Julia
Moraes
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CABEÇA DO CORDEL -
Lirinha, com sua barba de
beato: "espíritos com ele no palco"
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Quem é Lirinha, o cantor pernambucano que, com letras
difíceis, se tornou um profeta para os universitários
Marcelo Marthe
José Paes de Lira, ou Lirinha, é
o Antônio Conselheiro dos modernos. Assim como o beato da Guerra de Canudos
(1896-1897) arregimentou uma horda de jagunços e despossuídos profetizando
que um dia jorrariam leite e mel no sertão nordestino, o cantor e compositor
pernambucano seduz a garotada universitária e antenados em geral com
promessas de transcendência. Nos shows de sua banda, o Cordel do Fogo
Encantado, fãs (sóbrios?) o abordam com as conversas mais malucas. "Já teve
gente que jurou ter visto energia emanar de meu corpo. Ou, ainda, espíritos
dançando comigo no palco", diz ele. Surgido há nove anos na cidade de
Arcoverde, no semi-árido de Pernambuco, o Cordel mescla ritmos nordestinos
como o maracatu com guitarras. Mas o que mais chama atenção é a teatralidade
de seu vocalista: com os olhos revirados, como em transe, ele declama letras
que define como "proféticas" e "apocalípticas". Somadas, as vendas dos três
álbuns do Cordel totalizam 80 000 unidades, algo notável para uma banda
independente que não toca nas rádios. Graças ao boca-a-boca e à internet,
tornou-se popular nos circuitos universitários do Sul e do Sudeste. As novas
empreitadas do rapaz reforçam a aura de iluminado. Lirinha cultivou uma
barba como a de Conselheiro para protagonizar sua primeira peça,
Mercadorias e Futuro (que escreveu e co-dirige ao lado da mulher, a
atriz Leandra Leal). No monólogo dramático, ele é um vendedor que faz
propaganda de um livro sobre (surpresa!) profecias. Mas a viagem declarada
do autor (surpresa de novo!) é questionar as relações entre arte e comércio.
Agora, ao mesmo tempo que a peça entra em cartaz em São Paulo, Lirinha
estréia na literatura – com o tal livro de que fala o espetáculo.
Lirinha é discípulo de uma
vertente que há tempos está presente na cultura nacional: aquela que faz a
celebração de um "sertão mítico", por meio de uma estética que "mistura o
moderno e o arcaico". Reza por essa cartilha a literatura do paraibano
Ariano Suassuna, com seu estilo rebuscado e suas referências ao universo
armorial. A tendência está na TV, nas produções dos diretores Guel Arraes e
Luiz Fernando Carvalho. O primeiro comandou a série O Auto da
Compadecida, baseada no livro de Suassuna. Carvalho esteve por trás de
Hoje É Dia de Maria e A Pedra do Reino (também adaptada da
obra do escritor). Passa, ainda, pelo cinema de um Glauber Rocha nos anos
60, em filmes como Deus e o Diabo na Terra do Sol. Lirinha bebe
também de outra influência: o teatro do diretor José Celso Martinez Corrêa,
aquele que transformou a Guerra de Canudos em pretexto para saturnálias em
suas montagens baseadas em Os Sertões, de Euclides da Cunha. A
ligação do cantor com ele é direta. Lirinha fez a trilha sonora de uma das
partes de Os Sertões e, no ano passado, interpretou o secretário do
profeta vivido pelo dramaturgo no longa-metragem Árido Movie, filmado
em sua Arcoverde natal.
