Cerca de 300 pessoas foram à cerimônia, realizada no Rio
Filho declamou trecho do clássico "João Valentão'; compositor foi
sepultado próximo ao mausoléu onde está Carmen Miranda
DA SUCURSAL DO RIO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, NO RIO
Acompanhado por quase 300 colegas da música, parentes e fãs, o corpo do
compositor Dorival Caymmi foi enterrado no cemitério São João
Batista, no Rio, embalado pelos últimos versos do clássico "João Valentão",
declamados pelo filho Dori.
Junto da sepultura, com o vozeirão que lembra o do pai, Dori recitou: "E
assim adormece esse homem/ Que nunca precisa dormir pra sonhar/ Porque não
há sonho mais lindo do que sua terra, não há".
"Essa frase que meu pai escreveu está colada em mim desde que nasci", disse
ele, sob aplausos dos irmãos, Nana e Danilo, da tia Dinahir (irmã de
Dorival) e de compositores como Marcos Valle, Ronaldo Bastos, Paulo Jobim,
Fagner, Jorge Mautner e Rildo Hora.
Caymmi morreu anteontem no apartamento em que vivia, em Copacabana, aos
94 anos, vítima de insuficiência renal e falência múltipla dos órgãos. A
viúva, Stella Caymmi, 86, está em coma há 11 dias.
O corpo do artista foi velado da tarde de sábado à tarde de domingo na
Câmara dos Vereadores do Rio, por onde passaram cerca de 700 pessoas,
incluindo Caetano Veloso e Daniela Mercury. O caixão foi levado num carro do
Corpo de Bombeiros até o cemitério, e foi enterrado próximo ao mausoléu de
Carmen Miranda.
Lá estiveram, entre outros, o escritor João Ubaldo Ribeiro e o
ex-ministro da Cultura Gilberto Gil. Ubaldo definiu o compositor como "um
dos heróis reais" do país. "Ele tinha que ir, como todos nós temos que ir
embora algum dia. Mas é um pedaço do Brasil, da identidade brasileira, do
passado cultural desse país."
"O mais baiano"
Ex-genro de Caymmi -foi marido de Nana nos anos 60- e autor da
canção-homenagem "Buda Nagô", Gil disse considerá-lo "o mais baiano de todos
os que já conheci na vida".
"Morou praticamente a vida toda no Rio, mas mantendo sempre um amor muito
grande, manifesto, pela Bahia. Nem precisava, porque a obra dele toda é
quase que completamente dedicada ao modo baiano, à qualidade e à paisagem
baianas, ao coração baiano. (...) É uma obra que vai permanecer enquanto
houver Brasil. Enquanto se falar dessa nação, enquanto formos o que somos no
mundo, Caymmi é parte disso."
Para Jorge Mautner, Caymmi é "a graça divina". "É a beleza da mensagem,
sempre a celebração da vida, a busca da felicidade. Cada música dele vale
milhares de músicas."
O cantor Pery Ribeiro -filho de Herivelto Martins e Dalva de Oliveira,
contemporâneos de Caymmi- foi um dos primeiros a chegar ao cemitério.
"Dorival era quase parente nosso. O primeiro presente que minha mãe ganhou
quando nasci foi dado por ele, que vivia lá em casa. Meu pai usava chapéu de
pescador em sua homenagem."
O letrista Ronaldo Bastos conheceu Caymmi por meio dos parceiros Paulo
Jobim, filho de Tom Jobim, e Danilo Caymmi. "Uma das casas que eram nosso
playground era a casa do Dorival. Ele é meu mestre. Meu único objetivo
fazendo música é chegar àquele grau de simplicidade, concisão,
musicalidade."
Amigo dos filhos de Caymmi, Fagner lembrou a ocasião em que se
conheceram: "Foi no hall de um hotel na Bahia, os dois fazendo check-in. Ele
mandou fazer o meu primeiro, porque eu era visitante, e ainda me pediu um
autógrafo. Era de uma leveza muito bonita."
João Bosco repetiu um conselho de Caymmi. "Eu o procurei em casa e fiquei
tocando violão para ele. Quando acabei, ele disse: "João, você devia comprar
só uma capa de chuva e sair por aí". Numa frase só ele disse o que era
importante na vida: a música e a capa de chuva, para não pegar resfriado."
