O livro mais
famoso de Jorge Amado completa 50 anos e ganha uma edição comemorativa pela
Companhia das Letras que articula as contradições da mulher que era cravo e
canela
Schneider Carpeggiani
De vestidinho
curto e sorridente, Gabriela sobe no telhado para resgatar a pipa de uma
criança. Não faria diferença alguma se o brinquedo voasse para algum lugar
inalcançável, a atenção de Ilhéus já não estava mais nele – e sim na mulher
deliberadamente ali exposta. Assim como a Ilhéus que recriou com cores
escaldantes, Jorge Amado (1912/2001) desviaria o foco da sua atenção de 1958
em diante. O autor de Capitães de areia, Mar morto e Cacau larga a
maniqueísta veia stalinista que marcava sua literatura e coloca no lugar
cravo & canela.
A mudança não
é só de tempero. É sobretudo de posicionamento. O tom autobiográfico dos
seus primeiros livros é varrido em Gabriela cravo & canela. Em seu lugar,
irrompe o distanciamento de uma terceira pessoa. O Jorge Amado político sai
de cena e entra um contador de histórias incansável. Começa a partir daí a
saga do maior vendedor brasileiro de livros no exterior – o maior até o dia
em que os gringos trocaram o exotismo tropical pelo exotismo angelical
(leia-se a auto-ajuda de Paulo Coelho).
A Gabriela
despreocupada que escala um telhado é fruto maior de uma desilusão (e não de
um devaneio sexual sob o sol baiano): o autor do realismo socialista de
antes se vê decepcionado com suas crenças políticas, sobretudo com a
revelação das atrocidades de Joseph Stalin. O número de páginas acompanha a
mudança. Se antes (como no romance Cacau), pouco mais de uma centena de
páginas era suficiente para o autor destilar suas crenças, o Jorge Amado
contador de histórias precisaria de umas 400 (como é o caso de Gabriela)
para dar conta das inúmeras vozes que ele passa a criar. Afinal, não é só
Jorge Amado que precisa falar desta vez, também um infinito bestiário de
tipos inesquecíveis e desesperado para dar sua versão da história.
Os 50 anos do
livro mais importante de Jorge Amado é comemorado com a 80ª edição a chegar
às livrarias brasileiras, desta vez pela Companhia das Letras (que comprou
os direitos do legado do autor ano passado). A nova edição tem um longo
artigo póstumo do crítico literário e poeta José Paulo Paes, que traz uma
análise bem curiosa sobre a infantilidade (que chega por vezes à beira do
retardamento mental) e a sensualidade de Gabriela.
“Na sua feliz
animalidade, que não conhece outro limite para o desejo que não seja a ânsia
de plenitude, própria e alheia, ela é o sexo no grau máximo, pastoral, de
naturalidade. Daí que também nesse domínio a sua lógica de bom selvagem seja
não menos subversiva do código estabelecido”, escreve o autor. Paulo Paes se
foca nesta passagem na naturalidade com que Gabriela trai o malogrado sírio
Nacib, seu patrão e amante.
“Ela se
entregava de noite ao retirante Clemente ‘como se nada fora’, pois ‘no outro
dia era como se ela nem se recordasse, olhava-o como aos outros, tratava-o
como aos demais’, paradoxo que o negro Fagundes assim elucida ao companheiro
de jornada e de labuta: ‘Ela não é mulher pra se viver com ela. (...) Tu
pode dormir com ela, fazer as coisas. Mas ter ela mesmo, ser dono dela como
é de outras, isso ninguém vai nunca ser’”, destaca o crítico.
Por mais que
seja forte a imagem de Gabriela, o romance não é apenas sobre sua
animalidade sexual que a todos seduz. Tendo como mote a intensa paixão entre
a cozinheira Gabriela e o comerciante Nacib, Jorge Amado não deixa de
teorizar sobre o encontro idílico e trágico entre classes sociais distintas.
E, num movimento entre o rural (Ilhéus) e o urbano (Salvador), o autor
descreve o declínio de poder dos coronéis baianos, que já não eram os mesmos
naquele ano de 1925 (em que se desenrola a história), “um tempo curto de
meses e longo de acontecimentos”.
Apesar desse
ano a crítica se debruçar em elogios pelos 100 anos (de morte) de Machado de
Assis e (de nascimento) de Guimarães Rosa (dois cânones inquestionáveis) é a
Gabriela de Jorge Amado (autor sempre questionado) que permanece como imagem
maior do Brasil lá fora. Por que? Num artigo sobre o baiano, o crítico José
Castello bem definiu: “Os romances de Amado são leves, podem ser lidos na
praia sob o sol escaldante, ou em posição preguiçosa em uma rede, entre uma
caipirinha e um acarajé”. E o feitiço do exótico permanece...
O desejo como
estratégia de sobrevivência
Flávia de
GusmãoA personagem
Gabriela nasceu em 1958, mas só quase 20 anos depois, em 1975, seu espírito
criado por Jorge Amado encontraria um corpo definitivo para abrigá-lo: o da
atriz Sônia Braga. O portal utilizado para a incorporação foi a telenovela
da Rede Globo, com direção de Walter Avancini e Gonzaga Blota.
