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Relançamento da obra completa de Jorge Amado

04/08/2008

 

 

A obra do escritor baiano Jorge Amado está sendo relançada

Relançamento da obra completa do escritor baiano permite reavaliação de sua importância para a literatura brasileira e, principalmente, cria a oportunidade de compreender a trajetória do autor de Gabriela Cravo e Canela, publicado há 50 anos

Leda Tenório da Motta

Para o Brasil bem-pensante, Jorge Amado nunca foi tema. Trata-se de um objeto não pensado. Panfletário, folclórico, populista, estereotipado, melodramático, inverossímil, comercial e, no mau sentido, socialista, coloquialista, carnavalesco, assim o tem visto todo o nosso scholarship. A muitas vozes, e trazendo à baila a geração de 30 e seu expoente máximo - Graciliano Ramos -, entoa-se que ele está aquém de tudo o que de melhor saiu das vertentes modernistas, em matéria de romances. De todo lado, vem a acusação de que passou distraído pelos verdadeiros problemas de uma sociedade brasileira extremamente injusta, que representou como alegremente ecumênica e sincrética. A tudo isso, uma crítica feita por mulheres, já com um pé nas questões de gênero, acrescentará, desde os anos 70, a pecha de machista e sexista.

Trata-se de uma monotonia quebrada, às vezes, por caprichos classificatórios que mais confirmam que derrubam esse tipo de discurso e o veto, na verdade liminar, que ele traz consigo. Assim, alguns salvaguardam uma segunda fase amadiana - para lançar na roda esse qualificativo ousado -, menos propagandística e mais satírica, de que o turning point seria Gabriela Cravo e Canela. Enquanto outros, sem deixar de notar o apelo fácil e o patético de segunda ordem, admitem certa passagem de uma visão lírica pitoresca de nossa realidade para melhores perspectivas dos conflitos sociais que nos caracterizam. Uma coisa invalidando a outra, como se vê. De tal sorte que só encontraremos algo diverso nas vozes discordantes de sempre. Aqui, um crítico-poeta que evolui à margem da universidade, como José Paulo Paes, por exemplo, não por acaso, o autor de um dos posfácios providenciados para um dos três volumes das obras completas do escritor já disponíveis, suficientemente atrevido para vir opinar, de além-túmulo, que Gabriela Cravo e Canela é "um quadro de tessitura polifônica dos mais bem logrados, de que se pode orgulhar a prosa de ficção no Brasil". Acolá, um boca-do-inferno como Haroldo de Campos, que veio a público, em 2001, por ocasião da morte de Jorge Amado, declarar que o falecido era dono de uma enorme imaginação fabular, e que traços metafóricos de cunho lírico percorriam e davam graça a seus textos. Ambos precedidos nessa sua idiossincrasia por Sergio Buarque de Holanda, que, pedagógico como sempre, num dos artigos hoje recolhidos nas páginas de O Espírito e a Letra, nos fala de uma força poética, justamente lírica, não prejudicada pela identificação emotiva desse sentimental nostálgico com o Lumpenproletariat dos morros e das areias baianas.

Mas quem se aprofundar na história dessa fortuna crítica descobrirá um tópico ainda mais demolidor que todos os anteriores, porque mais técnico. Em quase 80 anos de recepção aversiva, todos ou quase todos são levados a referir o escritor a Graciliano. E a inferir desse comparatismo obrigatório o regionalista menor, o sub-Graciliano. É por esse parâmetro, principalmente, que se mede Jorge Amado. Em dois sentidos complementares. Em termos de estilo, contrapõe-se a crispação, a secura, a economia de meios de um às abundâncias, fluências, molezas, malemolências do outro. Em termos temáticos, o pessimismo, o fundo sombrio de um, menos pactuado com um obreirismo de programa, ao partidarismo cheio de fé no progresso social do outro.