No velório, o governador da Bahia, Jaques Wagner (PT), disse que "ninguém
soube como Caymmi cantar a Bahia". Para o governador do Rio, Sérgio Cabral
Filho (PMDB), ele "não era um contestador", mas colocava "a arte dele à
disposição da democracia", em referência ao show realizado em 1980 no
Riocentro, em homenagem à volta dos anistiados. "Lembro-me da comoção que
causou cantando para aquela multidão." (ITALO NOGUEIRA,
SERGIO TORRES E FABIANE ROQUE)
O que é que Caymmi tem? Dez características que fazem do compositor
mestre atemporal de canções que se misturaram para sempre à identidade
brasileira
FRANCISCO BOSCO
ESPECIAL PARA A FOLHA
1MESTRE MAIOR
Dorival Caymmi foi um mestre maior da arte da canção, a arte de pôr em
relação letra e música, de casar uma coisa e outra, como se costuma dizer.
Não há nenhum momento de sua concisa e primorosa obra em que essa relação
esteja malfeita, em que se descubra uma imperícia ou negligência do
cancionista. Ao contrário, a perfeição está em toda parte. Como disse Luiz
Tatit, "cada fragmento de composição já é uma boa amostra da obra completa".
2RIGOR BAIANO
A proverbial preguiça baiana é aqui desmentida por um rigor insuspeitado.
Caymmi às vezes levava anos para terminar uma canção. E não chegou a compor
muito mais do que uma centena delas, em sua vida. É que sua ética produtiva
se centrava no princípio de só fazer as canções necessárias. Nesse caso, o
rigor abarca uma dimensão passiva: a paciência. Caetano Veloso elucidou o
modus operandi dessa ética: "É o deixar aparecer, deixar acontecer e ser
extremamente responsável com relação ao que acontece".
3 ATEMPORALIDADE
Levada ao extremo, essa rigorosa mestria cria um efeito de atemporalidade,
pois é como se as palavras jamais tivessem existido sem seus respectivos
sons. Daí que, atemporais, elas parecem muitas vezes anônimas, folclóricas,
pois o que não tem história também não pode ter autor. "Não parece coisa
feita por gente", resumiu Arnaldo Antunes.
4 O MITO
Esse efeito de atemporalidade e anonimato é decisivamente reforçado pelo
fato de as canções, em sua quase totalidade, inscreverem-se plenamente no
mito brasileiro, que elas assim eternizam. O mito não é uma mentira, mas uma
auto-imagem que revela um desejo e um projeto: a alegria, a cordialidade, a
liberdade, o erotismo, a religiosidade sincrética afro-brasileira, a
mestiçagem.
5O PAI
Pois tudo isso brilha com uma rara integridade nos "sambas sacudidos" e
"canções praieiras" de Caymmi, em que portanto reconhecemos nosso mito
identificador. Por isso Caymmi "é o pai", como afirmou Lorenzo Mammi.
6 MODERNO
Mas isso não é tão simples. Pois Caymmi é ao mesmo tempo um cancionista
moderno e até modernizador. Tom Jobim lembra que ele "passou a empregar
notas de sexta e sétima maiores nos acordes menores, imprevisíveis
modulações de meio-tom, coisas que ninguém usava na época".
7 PARADOXOS
Daí Antonio Risério, em seu livro "Caymmi: Uma Utopia de Lugar", que é a
referência maior ao estudo crítico da obra do mestre baiano, ter apontado
uma "dialética entre o novo e o velho, o arcaico e o contemporâneo, a
tradição e a invenção".
8 CANÇÕES PRAIEIRAS
Tal paradoxo vem à tona com nitidez na série das "canções praieiras", que
Jorge Amado elegeu com justeza como "a parte mais poderosa e permanente de
suas composições". Essas canções que narram a vida de pescadores numa Itapuã
mítica são tão originais que inauguram um gênero, pois não havia algo como
"canções praieiras" na tradição da canção popular brasileira. Não havia e
não haveria depois; é um gênero de um autor só, que nasce e morre com
Caymmi.
9 SEM EXPLICAÇÃO
Com isso somos lançados ao problema da originalidade inexplicável de Caymmi.
Diferentemente de talvez todos os nossos grandes cancionistas populares,
Caymmi não se situa facilmente numa tradição que ele a um tempo absorve e
reinventa. No gesto de João Gilberto, por exemplo, é mais fácil de
compreender tanto o corte quanto a continuidade, igualmente radicais. Em
Caymmi, uma coisa e outra são mais difíceis de localizar. Uma frase de Chico
Buarque resume essa perplexidade: "Não vejo de onde aquilo vem".
