30/07/2008
O mestre Manuel
Eudócio, de Caruaru, considerado o principal discípulo de Vitalino, extrai
poesia do barro bruto
Por Maria Alice Amorim
É com a delicadeza das mãos que Manuel Eudócio passeia sobre a plantação de
milho, cultivada desde março: o milharal bonecou, a safra foi garantida. É
com as mesmas mãos delicadas que o artista joga água sobre Lampião e Maria
Bonita: lavar a poeira da semana é parte do ritual do sábado, após dias
inteiros enredando-se nas histórias que saltam dos personagens tramados à
base do massapê. A terra é generosa com as mãos férteis que a cultivam,
devolvendo-lhe fertilidade, sob a forma de alimentos, sob a forma de criação
artística. “São do meu jeito”: é assim que define as peças cerâmicas
inventadas e elaboradas a partir das habilidades manuais e mentais. Com voz
pausada e dedos firmes na modelagem, é assim que o primeiro galante do
reisado vai debulhando os grãos de uma vida dedicada à arte e à agricultura.
É pelas mãos e pela oralidade que saem as imagens trazidas da memória de um
tempo em que convivia com os amigos Vitalino e Zé Caboclo, um tempo em que
apreciava o canto de violeiros e a poesia de cordel. Memória de um tempo em
que brincava reisado, tempo em que ainda nem assinava a própria obra
artística.
Trabalhando diariamente num banco de madeira construído pelas próprias mãos,
cujo assento em largas treliças de couro foi projetado por ele mesmo para
combater o calor de quem passa muitas horas diárias sentado, Manuel Eudócio
tem diante de si a mesa retangular, o barro molhado, as ferramentas e sempre
algum boneco que vai começando a aparecer no início do dia e deve ser
concluído, de preferência, ao final da mesma jornada. As mãos não param, as
lembranças emergem. O narrador exibe o vigor mental e as habilidades manuais
de quem leva uma vida regrada, dedicada à família, ao plantio e, sobretudo,
à atividade artística iniciada na infância, com a avó louceira Tereza Maria
da Conceição, com quem foi criado. Fazia cavalinho e outros bichos para
consumo próprio, além de seguir as recomendações da avó Tereza para que não
quebrasse tudo, deixasse uns para vender na feira. Era, sobretudo, com o
próprio envolvimento na tradicional produção de brinquedos, herdada de
antepassados, que ela incentivava o neto talentoso.
De 28 de janeiro de 1931, nascido e criado no Alto do Moura, em Caruaru,
Manuel Eudócio Rodrigues freqüentou apenas seis meses de escola, pois desde
criança necessitava trabalhar, ajudando o pai na agricultura. Quando
Vitalino se transferiu do Sítio Campos para o Alto do Moura, em 1948,
Eudócio tinha apenas 17 anos, mas desde os nove fazia brinquedos, imitados
da avó materna, que era quem botava para queimar as suas esculturinhas. Foi
na rua que conheceu os trabalhos do mestre Vitalino: naquela época ninguém
vendia cerâmica em casa, o local de exposição e venda das peças era a famosa
feira de Caruaru. Quando viu os bonecos do mestre, inspirou-se: “Cheguei da
feira cheio de idéias”. A partir do contato com as invenções de Vitalino,
Eudócio trocava opiniões com o companheiro de arte, o ceramista Zé Caboclo,
ou José Antônio da Silva, outro contemporâneo do mestre: “Menos de 10 anos
depois, em 1957, já havia umas oito a 10 pessoas que faziam ‘bonecos de
Vitalino’, como Ernestina, José Rodrigues, Elias Francisco, Luiz Antônio”.
Entretanto, Eudócio relembra que, nessa época, fazia questão de dizer aos
compradores que aquelas esculturas eram obra de variados artistas. E, ainda
hoje, faz questão de frisar que a tradição cerâmica no Alto do Moura já
existia muito antes dos anos 40: “Tinha umas 10 mulheres, ou mais, que
faziam brinquedinhos e levavam o balaio para a feira no sábado. Naquela
época, as crianças brincavam com bruxinha de pano e essas coisinhas de
barro, até gente rica mesmo”.