Disparados dos mais prestigiosos departamentos da universidade brasileira, esses são veredictos que saem, por isso mesmo, de uma tradição crítica forjada no interior do marxismo e dos rigores adornianos. Estamos falando daquele método crítico que, com maior ou menor felicidade nos resultados, entrelaça forma literária e forma social, pautando-se por buscar em tudo o estigma da história, o álibi ideológico escondido. Daquela escola que viu nas experimentações das vanguardas brasileiras tardias - concretismo, tropicalismo, desdobramentos locais do pós-moderno - um atestado do atraso nacional, uma subserviência ao modelo estrangeiro, uma "idéia fora do lugar". O que não a impediu de também ver numa escritura neutra, transparente, direta como a de Jorge Amado, na sua maneira de integrar a língua comum, no seu suposto não-estilo, a reiteração de um lugar-comum - somos mestiços, sensuais, desencanados - e, neste caso, idéias por demais no lugar. Idéias saídas da pregação da mistura feliz das raças e das diferenças, respeitosas demais do preconceito nacional para serem respeitáveis.

Diante de tudo isso, e dado o recente desencadeamento da edição das obras completas de Jorge Amado por uma das mais prestigiosas editoras brasileiras, a boa pergunta é: estaria em curso no País em que a "revisão" virou gênero, de tanto que tivemos revisões críticas ao longo da segunda metade do século passado, uma revisão de Jorge Amado? Será que, com a coleção de 35 títulos atualmente em fase de preparação começamos a "compreender", principalmente no sentido forte da palavra - conter, abranger, incluir -, a obra em questão? A tirá-la do seqüestro? A dar-lhe direito de cidade?

Se fosse verdade, os comentários inseridos no final dos belos volumes que nos chegam - com uma farta iconografia, reproduções de manuscritos, fotos do escritor, com seu physique du role, porém modesto aparato crítico, orelhas anônimas, ausência de notas, posfácios em vez de apresentações - talvez não tivessem que ser assinados por um morto - José Paulo Paes - e dois estrangeiros - José Saramago e o jornalista português Miguel Sousa Tavares. Nem teriam o tom de tributo que têm - mesmo no caso do texto infinitamente superior de José Paulo Paes, que não padece da bonomia insípida que valeu a Saramago o prêmio Nobel -, mas seriam estudos ou ensaios. Ainda temos mais de 30 volumes pela frente. Será que vem aí gente saída do establishment acadêmico local para reforçar o trabalho?

Mas a pergunta talvez mais importante seja outra. Será que a arte de Jorge Amado suporta uma revisão crítica? Haveria, de fato, algo a descobrir ou redescobrir?

Ajudada por todos aqueles que enalteceram o contador de histórias, e mesmo por aquelas novas gerações, geralmente unicampineiras, menos adornianas e menos indignadas, que, hoje em dia, admitem o history teller, embora notando que ele não resolve bem as intrigas que arma, arrisco aqui alguns palpites críticos.


OBRA DO ESCRITOR SERÁ RELANÇADA ATÉ 2012, ANO DE SEU CENTENÁRIO

REEDIÇÃO:
Até 2012, quando será comemorado o centenário de nascimento de Jorge Amado, a Companhia das Letras deve lançar novas edições de todos os seus livros. A promessa faz parte do plano de relançamento que garantiu à editora os direitos de edição da obra, leiloados pela família no ano passado. Os volumes ganharam novos posfácios assinados por escritores e críticos como Roberto DaMatta, Milton Hatoum, Ana Maria Machado, Mia Couto, Affonso Romano de Sant?Anna, José Paulo Paes e José Saramago, entre outros. A primeira leva, lançada em março, tinha Dona Flor e Seus Dois Maridos, Capitães da Areia, Mar Morto, A Morte e A Morte de Quincas Berro D?Água, Tocaia Grande e o infantil A Bola e o Goleiro. Acabam de ser lançados A Descoberta da América pelos Turcos, Gabriela Cravo e Canela e Terras do Sem-fim. Ainda este ano, devem ser lançados Hora da Guerra, Tenda dos Milagres, Tereza Batista Cansada de Guerra, O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá, Tenda dos Milagres, O Capitão-de-Longo-Curso, Jubiabá e O Milagre dos Pássaros.