Nas letras do Cordel, Lirinha é
messiânico. "Os soldados de Sebastião mostrarão o caminho", brada. Nos
shows, recita poemas extralongos entre uma música e outra. A nova empreitada
literária e teatral representa um passo além em matéria de pretensão. Com 31
anos, ele cria uma peça calcada no próprio passado. O protagonista se chama
Lirovsky. "Ele é um pedaço de mim", afirma. A ação se passa num local
chamado Interlândia. "É meu eu interior", explica. Falar em "ação", a bem da
verdade, é fora de lugar. Não há enredo propriamente – apenas falas
fragmentárias costuradas por sons e luzes que ele mesmo dispara, por meio de
um sistema intricado de pedais e alavancas. Quanto ao livro Mercadorias e
Futuro (Ateliê Editorial; 95 páginas; 25 reais), vejamos uma frase:
"Cada câmbio age sobre a própria forma espaço-tempo se expandindo e se
contraindo através de um cosmo finito mas sem limites". Entendeu, Ariano?
Entendeu, José Celso?
A família de Lirinha é de classe
média. A mãe é professora e o pai, fiscal da Receita Estadual de Pernambuco.
Ele estudou em colégios católicos particulares e chegou a cursar a faculdade
de letras de Arcoverde. Largou o curso para virar cantor. Aos 12 anos,
declamou pela primeira vez em rodas de violeiros. Aos 16, estreou como ator
numa peça infantil, O Gato que Virou Gente. "Eu era o gato", lembra.
O Cordel do Fogo Encantado foi, na origem, um espetáculo de poesia e
música. A descoberta por um empresário ligado ao movimento pop recifense do
mangue beat, em 1999, mudou os rumos do grupo. Lirinha tinha acabado de cair
nas graças do público universitário quando conheceu Leandra Leal. Os dois
estão juntos desde 2002 – e ela tem funcionado como guia em sua carreira.
Ajudou-o, por exemplo, a dar alguma coerência aos textos soltos de sua peça.
"Eram perguntas básicas que eu lançava a ele: quem é esse personagem? O que
você está querendo mesmo dizer?", explica a atriz. Continue, Leandra. Ainda
falta um tanto.
(©
VEJA)
Vende-se poesiaVocalista do Cordel do
Fogo Encantado mostra no teatro a relação conflituosa entre o comércio e a
poesia
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Poesia é mercadoria?
A insistente pergunta retorna aos holofotes, desta vez como fio condutor
do monólogo "Mercadorias e Futuro", escrito e interpretado por José Paes de
Lira Filho, o Lirinha, da banda pernambucana Cordel do Fogo Encantado.
Habituado ao palco na condição de músico e cantador, o artista resolveu
procurar nas artes cênicas o meio para se expressar. "O teatro possibilita
um mergulho maior, um tempo maior de dedicação ao texto", justifica. "Além
disso, ele promove a reunião da música, da palavra e da imagem."
Lirinha se lembra da primeira vez que ganhou dinheiro com poesia. Ele
tinha 12 anos e costumava declamar poemas aprendidos com os avós, grandes
apreciadores dos improvisos da cantoria. "Um cantador me viu dizendo poesia
e me chamou para começar profissionalmente -foi a primeira vez na vida que
tive uma relação com o cachê."
Essa lembrança é retomada pelo personagem Lirovsky, vendedor ambulante de
registros proféticos que protagoniza a peça. "O espetáculo às vezes se torna
um pouco autobiográfico, mas ele traz muita fantasia também, conta muitas
histórias que nunca aconteceram", explica Lirinha. "Mas a relação
conflituosa entre o comércio e a poesia -o que não se vende, o que não tem
preço, o que é sublime- faz parte da minha história pessoal."
Para se preparar para a empreitada, Lirinha contou com a ajuda da
namorada, a atriz Leandra Leal. "Eu estava muito envolvido em um ambiente de
música, que é muito diferente do que o teatro exige em termos de
aquecimento, corpo, voz", explica. "Ela foi fundamental nesse meu retorno e
me ajudou bastante com os problemas que iam surgindo."
MERCADORIAS E FUTURO
ONDE >> Sala Crisantempo
r. Fidalga, 521 - Vila Madalena Tel: 3819.2287
QUANDO >> 5 a 26 de agosto, às terças e quartas, 21h
QUANTO >> R$ 30 (inteira)
CENSURA >> 12 anos
(©
Folha de S. Paulo)