A estréia do discípulo correu muito bem, com 15 bonecos: “Eu sei que eu fiz
as peças do meu jeito, olhando assim: via um velho passar com um jerimum na
cabeça ou um feixe de lenha, um retirante puxando um cachorro magro. Minha
vó queimou, eu pintei. Pintei com o dedo. Nesse tempo eu mesmo preparava a
tinta. Breu, alvaiade, querosene. Comprava o pó amarelo, vermelho, azul e
preparava a tinta”. No meio da feira, ficou perto do banco de Vitalino.
Chegou um “doutor” do Rio de Janeiro, comprou cinco pecinhas por 75 mil
réis, 15 mil cada uma, e ainda pediu ao mestre para orientar bem o aluno
promissor.
Eudócio lembra o que o forasteiro disse: “Vitalino, ensine a ele. Esse aqui
vai ser um mestre”. A partir daí, os cavalinhos foram deixados de lado,
passando a dedicar-se quase com exclusividade às esculturas conhecidas em
todo o país como “boneco de Vitalino”. A agricultura era dedicação de
inverno, o barro era para todos os dias, horas vagas e minutos,
generosamente partilhados com a necessidade da arte e da sobrevivência.
Vendia bem, mas fazia de tudo para não passar dificuldade, para manter a
sobrevivência de 13 pessoas em casa, para dar estudo aos filhos.
Uma das principais inspirações da obra escultórica de Eudócio é o reisado,
com os respectivos personagens do folguedo natalino do qual participou em
plena juventude, na década de 40: dona Joana, capeta, doutor, padre,
mascarado, alma, anjo, chorão, primeiro galante, segundo galante, primeira
dama, segunda dama, jaraguá, Manuel de Loló na perna de pau. Outra
inspiração recorrente é o universo poético da literatura de cordel e dos
violeiros repentistas, em busca de cenas poéticas extraídas de um imaginário
coletivo e de um cotidiano mesclado de lirismo, pobreza e sonhos. “Vi
Mocinha da Passira e Pinto do Monteiro cantando na casa de um primo, eu era
rapazinho ainda. Pinto cantava bonito, cantador só existia ele e não sabia
dum ‘a’. O homem era de uma carretilha muito grande.” Esta memória do
artista é acionada sempre que vai criar e o resultado é continuamente
renovado pelo engendramento de uma narrativa visual bem particular e sempre
em processo. Embora o romance do pavão misterioso, as disputas entre
cantadores, a vida dos retirantes, as peripécias de valentões, a saga de
cangaceiros, a volta da roça sejam elementos comuns ao imaginário construído
a partir das tradições culturais nordestinas, e possa parecer repetitivo na
obra dos ceramistas do Alto do Moura, é importante dirigir um olhar atento
para a elaboração mental, para a representação de realidade vislumbrada na
obra artística, individual, de cada escultor.
Quando criança, Eudócio imitava as peças da avó. Conquistou autonomia
criadora quando decidiu inventar os próprios traços, a partir da composição
dos personagens do cavalo-marinho, brincadeira da qual fez parte,
representando o papel de primeiro galante. Ainda hoje o brinquedo completo é
feito no barro pelo artista, são 28 personagens a cada vez acrescidos de
novidades. A mais recente é a criação de uma bicicleta e de um carro
conversível, em que aparecem montados personagens como dona Joana e o
doutor. A idéia do carro veio num sonho e, de repente, este sonho fez
ressurgir a lembrança dos carrinhos que a avó esculpia. É o mesmo carro,
inspirado dos objetos da infância, mas nunca será, nem terá sido aquele
mesmo da avó.
Muitas das idéias que incrementam a produção de Eudócio afloram em sonhos,
conforme ele próprio sempre faz questão de lembrar. Já perdeu a conta das
vezes em que acorda inspirado pelas imagens oníricas. Imagens que se
materializam ao longo das jornadas semanais, de segunda a sexta, jornadas
diurnas inauguradas às seis da manhã e que se estendem até as cinco ou seis
da tarde. No sábado, a maior parte do dia é reservada para ir à feira fazer
compras e para a limpeza do ateliê. O descanso vem no domingo, entre
cuidados com a roça e afagos a filhos e netos. “Meu trabalho é contínuo, mas
sempre por conta do dia.” Hoje, com a família criada e o nome consolidado no
meio artístico, a jornada ficou bem mais suave do que nos primórdios, quando
“ia a pé para a cidade e levava as peças num caixote, na cabeça”, quando
“tinha feira de não vender nenhuma peça”. A criatividade, entretanto, sempre
foi trunfo necessário para superar os momentos de dificuldade financeira.