(© Estadão)


O tecelão de infinitas ficções

Na sua fantástica pulsão de escrita é como se tudo existisse no mundo para desembocar num livro

Leda Tenório da Motta

Primeiro, Jorge Amado é um grafômano. Pouco importa que suas histórias não se resolvam genialmente diante desse fato mais relevante que é a sua grafomania. Essa sua fantástica pulsão de escrita - de que inquietação, de que tristeza, de que ferida sai isso? - que o leva a tecer infinitamente ficções, a não poder parar de contar, como se tivesse sido escolhido pela literatura, e não o contrário. Como se tudo existisse no mundo para desembocar num livro.

Depois, nem por ser neutra, transparente, colada à oralidade, uma língua de escritor precisa ser vista como sem estilo. Pode-se suspeitar, ao contrário, que haja nessa não-marca, nessa arte pobre, uma limpeza, um frescor, uma sinceridade, uma renúncia, uma audácia. Parece que essas são qualidades da fatura de Jorge Amado. Quem sabe mais apreciáveis que os esforços técnicos evidentes de certas outras literaturas aplaudidas pela mesma crítica que detesta as suas singelezas? Como a de Chico Buarque de Holanda, por exemplo, com seus muitos tiques e truques pós-modernos: o jogo de espelhos, o narrador cindido, a estrutura em abismo, tudo isso que tem apenas valor de efeito.

Além disso, Jorge Amado atualiza e complica o sincretismo de Gilberto Freyre, cuja influência sobre sua obra ele reivindica, e os críticos deploram. Incluiu em suas fusões raciais os turcos, os sírios e os libaneses, a que dedicou, aliás, todo um livro, um dos que acabam de ser lançados agora, com Saramago no fim: A Descoberta da América pelos Turcos. E não é só o reconhecimento do valor e da inter-relação de todas as etnias que está em seus murais romanescos. Há um outro painel ao lado deste, o religioso. E uma deliciosa ironia neste outro. Se estamos hoje acostumados com os deuses africanos convivendo tranqüilamente com os romanos, não era assim quando, no início dos anos 30, o escritor entra em campo. Salvador - que os baianos chamam de Bahia - é o lugar por excelência das igrejas católicas. Ora, abordando o papel da religiosidade na cultura baiana, Jorge Amado planta a umbanda e os orixás no centro desse catolicismo. Faz isso com humor, como quem apenas descreve. É uma leveza agnóstica que ganha pontos, retrospectivamente, quando a confrontamos com as travessias místicas - estas, sim, para incautos - de Paulo Coelho, para o remetermos ao escritor que o ultrapassou em fama, aqui como lá fora.

É verdade que essa mistura chegou aos países comunistas antes mesmo que aqui. Que, depois dessa escalada, facilitada pelo ar do tempo de uma era em que a paixão socialista era o distintivo dos intelectuais, ele se transformou numa espécie de retratista oficial do Brasil, dentro e fora daquilo que chamávamos, então, a "cortina de ferro". Que foi angariando cada vez mais público. E o grande pecado é escrever para o público, como dizia Valéry. De muitos modos, todos os escritores modernos, malditos ou não, disseram o mesmo: escreve-se para si mesmo, para um alter ego, para um leitor ideal, por escrever, jamais para o leitor comum.

Mas não sejamos maniqueístas, alguns prestidigitadores podem ficar fora dessa regra e daquela outra, dela inseparável, segundo a qual tudo o que o mercado consagra é barbárie. Em seu livro Não Incentivem o Romance, o crítico italiano Alfonso Berardinelli, que passou recentemente por São Paulo e pela USP, fala em best sellers "involuntários" e "aristocráticos", obras literárias originais e de valor que tiveram, e continuam tendo, um sucesso enorme, mas seriam memoráveis para os críticos e historiadores da literatura ainda que não fosse assim. Põe nessa categoria a prosa e a poesia. Lembra o que foi para a juventude americana On the Road de Kerouak. Assinala a enorme penetração de livros como O Leopardo de Lampedusa, Cem Anos de Solidão de García Márquez e O Complexo de Portnoy de Philip Roth. Sobre o livro de Roth, nota que ajudou o crescimento de uma indústria do romance americano, entre os anos 60 e 70, tanto quanto Love Story de Eric Segal e Aeroporto de Arthur Hailey.

