo estômago, Nacib não consegue esquecê-la e volta para ela, desta vez sem os grilhões da aliança de matrimônio, sem emprestar-lhe o seu nome honrado. Ela retorna ao seu status quo, de mulher boa para o leito, mas inadequada para os salões.

David Brookshaw, autor do estudo Raça e cor na literatura brasileira, defende que “Gabriela representa toda uma tradição de sexo casual que tem sua origem na escravidão e na instabilidade familiar dentro do proletariado brasileiro”. Embora o lado atraente de Gabriela tenda a despertar um senso de orgulho da feminilidade brasileira, não se pode esquecer que sua construção é baseada num repertório de estereótipos raciais. Segundo Brookhaw, “à mulata não é permitido existir como esposa e mãe, uma vez que ela é símbolo de lincensiodade. Ela não é respeitada nem como mulher, nem como indivíduo. Sua função é atrair os homens, ser explorada por eles e explorá-los a fim de obter benefícios através do sexo. Ambições individuais que surjam de talentos que não estejam ligados a esta ‘realidade’ são constantemente destruídos e denegridos em benefício da manutenção do estereótipo”.

(© JC Online)


"Anarquistas, Graças a Deus" volta em DVD

Adaptação do romance autobiográfico de Zélia Gattai traz imagens de época

Com Ney Latorraca e Débora Duarte, minissérie de nove capítulos parece ainda mais doce e melancólica 24 anos depois de ser exibida na TV

DA REPORTAGEM LOCAL

A minissérie "Anarquistas, Graças a Deus" acaba de sair em DVD, retomando a aula de história da obra homônima da escritora Zélia Gattai (1916-2008), seu livro de estréia, publicado em 1979. Exibida originalmente em 1984, na Globo, o programa foi acrescido de uma entrevista concedida pela autora em 2006 ao programa "Espaço Aberto Literatura", da Globonews.

Com nove capítulos, seis horas e 15 minutos de duração, a minissérie conta a história da família de imigrantes italianos da escritora, no início do século 20, alternando imagens de época e dramatização das memórias de Zélia. Tudo começa com o casamento de Angelina (Débora Duarte) e Ernesto Gattai (Ney Latorraca), militante do movimento anarquista, dono de uma oficina mecânica. O casal e seus cinco filhos -Zélia foi vivida pela carismática Daniele Rodrigues- acompanham as mudanças que o progresso econômico provoca em São Paulo.

A cidade e a família também sofrem reflexos de acontecimentos no mundo: a Primeira Guerra Mundial, a Depressão nos EUA etc. Nostálgica e bem-humorada, a minissérie volta, 24 anos depois, ainda mais doce e melancólica. (EDUARDO SIMÕES)

ANARQUISTAS, GRAÇAS A DEUS
Direção: Walter Avancini
Distribuidora: Som Livre
Quanto: R$ 39,90, em média
Classificação indicativa: não recomendado para menores de dez anos

(© Folha de S. Paulo)

Com relação a este tema, saiba mais (arquivo NordesteWeb)


powered by FreeFind