Aliado à criatividade, o apuro da técnica na modelagem, na secagem, na
pintura, na queima, foi construído em dezenas de anos de experiência. Há
mais de duas décadas, uma das filhas pinta as peças para Eudócio. Porém,
quando exposta sem tinta nenhuma, a escultura tem que sair perfeita, sem
rachaduras, nem emendas. Aí, a peça realça o apuro formal do ceramista.
Se
as palavras vão rememorando, pausadamente, quase sete décadas de ofício, as
mãos firmes vão ligeiras construindo volumes roliços que desvendam pouco a
pouco a narrativa inspirada do escultor. Vai aparecendo o corpo, depois
surgem as pernas, os pés, a cabeça, os braços. Os detalhes de vestuário
também começam sob a forma de rolinhos. Os bolsos, a gola, a sandália. As
ferramentas podem ser pedaços de pente fino, caquinho de telha, arame,
rolinho, palmatória. É importante manter a umidade do barro, por isso uma
bacia com água recebe as mãos delicadas do artista, no passo a passo da
modelagem. O que o artista não admite, sob hipótese alguma, é a utilização
de forma para moldar as esculturas. “Desse pessoal que trabalha com forma,
eu nunca gostei. Tem peça que só sai de um jeito só. Na mão, a gente faz o
que quer, outro tipo de detalhe, chapéu, fisionomia, o jeito dos gestos.
Tudo é diferente.” É, portanto, com o auxílio das mãos que Manuel Eudócio
vem descrevendo, desde a década 40, o que tem vivido esses anos todos no
Alto do Moura: festejos e experiências do dia-a-dia como batizado, enterro,
casamento. Dois dos nove filhos – Carlos e José Ademildo, e as respectivas
esposas – também compartilham do ofício, mas, para o pai, o mestre Eudócio,
o laço de família e o repertório recorrente são os detalhes que menos
importam, pois cada mão inscreve, com um traço próprio, a obra pessoal,
particular, no mundo da arte: “É como quem escreve o nome”.
Maria Alice Amorim é
jornalista e pesquisadora na área de cultura popular.
(© Continente
Multicultural)
Homem de Barro
Manuel Eudócio é o único artista vivo da geração de Vitalino. E, junto
com o mestre, costurou a teia que une Caruaru ao mundo, o passado ao
presente, o imaginário à realidade. POR BRUNO ALBERTIM
MAIS QUE ARTISTA, o ceramista Manuel Eudócio é um criador de arquétipos.
Cronista de seu tempo, cristalizou no barro cenas e personagens da vida
nordestina que, hoje raras, estão mais presentes no imaginário coletivo do
que na própria realidade. Foi ele quem concebeu as figuras do cavalo-marinho
e do boi-bumbá, personagens do reisado, um dos mais complexos folguedos do
Nordeste, muito popular quando o artista era menino em Caruaru, no agreste
pernambucano. As peças tornaram-se clássicas. Sinônimo imediato da cerâmica
popular nordestina.
Foi aos 20 e poucos anos, final da década de 1940, quando sentiu vontade de
reproduzir o que via e os folguedos de que participava. “Naquela época, o
reisado começava de noite e ia até o amanhecer. A gente só parava para tomar
café ou vinho na casa de alguém”, diz ele sobre a opereta dramática e
satírica na qual dezenas de brincantes misturam tipos populares e
sobrenaturais para encenar embates sociais e religiosos. “Hoje, não sei de
mais nenhum reisado aqui em Caruaru.”
Se já não é recorrente como no passado, o reisado e outras manifestações
encontraram eternidade na arte do ceramista. Aos 75 anos, mais de 200
figuras diferentes, ele se mantém pacientemente dedicado ao ofício de
transformar o barro, com a mesma simplicidade que herdou da louceira Tereza
da Conceição, a avó que o criou após a morte da mãe. “Gosto de trabalhar,
todos os dias. Se não estou pegando no barro, preciso fazer alguma coisa.