Fato e companhias surpreendentes, quando se conhece o humor judaico corrosivo e autocorrosivo e a fatura celiniana que fazem deste judeu de New Jersey que observa a América o mais importante escritor americano vivo. Não se trata de comparar Jorge Amado a nenhum dos anteriores, nem mesmo a García Márquez, de quem ele tem o furor narrativo, a épica e as mitologias, não a linguagem suntuosa e sobrecarregada. Mas de suspeitar que ele pode ser uma espécie de prestidigitador.

Em Discussão, Borges, que também viajou pelo mundo conquistando pessoas e enchendo auditórios, dizia que, tendo querido levantar um testemunho contra a humanidade, Swift deixou um livro para crianças, As Viagens de Gulliver. Vendo as coisas ao contrário, uma gravidade ali onde antes só parecia haver ligeireza, perguntemos: e se houvesse uma volta do parafuso dessas em Jorge Amado?

Leda Tenório da Motta é pesquisadora do CNPq, professora no Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da PUC/SP, crítica literária e tradutora. Publicou, entre outros, Sobre a Crítica Literária Brasileira no Último Meio Século (Imago, 2002)

(© Estadão)


O que dizem os críticos e escritores


"Li Capitães da Areia no ginasial. Foi uma descoberta. Jorge Amado comove mostrando imagens daquilo que, sabemos, não deveria ocorrer, muito embora de fato acabe sendo parte do nosso costume. Como escritor, teve a coragem de mudar de estandarte mais de uma vez e ainda assim permanecer fiel à invenção literária. Meu livro preferido dele é A Morte e a Morte de Quincas Berro d?Água. Aí está o social e o fantástico com humor. Ensino-o freqüentemente e os alunos americanos insistem na lenda, ?Mas afinal quando morreu o Quincas?? Respondo: morreu quando essa pergunta tiver resposta. Evoé, Jorge Amado!"
JOSÉ LUIZ PASSOS
PROFESSOR DE LITERATURA BRASILEIRA DA UNIVERSIDADE DA CALIFÓRNIA

"É o papa do pitoresco nacional. Por ?pitoresco? entendo seu esforço de projetar uma identidade nacional popular, que trai um forte apelo populista. A chave desse apelo é o reforço de certa mitologia erótica baiana, a qual, por assim dizer, dessublima a dialética em favor do requebrado. Supõe-se que a sedução do movimento ajude a dissolver os conflitos de classe do País. Que seus maiores sucessos aconteçam na forma de novelas de TV é demonstração de sua inclinação mais natural."
ALCIR PÉCORA
PROFESSOR DE TEORIA LITERÁRIA DA UNICAMP

"Jorge não foi um artífice da prosa estética. Era um narrador à solta, escrevendo de um modo esparramado como as ondas da Bahia de Todos os Santos. Não teve sorte com a crítica. Foi vítima tanto de elogios banais quanto do jesuitismo uspiano. Mas, apesar de concessões e idealizações, soube chegar às misturas genéticas e simbólicas, afetando a velha hierarquia cultural brasileira. E criou coisas como Gabriela, Quincas e Tocaia Grande, que estão entre o que nossa literatura produziu de melhor."
ANTONIO RISÉRIO
ANTROPÓLOGO E POETA

"Uma das leituras mais prazerosas da minha adolescência foi Capitães da Areia. A sedução parece se encerrar na duração do acompanhamento da maioria das narrativas de Jorge Amado. Não é pouco, mas também não é muito. E há disjunções que não preocupam o autor, como a que se dá entre a história de Gabriela e a dos fazendeiros e políticos de Ilhéus, artificialmente engatadas. Há mais apuro expressivo em Os Velhos Marinheiros. É um romancista a quem se deve o despertar do interesse de inúmeros leitores pela ficção literária."
ALCIDES VILLAÇA
PROFESSOR DE LITERATURA BRASILEIRA NA USP

