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Um Dom Quixote encabulado

30/07/2008

 

 


 

 

Aos 80 anos, Gilvan Lemos é um exemplo de escritor que construiu pacientemente uma sólida carreira literária a despeito da pouca divulgação de sua obra e de sua incontornável timidez

Por Cristiano Ramos

Ele não foi um menino debruçado sobre livros, preferia os gibis. O seu primeiro romance, de 700 páginas, achou melhor queimar. O autor em questão não possui títulos acadêmicos, sua educação formal não passou do primário, máximo que os garotos pobres de São Bento do Una podiam. Nascido em 1º de julho de 1928, não exerceu empregos curiosos nem teve algo seu adaptado para o cinema; candidato à Academia Pernambucana de Letras, teve apenas um voto entre 38 possíveis.

É conhecida sua aversão a entrevistas, mesmo quando na segurança do apartamento simples no centro do Recife, onde mora sozinho até hoje, sem filhos ou esposa. Mas toda tarde é possível vê-lo na Nossa Livraria, na Rua do Riachuelo, passando despercebido pela maioria dos leitores que não o reconhecem como o escritor de mais de duas dezenas de livros.

E o que pode haver para comemorar em seu octogésimo aniversário? Muito, decerto. Pois Gilvan Lemos está onde muitos desejariam: longe de ser um fenômeno editorial ou midiático – o que poderia estar circunscrito a explicações transitórias e alheias à qualidade de suas narrativas – e ainda mais distante de ser ignorado pela crítica, que por diversas vezes o sublinhou entre os mais competentes da literatura brasileira.

Estes parágrafos podem causar estranheza, pois, hoje, o reconhecimento parece se exigir produto de uma crítica eminentemente laudatória. Mas, da análise fria à mais entusiasmada, tudo leva à valorização da carreira literária de Gilvan, construída sem facilidades ou sobressaltos – a vitória de um homem comum, assim como nos parecem seus protagonistas, heróis modernos que seguem resistindo à aparente impossibilidade de transcendência.

O primeiro romance publicado, por exemplo, o Noturno sem música (1956), foi terminado em pouco mais de um mês, bem menos do que levaria para quitar a máquina de escrever. Para publicá-lo, tirou empréstimo de 18 contos de réis. E boa parte dos 500 exemplares foi distribuída entre críticos que não lhe dedicaram atenção alguma, apesar de ter ficado entre os vencedores de um concurso de inéditos, empatado com O visitante, de um certo Osman Lins. Este, sim, fez para o Estado de S. Paulo uma das poucas críticas sobre aquela estréia, em um texto que impressiona tanto pelo rigor como pela admiração insuspeita:

“(...) sem o devido conhecimento da língua e insistindo, por vezes, em motivos aos quais o seu depoimento nada vem acrescentar, como o relato das primeiras inquietações sexuais, Gilvan Lemos, com uma prosa maltratada e expressiva, com a sua visão elementar das coisas, sua memória aflita, sua imaginação viril e uma sensibilidade estranha, escreveu um dos melhores romances já produzidos pela ainda incipiente novelística pernambucana.”
 

Cristiano Ramos é jornalista e apresentador do Opinião Pernambuco.

(© Continente Multicultural)

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