10 PERMANÊNCIA
Seja como for, "aquilo" veio, ficou e ficará. Nas canções de Caymmi, que
moram no fundo da memória coletiva do Brasil e ajudaram a construir nossa
identidade (com a qual estarão para sempre misturadas), podemos mirar uma
realização e uma possibilidade, uma história e um projeto. Em tempos de ódio
e violência, as canções de Caymmi talvez nos ajudem a entender alguma coisa
de essencial que perdemos em algum momento de nossa modernização.
FRANCISCO BOSCO, ensaísta e letrista, é autor de
"Folha Explica Dorival Caymmi"
Caymmi,
embora único, é um produto típico da mestiçagem e do sincretismo baianos. Um
mulato baiano de ascendência italiana (como o também sambista Carlos
Marighella, seu contemporâneo), criado entre a capoeira, os afoxés, o
samba-de-roda tradicional do Recôncavo Baiano, cânticos de orixás e formas
musicais populares e eruditas da Europa, de Bach a Debussy, para não falar
da literatura de Jorge Amado e da poesia de Lorca. Costumo defini-lo como a
expressão estética concentrada da cultura de uma cidade tradicional, a
Salvador centenária e senhorial das primeiras décadas do século passado,
principal núcleo urbano do recôncavo agrário e mercantil da Bahia. Dorival
Caymmi, no veio mais baiano de sua obra, fala desse mundo "arcaico",
anterior à expansão nordestina do capitalismo brasileiro. Quando não se
planta em um lugar de certo sabor tribal, a comunidade de Itapuã, com seus
ritmos recorrentes de vida. E ele pôde ser expressão estética dessa cultura
porque tinha uma intimidade essencial com suas linguagens. Com a fala do
povo, o "sermo vulgaris" baiano.
Com a poesia da capoeira e do samba. Com a religiosidade
sincrética local. E sempre procurou recriá-las em sua lírica. Desse ponto de
vista, aliás, sua proverbial "preguiça" será melhor vista como um método de
trabalho. Caymmi demorava anos para fazer uma canção porque queria a palavra
certa no lugar certo, como se ela tivesse estado sempre ali. Como se tivesse
nascido naquele momento de uma canção. Essa busca da fluência da palavra
cantada faz com que muitas de suas frases pareçam colhidas no ar. Mas elas
resultam, na verdade, de paciente artesanato verbal, feito por um criador
que conhece as minúcias do seu ofício. Interessante também notar que a
poesia caymmiana é avessa à metáfora, mas buscando sempre o plástico, a
recriação lingüística da imagem visual. Além de mostrar um certo gosto pelo
substantivo e, aqui e ali, se desmanchar em sufixos diminutivos de ternura.
Um aspecto fundamental (que é também um ensinamento) da criação caymmiana é
que ela está, ao mesmo tempo, enraizada em solo ancestral e aberta ao
horizonte contemporâneo. Fala de orixás, da arquitetura colonial, e vem do
samba mais antigo do recôncavo. Ao mesmo tempo, dialoga com a poesia
modernista e se deixa banhar pelo impressionismo musical francês.
Estética mestiça Não nos esqueçamos de que Itapuã era uma
comunidade de pescadores místicos e artesanais, mas Caymmi a fez soar pela
indústria do disco e pelas ondas eletromagnéticas da Rádio Nacional, além de
incursionar bem à vontade por um gênero novo, o samba-canção carioca. Com o
poder de sedução de sua estética mestiça, Caymmi, como João Gilberto,
contribuiu para provocar alterações na estrutura da sensibilidade
brasileira. E para promover uma mudança profunda e altamente significativa
na hierarquia de nossas formas culturais. Para dar um exemplo, quando ele
lançou "Promessa de Pescador", o canto da Iemanjá tinha algo de estranho e
misterioso, de um modo geral, para ouvidos sudestinos. Mas quem diria isso
hoje, quando Iemanjá é celebrada de uma ponta a outra do país? Naquela
época, o candomblé ainda sofria perseguições policiais.