"Jorge Amado deu uma forma literária poderosa a um imaginário popular romântico da cultura brasileira que se consubstanciou em seus principais romances, a partir de Gabriela. Já a primeira fase de sua obra sofreu direcionamento político e pragmático, em boa parte a serviço de um ideário de partido, e hoje tem importância mais histórica e sociológica que propriamente literária. Mas é preciso não esquecer que Jorge foi também um grande formador de leitores. O que mais gosto? Hoje, A Morte e a Morte de Quincas Berro d?Água, síntese perfeita do mundo dele. Mas lembro do humor maravilhoso de Dona Flor."
CRISTOVÃO TEZZA
ESCRITOR

"Jorge Amado representa, a partir de Gabriela a face dionisíaca do regionalismo do Nordeste. Abandonando o sectarismo político, reencontrou-se com uma humanidade literalmente à flor da pele, celebradora do corpo e da alegria. Corpo em festa, inclusive na morte, como na extraordinária novela A Morte e a Morte de Quincas Berro d?Água, em que o escritor atinge o ápice de sua capacidade de fabulação, sem esquecer que o segundo texto do volume Os Velhos Marinheiros, com as aventuras do comandante Vasco Moscoso, mantém o mesmo nível do primeiro, o Quincas. Com Amado, a ficção do Nordeste deixou de privilegiar a aridez. Literatura solar, não do sol que resseca, mas do sol que acende a vida."
ANTONIO CARLOS SECCHIN
POETA E ENSAÍSTA

"Minha aproximação a Jorge Amado é sobretudo afetiva. Foi o primeiro escritor que conheci; quando vinham a Porto Alegre ele e Zélia Gattai hospedavam-se em casa de meu primo, o artista plástico Carlos Scliar. Eu era um menininho e minha mãe levava-me à casa do Carlos para olhar aquele homem que realizava o prodígio de escrever livros. Adolescente, militante estudantil, via nele um guru político, pelo que, aliás, ele pagou um preço, praticando o chamado realismo socialista, que era na verdade literatura de propaganda. Equívocos à parte (literários, inclusive), o certo é que Jorge foi um escritor autenticamente brasileiro. Dele, prefiro a obra que insistentemente me recomendava: Tenda dos Milagres."
MOACYR SCLIAR
ESCRITOR

"Seu principal feito foi criar uma obra onde a nossa gente se encontrou - nos personagens, nas situações, na linguagem. Isso o tornou muito popular e contribuiu para formar um público leitor brasileiro. Na hora de indicar um preferido, oscilo entre Tenda dos Milagres, o mais complexo e com uma sacação em profundidade sobre a mestiçagem cultural brasileira, e Os Velhos Marinheiros, com suas duas novelas magistrais e deliciosas em que real e fantástico se interpenetram com muito humor."
ANA MARIA MACHADO
ESCRITORA E PROFESSORA

(© Estadão)


As delícias do retrato de um povo

Relançamentos confirmam que o Brasil é formado por bem mais que três raças

Ronaldo Correia de Brito

Conheci Jorge Amado aos 12 anos, ouvindo a narrativa de Seara Vermelha. Meu professor de religião do curso ginasial, cansado de ensinar que o Pai é Deus, o Filho é Deus e o Espírito Santo é Deus, contava para seus alunos os romances que lia, salvando-nos do tédio e das ameaças do inferno. No interior do NE havia muitos narradores ambulantes, pessoas cuja profissão era ler cordéis, contar filmes e histórias tradicionais. Essas ?bibliotecas? orais percorriam as casas sertanejas e, num tempo em que ainda não havia rádio e TV, representavam o principal meio de transmissão do conhecimento.