Não sei ficar parado”, diz, longe de parecer se importar com o fato de ter
se tornado figura histórica. Manuel Eudócio é o único artista vivo
remanescente da primeira geração da cerâmica figurativa do Alto do Moura, o
bairro de Caruaru reconhecido pela Unesco como maior centro de arte
figurativa das Américas.
Ao lado de Zé Caboclo, Zé Rodrigues, Ernestina e do mais notório de todos
eles, mestre Vitalino, Eudócio ajudou a estabelecer as bases da escola que
mudaria a visão sobre a arte popular do Brasil. Com a quebra de preconceitos
já pavimentada pela Semana de Arte Moderna e pelo Movimento Regionalista
liderado por Gilberto Freyre no Recife, em 1926, sua estética contribuiu
para flexibilizar as rígidas fronteiras que a separam da chamada arte
erudita. Do outro lado do Atlântico, Picasso, por exemplo, chegou a expor um
boi de Vitalino ao lado de suas próprias obras.
“Eudócio é o mais original e instigante entre os artistas brasileiros vivos
que trabalham com o barro”, diz o curador Moacir dos Anjos, diretor do Museu
de Arte Moderna Aluísio Magalhães, a mais importante instituição de arte
contemporânea no Recife. “Não faz sentido classificá-lo como artesão ou
artista popular. Ele é um artista. Como qualquer outro, e ponto. Por uma
questão sociológica, ainda tentam classificá-lo preconceituosamente. Eudócio
põe à prova essa classificação”, diz Moacir. “Sem Vitalino e os demais
artistas do Alto do Moura, o preconceito com a arte popular não teria
diminuído”, diz o historiador Walmiré Dimeron, diretor do Museu do Barro de
Caruaru, um acervo de 2.300 peças da estética do Moura.
Eudócio jamais imaginou que teria peças em qualquer museu. “A gente nunca
pensou que aquilo tivesse qualquer valor um dia. Fazíamos uns boizinhos e
uns cavalinhos para vender como brinquedo na feira. Quando quebrava, os
meninos compravam mais”, diz. “Custava qualquer vintém.”
O MAIS CELEBRADO de todos os cronistas do barro nordestinos, Vitalino não
só influenciou como foi influenciado pelo contemporâneo, que hoje tem, mais
que qualquer estudioso, a memória dos primeiros tempos. Eudócio só pôs para
queimar as 50 peças de cerca de 18 centímetros de seu primeiro reisado após
ver Vitalino vendendo figuras de animais e tipos como retirantes, médicos e
bêbados, na feira de Caruaru. “Quando cheguei em casa, pensei em fazer uns
bonecos parecidos com aqueles de Vitalino”, diz ele. Logo estaria dividindo
tabuleiros com o mestre.
No princípio, Vitalino furava com arame os olhos de suas figuras. Junto com
Zé Caboclo, Eudócio desenvolveu detalhes como os olhos redondos e pintados
de branco que, curiosamente, passariam a ser uma das principais
características da obra vitaliniana. “Eles formavam uma escola muito
democrática, de influências recíprocas. Não havia a figura do mestre,
estabelecida depois pela crítica”, diz o pesquisador Walmiré. Eudócio também
foi responsável por aprimoramentos técnicos.
Com o uso do arame como costura interna, mostrou ser possível dar maior
mobilidade e tamanho às peças. Com a queima longa em fogo lento no forno,
obteve mais durabilidade e resistência para a cerâmica.
Com Zé Caboclo casado com uma de suas irmãs, Eudócio transformou o convívio
cada vez mais íntimo em novas parcerias estéticas. Contribuíram para tirar a
cerâmica do anonimato. “Os compradores sugeriram, e então nós começamos a
criar carimbos para assinar as peças”, diz. “No Museu da Casa do Pontal (Rio
de Janeiro) tem muita peça minha sem assinatura.” No começo, era comum até
que um assinasse trabalhos do outro. Ainda nos anos 1950, marchands como
Augusto Rodrigues começaram a levar os artistas figurativos de Caruaru para
os círculos de arte. Em pouco tempo, Vitalino seria convertido num misto de
celebridade e artigo de curiosidade antropológica. E sua turma, junto.