Ainda podia ser tratado em termos de "resistência
cultural". Hoje, templos candomblezeiros são tombados oficialmente como
patrimônio do povo brasileiro. Quando Caymmi soou no Brasil meridional,
trazia a mensagem cálida e ecológica de um lugar idealizado, que parecia
parado no tempo e viver em paz, imune a conflitos sociais. Caymmi reforçou
assim, nacionalmente, o mito baiano. Era como se falasse de um espaço
utópico: o lugar de nossa origem, premiado por belezas arquitetônicas e
ambientais, onde vivia uma gente feliz, ensolarada e muito singular. Naquela
época, o mito não deixava de encontrar alguma correspondência na Bahia real.
Hoje, não. A Bahia de Caymmi ficou definitivamente para trás. É uma Bahia
que soa atualmente, também para os próprios baianos, como uma espécie de
utopia. A utopia de um poeta erótico, culinário e ecológico. Poeta de cama,
mesa e mar.
ANTONIO RISÉRIO é poeta e antropólogo, autor de
"Caymmi: Uma Utopia de Lugar" e "Uma História da Cidade da Bahia"
Danilo planeja gravar canção inédita do pai, feita há 30 anos
SERGIO TORRES
DA SUCURSAL DO RIO
Há mais de 30 anos guardada pelo caçula Danilo, "Toada à
Toa" pode ser a única canção inédita deixada por Dorival Caymmi. A música é
uma parceria de pai e filho, que, em seu próximo CD, planeja gravá-la.
Dorival teve poucos parceiros. Um deles é Danilo, com quem fez "Vamos Falar
de Tereza" (abertura da minissérie "Tereza Batista", da TV Globo, de 1992),
"Caminhos do Mar" (também com a participação de Dudu Falcão), "Mãe Stella" e
"Velhas Estórias". Com o filho Dori, 64, ele nunca compôs. Danilo, 60,
disse, no cemitério São João Batista, pouco antes do sepultamento, não ter
condições de citar trechos da canção engavetada pela dupla, mas anunciou
planos para a música. "Certamente vou gravar", afirmou ele sobre a canção
composta em alguma data esquecida dos anos 70. Questionado pela Folha
sobre a possibilidade de haver mais canções perdidas do pai, Danilo
demonstrou ceticismo. "Acredito que não. Todas foram gravadas", disse ele,
para quem o pai "era um homem simples que nos ensinou a simplicidade (...) e
que, como ninguém, soube traduzir a cultura brasileira para o povo simples".
Para Danilo, caberá a ele, ao irmão Dori e à irmã Nana a
missão de manter viva a obra do pai, "para que ela seja preservada como bem
nacional". "A gente está perdendo a parte física do Dorival Caymmi, mas a
obra está aí, o emocional está aí. A responsabilidade é grande para honrar a
manutenção dessa obra no imaginário do povo brasileiro." Também no
cemitério, Dori falou do pai como um artista dentre "tantos desses heróis
brasileiros desapegados do helicóptero, da ilha em Angra dos Reis [no
litoral fluminense]". "Acho que as pessoas que contribuíram, que fizeram
esse trabalho para o Brasil, não deveriam morrer, né? Jorge Amado
[1912-2001], Guimarães Rosa [1908-1967], Ary Barroso [1903-1964], Noel Rosa
[1910-1937] e não sei quem mais. São tantas essas pessoas..." No velório, na
Câmara de Vereadores do Rio, já falara sobre o tema. "Esse Brasil não podia
perder esse homem. Não é hora de perder essas pessoas. Está tão vazio, tão
"Big Brother". Não é isso que a gente sonhou para o país. Não é isso que ele
sonhou. Esses brasileiros não podem morrer. Mesmo que fiquem na memória,
deveriam ficar mais tempo para educar a gente, criar uma coisa nova, um
Brasil diferente", disse, chegando a declarar que preferia ter morrido antes
do pai. Com FABIANE ROQUE , colaboração para a
Folha, no Rio
EM 1949, em plena glória existencialista, Albert Camus (1913-1960) veio ao
Brasil. Estava gripado e deprimido. Detestou quase tudo.
Sobre a baía da
Guanabara, disse que era espetacular demais para o seu gosto. As pessoas, na
maioria, ele acha insuportáveis. Os motoristas brasileiros "ou são alegres
loucos ou frios sádicos".
Fazem-no experimentar pratos da culinária baiana, "tão apimentados que
fariam andar paralíticos".
Pobre Camus. Levam-no a uma macumba. A dança, "de estilo medíocre, é
pesada e muito carregada".