Até a década dos anos 1960, as tipografias nordestinas imprimiam centenas de milhares de folhetos e almanaques, lidos nas feiras, em casa ou no trabalho. Como na Inglaterra de Shakespeare, os poetas populares se apropriavam de qualquer literatura produzida, fossem os autores vivos ou mortos, e a reescreviam no formato de cordel. Jorge Amado teve três ou quatro romances adaptados para folheto, por um poeta que eliminou os palavrões e corrigiu a ortografia dos originais. Por toda a vida, ele se alimentou no imaginário popular e também proveu artistas que transformaram seus romances noutras linguagens, como o cinema e a TV. José Saramago escreve que "durante muitos anos Jorge Amado quis e soube ser a voz, o sentido e a alegria do Brasil. Poucas vezes um escritor terá conseguido tornar-se, tanto como ele, o espelho e o retrato de um povo inteiro".

Pode-se ler Jorge Amado pelo simples gosto da leitura, igual ao que se sente lendo Charles Dickens, Alexandre Dumas ou Honoré de Balzac. Seus romances históricos de costumes não possuem uma sociologia e antropologia com os acabamentos de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, mas foi graças a Jorge Amado que boa parte dos leitores do mundo começou a conhecer o Brasil. Mesmo quando carrega nas cores exóticas e no picaresco, ou quando o romantismo prevalece sobre o realismo, é pelo imaginário do romance que ele nos faz chegar perto de um Brasil que não é apenas o de Machado de Assis e o de Guimarães Rosa. Escrevendo sobre Gabriela, Cravo e Canela, José Paulo Paes chama a atenção para quanto "o espontâneo talento de narrador testemunhado em Cacau amadurece em arte de mestre na grandeza de um quadro de tessitura por assim dizer polifônica, dos mais bem logrados de que se pode orgulhar a prosa de ficção do Brasil".

Agora que está na moda o enredo das migrações e os romancistas se deslocam pelas várias geografias do planeta, nada mais pertinente que ler e reler Terras do Sem-fim (1943), Gabriela Cravo e Canela (1958) e A Descoberta da América pelos Turcos (1992) em novas edições da Companhia das Letras. Nos dois primeiros romances há uma épica na luta pela conquista da terra, as florestas de São Jorge dos Ilhéus, e no movimento migratório de nordestinos fugitivos da seca, aventureiros do sudeste, libaneses, sírios, turcos e russos, desejosos de enriquecer no eldorado do cacau. Jorge Amado, primeiro do que todos e melhor que ninguém soube registrar a "polifonia das vozes sociais, cada qual com a sua inflexão própria e seu universo de valores", como escreveu Paes, mostrando-nos um Brasil que não é feito apenas da mistura de três raças: portugueses, índios e negros.

Já a salvo do realismo socialista que marcou seus primeiros escritos, no enredo de Terras do Sem-Fim ainda prevalece a luta dos coronéis pela posse de latifúndios: a gente do Coronel Horácio contra os Badarós. Tudo construído em meio a dezenas de pequenas tramas, histórias bem amarradas ao fio narrativo principal, como a do negro Damião, um matador de tocaia que se desgraça por causa de um encantamento. É possível identificar pegadas de realismo mágico em algumas dessas narrativas paralelas, e um certo romantismo à José de Alencar, sobretudo na idealização de tipos exóticos, como o negro feiticeiro Jeremias.

Passados 65 anos do lançamento de Terras do Sem-Fim, ainda reconhecemos no Brasil a mesma devastação da terra, os desmatamentos, os assassinatos por encomenda e a falta de lei. Deslocou-se a lente da mata atlântica de Ilhéus para a floresta amazônica. Entre a publicação de Terras do Sem-Fim e Gabriela se passaram apenas 15 anos, mas apesar de todas as correlações possíveis entre os dois romances, em Gabriela, o assunto prevalente é o declínio do poder dos coronéis e a ascensão dos exportadores de cacau. Os personagens já não estão perdidos em matas encharcadas, temendo cobras, onças e as febres malignas, que matam em apenas três dias. Uma sociedade civil e urbana contaminada pelos anseios da gente das cidades grandes, o cinema, a música, as viagens e o consumo, de olhos voltados para o Rio e a Europa já não aceita a moral antiga, a submissão da mulher, o poder sem limites dos coronéis. É também como se Jorge Amado, liberto da coerção do comunismo, pudesse deixar solta a sensualidade, os anseios feministas e o gosto pelos signos do capitalismo.

