04/08/2008
Obra do vencedor do Prêmio Camões vai do hermético ao
divertido, da sociologia à política de botequim
Vinicius Jatobá
São muitos Ubaldos Ribeiros que cabem em João Ubaldo
Ribeiro. Do hermético e cerrado ao leve e legível e divertido; do sério
pensador político ao politiqueiro de botequim; do existencial e etéreo
ao profano e carnal; o prosador exigente dos romances, o escritor
relaxado das crônicas. Inclusive o autor de esplendorosas obras-primas,
e de medonhos fracassos (como Diário do Farol e Setembro Não Tem
Sentido). Mestre absoluto de si mesmo, sufocado na sua recepção pela
euforia míope da crítica que quer um novo Rosa e Lispector quando temos
Nassar, Osman Lins, Nava e o próprio Ubaldo já ocupando espaços cativos
nesse cimo elevado de excelência, é um escritor do qual o Brasil parece
sentir um verdadeiro orgulho encabulado diante de sua obra. Que Ubaldo
Ribeiro, recém-vencedor do Prêmio Camões, pertence ao grupo de grandes
mestres do continente, que está à altura de Naipaul, García Márquez,
Rulfo, Nassar, Faulkner, Onetti, isso devia ser já moeda corrente e
motivo de celebração: qual outro autor vivo de expressão portuguesa em
atividade possui três obras-primas? Lobo Antunes escreveu Exortação aos
Crocodilos e Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura, Cony criou
Quase Memória e Francisco Dantas tem seu Coivara da Memória, Hatoum tem
Relato de Um Certo Oriente, Zulmira Ribeiro Tavares é dona dessa jóia
secreta chamada O Nome do Bispo e Piñon pode exibir orgulhosa sua novela
Fundador. O único escritor de língua portuguesa hoje que faz frente a
João Ubaldo Ribeiro, colunista do Estado, tanto no manejo luxuriante da
língua quanto na versatilidade imaginativa e criadora, é José Saramago e
a diferença entre eles é o Prêmio Nobel. Diferença essa, inclusive, que
qualquer outubro sueco desses poderia anular sem a menor surpresa.
No espectro geral, existem dois Ubaldos. O primeiro Ubaldo, furioso e
cerrado, agressivo e selvagem, autor da inegociável seqüência de
obras-primas Sargento Getúlio, Vila Real e Viva o Povo Brasileiro.
Depois, o Ubaldo enveredando na curiosa e arriscada aventura da
legibilidade com obras instigantes e envolventes (e subestimadas) como O
Sorriso do Lagarto, O Feitiço da Ilha do Pavão e Miséria e Grandeza do
Amor de Benedita. Numa situação como essa, em que cada leitor parece se
apegar a um dos Ubaldos, como avaliar o panorama geral sem prejudicar os
aspectos particulares de cada faceta? Impossível saber a resposta, mas é
quase certo que, ao republicar toda a obra de Ubaldo em seqüência num
espaço de quase um ano a Alfaguara esteja criando a oportunidade de
saber, afinal, e para aqueles que ainda possuem dúvidas, de que matéria
predominante Ubaldo é feito.
O primeiro Ubaldo é, curiosamente, um modernista clássico. Ambicioso e
radical, teórico e programático (como todos os grandes autores
modernistas), abraçando a matéria social a partir de uma nova tensão com
a forma, um Ubaldo que escreve buscando um difícil equilíbrio entre o
vernacular e erudito e que deseja, abertamente, pensar o Brasil pela
ficção. Cada um dos três primeiros romances é um tratado teórico sobre o
Brasil, inscritos claramente num projeto nacional muito peculiar dos
anos 1930-40 (o mesmo que influenciou Rosa), e buscando numa prosa de
natureza denunciativa propor mudanças na sociedade brasileira. Todos os
temas caros à sociologia do período estão nos romances desse primeiro
Ubaldo: o racismo, a miscigenação, o conflito entre o público e privado,
os limites da autoridade estatal, o vetor sincrético das relações
sociais, a questão agrária, o poder político do latifúndio, etc., etc.
São livros experimentais, laboratórios do pensamento político e
sociológico, em que Ubaldo dilui com voltagem poética motivos de
urgência de uma utopia nacional. O ótimo livro Política tem o subtítulo
que denota o tom de Ubaldo quando escreveu esses três primeiros
romances: "quem manda, por que manda, como manda".
Sargento Getúlio é a grande narrativa sobre esse desmando geral. Um
sargento da polícia militar deve transportar um adversário político até
a cidade de Aracaju. Estamos no coração da violência do Estado, da ação
total e impune que seus agentes possuem e utilizam na contenção de uma
ordem que interessa a um grupo privado. O hábito enraizado da
privatização do espaço público atinge nesse romance o mais alto grau de
perversidade, sadismo e violência. Quem manda na política regional?
Ubaldo está pensando a questão agrária, a questão do campo, tanto em
Getúlio quanto Vila Real, e dando uma resposta mais rica que a
sociologia poderia dar. Viva o Povo Brasileiro é a resposta ficcional a
antropologia de Darcy Ribeiro - um livro que tenta pensar a experiência
total da formação (e essa é a palavra adequada) do povo brasileiro, da
sociedade brasileira. Livro de natureza fragmentária e acumulativa, com
uma pletora impressionante de tipos sociais, o romance percorre quatro
séculos da história brasileira e não há ponto capital e assunto
importante que não repensa e reconstrói. Grande espelho partido que
jamais fecha um sentido geral (ao menos no plano físico, já que as almas
sempre retornam no romance), Viva o Povo assassina também qualquer
possibilidade de seqüência do projeto anterior já que tanto em seu
fenômeno circunscrito (Sargento Getúlio e Vila Real e os contos) quanto
geral e amplo (o próprio Viva) e até teórico (o ensaio Política) Ubaldo
esgota todos os veios com que se comprometeu inicialmente.