O transe religioso produz nele um bocado de nojo: "Uma branca gorda, com
uma cara animal, uiva sem parar [...]. Todos gritam e urram [...]. O calor,
a fumaça dos charutos, o cheiro humano tornam o ar irrespirável.
Saio, trôpego, e respiro afinal deliciado o ar fresco. Amo a noite e o
céu, mais do que os deuses dos homens".
Uma ou duas mulatas até que são bonitas, mas Camus concorda com o
militante negro Abdias do Nascimento: "A raça é feia". De qualquer modo,
pouco importa: "A natureza sufoca o homem".
A mistura de miséria e luxo lhe pareceu mais insolente no Brasil do que em
qualquer outro lugar. "Desgosto e cinismo", resume Camus.
Mas seu "Diário de Viagem" (ed. Record) registra alguns momentos de
felicidade. Camus vai jantar na casa de uns conhecidos franceses e encontra
Manuel Bandeira, "pequeno homem extremamente fino".
Depois do jantar, aparece "Kaïmi, um negro que compõe e escreve todos os
sambas que o país canta". Ouvem-se "as canções mais tristes e mais
comoventes". "Pouco a pouco, todos cantam, e vêem-se um negro, um deputado,
um professor de faculdade e um tabelião cantarem esses sambas em coro, com
uma graça muito natural. Totalmente seduzido", anota Camus.
Tinha de ser. Quem sabe até cantou, junto com Dorival Caymmi, algumas
daquelas canções que todo mundo conhece, e que, na verdade, parece que já
conhecia antes mesmo de terem sido compostas.
Fico nas básicas, como "É Doce Morrer no Mar" e "O Mar" ("Quando quebra na
praia..."). A "tristeza", para usar o termo de Camus, é imensa nessas
músicas -só que nelas não parece haver lugar para sentimentos tristes.
Canções de ninar também são tristes, e não servem para entristecer.
"É Doce Morrer no Mar" se parece, sem dúvida, com um acalanto, por causa
da melodia hipnótica; e também porque parece ter surgido "pronta", sem
autor, de algum fundo noturno de folclore e de memória.
"Não parece coisa feita por gente", diz Arnaldo Antunes, citado pelo
ensaísta Francisco Bosco, num livro primoroso sobre o compositor, para a
coleção "Folha Explica". Francisco Bosco acrescenta: as canções praieiras de
Caymmi parecem "o canto das coisas em si, as coisas cantando".
Enumera, em seguida: o vento, as ondas, o mar, a areia...
E, com isso, voltamos àquelas frases de Camus. "A natureza sufoca o
homem", diz o escritor a propósito do Brasil; "amo a noite e o céu, mais do
que os deuses dos homens", observa ele, não sem cair em alguma contradição.
De certo modo, a "doçura de morrer no mar" está no fato de permitir esse
desaparecimento de toda individualidade, que a natureza brasileira, e a
música de Caymmi, conseguem efetuar por um momento.
Não é por outra razão que "um negro, um deputado, um tabelião" e talvez um
intelectual europeu terminam a noite cantando juntos.
Mas a morte doce de Caymmi poderia significar apenas uma espécie de
consolo, de esquecimento, como o da canção de ninar, sem que o ouvinte se
sinta curiosamente desperto e insaciado cada vez que ouve uma de suas
composições.
Ouço novamente "É Doce Morrer no Mar". Não sei se alguma canção de ninar
começaria com aquele salto melódico nas duas primeiras sílabas, que tem um
componente de inquietação, de resistência inicial ao balanço que se vai
seguir.
A antítese escondida no verso (do mar salgado à morte doce) repete-se em
outros planos. É o vozeirão de Caymmi quem fala pela mulher, lamentando a
morte do "marinheiro bonito". Mas a mulher fala pelo marinheiro, pois apenas
para este é doce ser levado pela "sereia do mar".
Na letra existe também um jogo com o saveiro, que numa estrofe "voltou
sozinho", e que em outra...
"partiu e não voltou". Marinheiro e barco se confundem nesse vaivém da
música.
Não há pura dormência nisso.
Quem quer o mar quer sair daqui, mas também quer voltar. Maracangalhas e
Bahias, quem sabe, talvez venham a ficar no mesmo lugar.
Dorival Caymmi, precursor da
bossa-nova, morre aos 94
FERNANDA
EZABELLA - REUTERS
SÃO PAULO - O cantor e compositor baiano
Dorival Caymmi, autor de clássicos da música brasileira e considerado o
avô da bossa-nova, morreu neste sábado em sua casa no Rio de Janeiro,
aos 94 anos, por insuficiência múltipla dos órgãos.