Os mesmos colecionadores que criavam mercado para os artistas do Alto do
Moura chegaram a dirigir seus estilos, querendo tingir-lhes um primitivismo
idealizado. “Diziam que a peça tinha que ser no barro cru, para ser mais
autêntica”, diz ele. “Por isso, nos anos 1960 a gente praticamente só
deixava as peças no natural, não pintava.”
Mas o artista sempre foi apaixonado pelas cores. “A vida é colorida. O
próprio reisado é cheio de brilho nas roupas”, diz. Se antes Eudócio usava
pigmentos naturais como breu e urucum para colorir as peças, adotou de vez o
uso de tintas sintéticas. “Só deixo na cor do barro quando a peça não tem
nenhuma imperfeição”, diz. “O uso de cores primárias é uma característica da
primeira geração do Moura, um traço tão autêntico na obra de Eudócio como o
barro natural em várias fases de Vitalino, que também usou a cor”, explica
Walmiré.
Entre seus contemporâneos, sempre foi comum que houvesse execução de idéias
alheias. Como se antecipassem as discussões sobre o fim da propriedade a
respeito da obra de arte, a cópia era vista como homenagem. Plágio era
palavra fora do vocabulário. “Eu fazia peça de Caboclo e de Vitalino. E
eles, minhas. Numa época, qualquer um assinava qualquer peça. Depois é que
que cada um passou a marcar a sua”, lembra. Assim, de seu repertório, um dos
elementos mais conhecidos é o “Casamento com noivos a cavalo”. Na verdade,
uma idéia de Vitalino.
“Depois, a gente foi se especializando cada um em cada coisa”, diz. Zé
Caboclo ficou marcado pela confecção de maracatus completos. Eudócio,
notório com seu reisado. Vitalino, com quase tudo que se passava nas ruas e
na cabeça do povo do agreste, tendo o famoso boi como símbolo maior.
Imaginação e barro continuariam a ser matéria-prima para Eudócio filtrar a
realidade. Registrou migrantes em caminhões pau-de-arara, Lampião e Maria
Bonita, vacas na ordenha, casamentos, velhas indo para a missa, quadrilhas
de São João, maracatus, além de profissionais de muito prestígio no
interior, personagens arquetípicos e referenciais do jogo social
provinciano: médicos, dentistas, professores, delegados, advogados.
Mestre Eudócio é reconhecido pela coerência estética. Nunca fez concessões a
peças de menor acabamento e maior fluxo comercial. Um traço, porém, mudou em
sua arte. As esculturas estão cada vez maiores. Sempre gostou de peças de
até um metro de altura, mas não voltará a elaborar objetos diminutos, que
caibam numa caixa de fósforos, como fez há décadas. A vista gasta pelos anos
acumula uma catarata e um glaucoma recém-descobertos. “Hoje o menor tamanho
de um trabalho meu é de 12 centímetros. Menor, não enxergo”, diz, atrás de
lentes cada vez mais grossas.
Ele passa os dias, de segunda a sábado, no ateliê onde mora no Alto do
Moura. Só sai para visitar a feira de Caruaru, alguma exposição esporádica
pelo Brasil e, mais recentemente, o oftalmologista. Não consegue ficar longe
do barro. Pragmático, sabe que o sustento da família vem do trabalho.
“Reproduzo peças minhas consagradas, porque muitos pedem. Mas gosto mesmo é
de criar.”
De sua última lavra, saiu um delicado carrossel de parque interiorano, em
que moradores exibem padronagens de tecidos coloridos, típicos de festa. É
um bom exemplo de como a obra de Eudócio fala mais à memória e ao imaginário
coletivo do que à realidade. Marca de cidades tradicionais cuja coletividade
gravita ao redor de praças, o carrossel de cavalinhos é ainda símbolo da
congregação social interiorana, mas pertence a um tipo de festa que cada vez
mais dá lugar a shows de forró eletrônico ou outro modismo da indústria de
massas. Mas isso não diz respeito a Manuel Eudócio, que, à margem do que é
circunstancial, segue cristalizando seus arquétipos.
(©
Revista Raiz)
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