Para onde seguir? Há três escolhas: o enigmático e festejado silêncio
(Nassar), a multiplicação coerente (e até certo ponto cosmética) das
dificuldades estilísticas (Lobo Antunes, que cada vez se torna mais
incomunicável), ou a pouco prestigiosa aventura pelo terreno da
legibilidade (como fez Saramago). Se Ubaldo escolhesse o silêncio,
ninguém teria dúvidas de sua grandeza criativa, que é espantosa; a
multiplicação coerente das dificuldades manteria seu status quo entre os
críticos entusiasmados e seu público restrito sem arriscar novos
espaços; mas Ubaldo literalmente (e felizmente) meteu o pé na jaca e
enveredou por uma abertura total ao humor, erotismo e jogo em sua
narrativa. Antes, confrontado com a prosa de Vila Real, o leitor se
coloca como diante de um artefato em exposição, perfeito e intocável. No
mundo de O Sorriso do Lagarto e O Feitiço da Ilha do Pavão o leitor está
mergulhado na matéria mesma do livro, rindo e se divertindo, enquanto
realmente se importa com as personagens. O que é O Sorriso do Lagarto?
Uma engenhosa mistura de romance policial com ciência ficção, com
pitadas deliciosas de sacanagem e picardia. Estão ali temas sérios como
racismo e desigualdade social, questões de saúde como o surgimento da
aids, os limites éticos das experiências científicas, etc, etc. Mas o
livro é de leitura compulsiva. O mesmo engenho com a linguagem de antes
está presente, mas agora Ubaldo encena uma generosidade amadiana e
carinho com as personagens até então inéditos.
O Feitiço da Ilha do Pavão é o lado B de Viva o Povo Brasileiro: tudo
que é rotundo e taciturno e sério e dramático aparece agora num
luxuriante festim de euforia, agitação, dinamismo. Romance histórico e
sentimental, com a típica pitada literária de putaria que a baianada tem
orgulho de assumir e o resto do Brasil tem vergonha de escancarar, o
livro é uma maravilha. Depois de escrever literatura ?séria? como nenhum
outro de seus contemporâneos das décadas de 1970-80, Ubaldo cria uma
variação seminal riquíssima dos romances de maturidade de Jorge Amado:
mantendo deles os jogos de corpos e sentidos, certos motivos e agilidade
narrativa, mas dando um passo além ao dedicar aos temas vulgares e
quotidianos uma prosa invulgar e prestimosa (exatamente como García
Márquez, por exemplo). Se há uma semente verdadeiramente seminal de uma
grande prosa de entretenimento no Brasil, o mesmo Ubaldo hermético de
Vila Real contraditoriamente a plantou e semeou com zelo de mestre na
década de 1990. O produto mais bem acabado desse segundo Ubaldo é
Miséria e Grandeza do Amor de Benedita. Equivale na obra de Ubaldo o que
A Descoberta da América Pelos Turcos é na obra de Jorge Amado: uma
sublime e iluminada realização da leveza, generosidade e alegria
criadora que não ultrapassa meras 100 páginas mas contagiam uma vida.
Ubaldo ainda quer delimitar "quem manda, por que manda, como manda" no
Brasil (principalmente no recôncavo baiano), e tem um agudo olhar afiado
para as mazelas e os mecanismos de dominação político, mas agora também
se pergunta, sacanamente, "quem come quem?", e essa pergunta é toda uma
festa.
Grandes autores brasileiros arriscaram antes mudanças de tom em suas
obras. Após o livro-limite Grande Sertão: Veredas a prosa de Rosa
caminhou para os mais tímidos e discretos vocábulos e sintaxes de
Tutaméia e Estas Estórias, o vibrante e experimental Osman Lins (e a
morte precoce de Lins é a maior tragédia literária brasileira, nossa
maior perda cultural) após Avalovara e A Rainha dos Cárceres da Grécia
planejava para A Cabeça Levada em Triunfo uma narrativa de aventuras com
cangaceiros e muitos tiros, e até mesmo Lispector, a grande rainha do
hermetismo, flertou abertamente no final de sua vida com a literatura
erótica e sentimental tanto em A Via-Crúcis do Corpo quanto em seus
microcontos para jornais e revistas. Nenhum outro autor, no entanto,
bancou e assumiu com tanta insistência essa mudança quanto João Ubaldo
Ribeiro a ponto de parecer mais um rompimento radical que uma mudança
natural de curso. E essa talvez seja a imagem geral que se tenha em
breve de Ubaldo Ribeiro com as reedições de sua obra: um grande criador
com um pé em Guimarães Rosa e Graciliano Ramos e outro em Jorge Amado e
Érico Veríssimo, inteiramente ele mesmo, rindo e se divertindo ao criar
em quase quatro décadas uma das obras mais fascinantes e ricas (e
deliciosamente incoerente) de nossa recente literatura.
Vinicius Jatobá é crítico literário
(©
Estadão)
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Com relação a este tema, saiba mais (arquivo NordesteWeb)
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