Caymmi, que compôs, entre outras, "O que que a baiana tem?", "Doralice"
e "Modinha para Gabriela", nasceu em abril de 1914, em Salvador. Foram
mais de 60 anos de carreira, 20 discos lançados e inúmeras músicas
gravadas por grandes intérpretes da MPB.
Filho de um músico amador e de uma doméstica que cantava em casa, Caymmi
frequentava o côro da igreja e aprendeu a tocar violão sozinho. Sua
estréia profissional aconteceu na Rádio Clube da Bahia e, aos 22 anos,
ganhou um concurso de músicas de Carnaval, com o samba "A Bahia também
dá".
Ao se mudar para o Rio de Janeiro, em 1938, Caymmi viu sua carreira
deslanchar, principalmente após ter Carmen Miranda interpretando sua
canção "O que que a baiana tem?", vendida a um estúdio para o filme
"Banana da Terra", estrelado pela cantora, a mais popular da época e
prestes a fazer sucesso estrondoso nos Estados Unidos.
Foi a partir desta canção que Carmen Miranda criou o figurino de baiana
estilizada que a consagraria internacionalmente, com o turbante de
frutas e os balagandãs.
PINTURA E BOSSA-NOVA
Nos anos 1940, Caymmi dedica-se à pintura e ao desenho, explorando
cenários baianos, como pescadores e comunidades beira-mar. Foi também
nesta fase que compôs as chamadas "canções praieiras", que levaram para
o resto do Brasil o estilo de vida baiano e tradições populares, como
"Samba da Minha Terra" e "A Jangada Voltou Só".
"Minha música sempre foi figurativa. Vejo a música como um quadro, uma
composição geral em que o fator humano é preponderante", disse o
compositor.
Caymmi é considerado um predecessor da bossa-nova, alterando o
acompanhamento do violão, um marco histórico do uso do instrumento entre
os brasileiros. Foi referência para João Gilberto e Tom Jobim, pais do
movimento, nos anos 1950.
Baiano de Juazeiro, Gilberto gravou diversas composições do colega, como
"Rosa Morena", "Saudade da Bahia" e "Samba da Minha Terra". Com Jobim,
fez o famoso disco "Caymmi Visita Tom", de 1964.
"O grande esforço de modernização de João se apoiou na modernização sem
esforço de Caymmi", diz Caetano Veloso no livro Verdade Tropical.
Sua carreira internacional ganhou mais força em 1965, ao ir a Los
Angeles para uma série de shows e gravação de um LP. A valsa "Das Rosas"
é traduzida para o inglês pelo cantor Andy Williams. Dick Farney também
já havia gravado outra, "Marina", em 1947.
CANDOMBLÉ, PARCERIAS E HOMENAGENS
Ao voltar para a Bahia, estreita lanços com o candomblé, tornando-se obá
de um terreiro em 1968. Gravou "Oração da Mãe Menininha", homenagem à
Menininha do Gantois nos seus 50 anos de mãe-de-santo. Outra canção
ligada ao candomblé foi "Sargaço Mar", dedicada à Iemanjá.
De Jorge Amado, musicou um hino para a campanha de Luís Carlos Prestes
ao Senado, em 1945, e compôs "Modinha para Gabriela", em 1975, baseada
no romance "Gabriela, cravo e canela".
A canção foi interpretada por Gal Costa, outra soteropolitana, que
conheceu Caymmi no Rio. A parceria foi bastante produtiva, rendendo as
canções "Beijos pela noite", "Modinha para Teresa Batista", "Retirantes"
e "Essa Nega Fulô".
A partir dos anos 1980, começou a colecionar homenagens. Aos 74 anos, em
Paris, recebeu do ministro da Cultura Jack Lang a Comenda das Artes e
Letras da França. Em 1986, virou enredo da Estação Primeira de
Mangueira, com o qual a escola venceu o Carnaval daquele ano.
Casado com a cantora Stella Maris desde 1940, Caymmi deixa três filhos
músicos, Nana, Dori e Danilo. No final dos anos 1980 e anos 1990, chegou
a fazer shows com seus filhos, como no Festival de Jazz de Montreaux, na
Suíça, que acabou virando o álbum "Família Caymmi em Montreaux".