Gabriela se inscreve, como personagem, numa dimensão idílica que lembra algumas heroínas românticas, por mais estranha que pareça a comparação. É inteiramente idealizada a sua viagem fugindo da seca, a permanente sensualidade, o sexo sem culpa. Também é de estranhar seu enorme talento na cozinha, considerando que ela veio de um mundo sertanejo pobre, de culinária exígua. Mas tudo serve à fabulação em torno de novos valores éticos e culturais, cuja nota prevalente é o idílio entre o turco Nacib e a mulata Gabriela, e o confronto entre o coronel e o exportador: a tradição e a inovação.

A Descoberta da América pelos Turcos é uma impagável novela com os mesmos ingredientes da Megera Domada, de Shakespeare. Aos 80 anos, Jorge Amado esbanja sensualidade. O personagem Adib Barud possui uma técnica para domar a esposa Adma Jafet e todas as mulheres rebeldes; tão radical que escandaliza até os não feministas: "Mulher a gente amansa no mimo ou na porrada. Ou bem variando as duas coisas." Adib é de origem árabe, um "turco", como costumavam chamar sírios e libaneses, o que não ameniza o machismo do texto. Mas, pode-se fazer vista grossa ao ?politicamente incorreto? e seguir o conselho do autor: "Espero que os leitores se divirtam com as peripécias dos esponsais de Adma, acontecidas na cidade de Itabuna, nos começos da civilização do cacau, nos primeiros anos do século, quando finalmente os turcos descobriram a América, desembarcaram no Brasil e se fizeram brasileiros dos melhores."

Ronaldo Correia de Brito médico e escritor, é autor de Faca e Livro dos Homens

(© Estadão)

Nas Livrarias

NOVAS EDIÇÕES DE JORGE AMADO DISPONÍVEIS PELA COMPANHIA DAS LETRAS:


- Dona Flor e Seus Dois Maridos (480 págs., R$ 51)

- Capitães da Areia (288 págs., R$ 33)

- Mar Morto (288 págs., R$ 33)

- A Morte e a Morte de Quincas Berro D?Água (112 págs., R$ 24)

- Tocaia Grande (472 págs., R$ 51)

- A Bola e o Goleiro (40 págs., R$ 26)

- A Descoberta da América Pelos Turcos (128 págs., R$ 32)

- Gabriela Cravo e Canela (428 págs., R$ 49)

- Terras do sem-fim (288 págs., R$ 41)

PRÓXIMOS LANÇAMENTOS PELA COMPANHIA DAS LETRAS:



2008


- Hora da Guerra

- Tereza Batista Cansada de Guerra

- O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá

- Tenda dos Milagres

- O Capitão-de-Longo-curso

- Jubiabá

- O Milagre dos Pássaros


2009

- Tieta do Agreste

- O Compadre de Ogum

- Farda, Fardão, Camisola de Dormir

- São Jorge dos Ilhéus

- ABC de Castro Alves

- Bahia de Todos os Santos

- Seara Vermelha

- Suor

- O Menino Grapiúna


2010

- O País do Carnaval

- O Cavaleiro da Esperança

- O Amor do Soldado

- Os Pastores da Noite

- O Sumiço da Santa

- Cacau

- Os Subterrâneos da Liberdade

- Os Ásperos Tempos

- Agonia da Noite

- A Luz no Túnel



2011

- Navegação de Cabotagem



OUTRAS EDIÇÕES:

- Tieta do Agreste (Record, 576 págs., R$ 52)

- O Menino Grapiúna (Record, 120 págs., R$ 25)

- Navegação de Cabotagem (Record, 546 pág., R$ 61)

(© Estadão)

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