Ainda hoje é
impensável materializar outra que não a curvilínea Braga no papel que viria
a se tornar o arquétipo da mulher brasileira. Tanto é verdade que, dez anos
depois, em 1985, o cineasta Bruno Barreto não escolheu outra para incorporar
a mestiça na tela grande, num filme que teve o astro italiano Marcelo
Mastroianni como seu par romântico. A pergunta é: se o ator Armando Bogus –
que interpretou impecavelmente o turco Nacib na televisão – tivesse deixado
impressão tão indelével quanto a de Braga, será que ele também não estaria
lá? Deixou de ser uma questão de atuação para passar a ser um modelo de
personificação.
Gabriela
surgiu depois de várias mulatas e negras povoarem o imaginário brasileiro.
Era como estivesse sendo preparado, num grande caldeirão de estereótipos, um
caldo grosso que depois de enformado resultaria na simbolização perfeita da
feminilidade nacional.
Ela não tinha
a ganância da personagem histórica Xica da Silva (também transformada em
filme, por Cacá Diegues, em 1976), nem a castidade de uma Isaura (romance de
Bernardo Guimarães, de 1875, e novela global, de 1976, dirigida por Herval
Rossano e Milton Guimarães, em sua primeira versão). Grande parte do impacto
do romance e da novela se dá exatamente pela incontrolável carga sexual da
personagem. Ela faria amor apaixonada e livremente com que lhe desse na
telha, mas não em troca de dinheiro, bem ou poder. Num contexto social
repressor na qual nenhuma mulher sairia impune ao exercer livremente sua
sexualidade, Gabriela conseguia esta proeza, pois ela era a mulher
idealizada, um animal sexual criado para o prazer masculino, mas,
aparentemente com uma natureza pura e infantil.
Gabriela
epitomizava a saciedade das duas principais necessidades do ser humano: a
cópula e a alimentação – além de tudo era uma cozinheira de mão cheia. No
entanto, é justamente quando alçada à legitimidade perante esta mesma
sociedade, via casamento com o turco Nacib, que a vingança vem a cavalo, sua
impunidade acaba. Incapaz de se manter fiel, trai o marido com o dândi
Tonico Bastos. O que antes era virtude, volúpia, passa a ser defeito. Ato
punido com a separação e seu posterior “rebaixamento” ao cargo de amante.
Escravizado pelo sexo e pelo estômago, Nacib não consegue esquecê-la e volta
para ela, desta vez sem os grilhões da aliança de matrimônio, sem
emprestar-lhe o seu nome honrado. Ela retorna ao seu status quo, de mulher
boa para o leito, mas inadequada para os salões.
David
Brookshaw, autor do estudo Raça e cor na literatura brasileira, defende que
“Gabriela representa toda uma tradição de sexo casual que tem sua origem na
escravidão e na instabilidade familiar dentro do proletariado brasileiro”.
Embora o lado atraente de Gabriela tenda a despertar um senso de orgulho da
feminilidade brasileira, não se pode esquecer que sua construção é baseada
num repertório de estereótipos raciais. Segundo Brookhaw, “à mulata não é
permitido existir como esposa e mãe, uma vez que ela é símbolo de
lincensiodade. Ela não é respeitada nem como mulher, nem como indivíduo. Sua
função é atrair os homens, ser explorada por eles e explorá-los a fim de
obter benefícios através do sexo. Ambições individuais que surjam de
talentos que não estejam ligados a esta ‘realidade’ são constantemente
destruídos e denegridos em benefício da manutenção do estereótipo”.
(©
JC Online)
"Anarquistas, Graças a Deus" volta em DVD
Adaptação do romance autobiográfico de Zélia Gattai traz imagens de época
Com Ney Latorraca e Débora Duarte, minissérie de nove capítulos parece ainda
mais doce e melancólica 24 anos depois de ser exibida na TV
DA REPORTAGEM LOCAL
A minissérie "Anarquistas, Graças a Deus" acaba de sair em DVD, retomando a
aula de história da obra homônima da escritora Zélia Gattai (1916-2008), seu
livro de estréia, publicado em 1979. Exibida originalmente em 1984, na Globo, o
programa foi acrescido de uma entrevista concedida pela autora em 2006 ao
programa "Espaço Aberto Literatura", da Globonews.
Com nove capítulos, seis
horas e 15 minutos de duração, a minissérie conta a história da família de
imigrantes italianos da escritora, no início do século 20, alternando imagens de
época e dramatização das memórias de Zélia. Tudo começa com o casamento de
Angelina (Débora Duarte) e Ernesto Gattai (Ney Latorraca), militante do
movimento anarquista, dono de uma oficina mecânica. O casal e seus cinco filhos
-Zélia foi vivida pela carismática Daniele Rodrigues- acompanham as mudanças que
o progresso econômico provoca em São Paulo.
A cidade e a família também sofrem
reflexos de acontecimentos no mundo: a Primeira Guerra Mundial, a Depressão nos
EUA etc. Nostálgica e bem-humorada, a minissérie volta, 24 anos depois, ainda
mais doce e melancólica. (EDUARDO SIMÕES)
ANARQUISTAS, GRAÇAS A DEUS
Direção: Walter Avancini
Distribuidora: Som Livre
Quanto: R$ 39,90, em média
Classificação indicativa: não recomendado para menores de dez anos
(©
Folha de S. Paulo)