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Três vezes Manuel Bandeira

25/08/2008

 

 

Poeta Manuel Bandeira
 

Antologias de poemas e coletânea de crônicas suscitam novas serventias de sua riquíssima produção

Walnice Nogueira Galvão

Encontra-se definitivamente incorporado a nosso panorama literário e cultural o grande poeta Manuel Bandeira, eleito mestre pelas gerações seguintes. Afora excelentes trabalhos universitários, suscita novos arranjos e novas serventias de sua riquíssima obra, quando sua morte está prestes a completar 40 anos (13 de outubro). Prova disso são estas três novas edições.

Uma delas, a mais curiosa - Belo Belo e Outros Poemas (José Olympio, 48 págs., R$ 32) - traz uma espécie de "Manuel Bandeira para crianças". A coletânea privilegia apenas uns poucos, mais adequados a um público infanto-juvenil. Bonitas ilustrações de Eduardo Albini, em cores fortes, de traço entre o onírico e o naïf, complementam-nos a contento.

Mais outra é uma antologia, em formato de bolso - Bandeira de Bolso (L&PM, 166 págs., R$ 12) -, preparada por Mara Jardim, autora de tese de doutorado sobre o poeta. Sua competência se manifesta não só na seleção judiciosa, como também na substanciosa introdução, que fala do poeta e de sua lira. Estão presentes os exemplares mais célebres e os melhores. Se o leitor der por falta de algum predileto, não se sinta prejudicado, pois se é capaz de apontar falhas nesta excelente antologia, já é um especialista que terá em casa as obras completas. Em todo caso será bem servido, pois a amostragem é farta e fidedigna - e mal não faz levar no bolso ou na bolsa uma antologia de um grande poeta, para abstrair-se da tagarelice dos celulares ao redor.

Vamo-nos ocupar mais do terceiro livro, que é inteiramente feito de material inédito. O que é uma novidade, dada a interminável exploração que tem sido feita dessa obra. Além disso, Crônicas Inéditas 1 (Cosac Naify, 440 págs., R$ 65) é trabalho de pesquisa filológica, o que sem dúvida o poeta merece. O autor da pesquisa, Júlio Castañon Guimarães, tem tirocínio em outros trabalhos de erudição, e a ele devemos várias edições especiais. Recomendam-no ainda os anos que passou como co-diretor de uma das mais importantes revistas de poesia contemporânea, a Inimigo Rumor. E é poeta ele mesmo, e de renome, com vários livros publicados.

Depreende-se do volume a evolução do escritor, a partir da primeira crônica estampada, ainda canhestra, longe da fluência que se tornaria um de seus apanágios. Até desaguar na prosa límpida da maturidade, quando podemos admirar a graça do grande cronista, acostumado a extrair transcendência do mais trivial. Antes, já viram a luz Crônicas da Província do Brasil (1937), Flauta de Papel (1957) e Andorinha, Andorinha (1966).

É difícil fixar uma preferência. A destacar, as várias páginas novas sobre os companheiros de arte moderna que iam publicando livros ou fazendo exposições. Vindo somar-se às coletâneas de crônicas, ao Itinerário de Pasárgada e à correspondência com Mário de Andrade, ganhamos anotações preciosas sobre Vicente do Rego Monteiro, Ismael Nery, Villa-Lobos, Lasar Segall, Murilo Mendes, Ribeiro Couto, Ascenso Ferreira, Augusto Frederico Schmidt. Pedem destaque as vinhetas sobre música e sobre músicos, intérpretes e compositores, dos concertos de que era assíduo. Isso sem esquecer o balé e a temporada lírica.

Mas há outras só de amenidades, como as várias sobre o concurso de Miss Brasil, que agitava o Rio daqueles anos e provocava desfiles na Avenida Beira-Mar tão concorridos, diz ele, quanto o carnaval. Ou sobre jardins, mostrando alguém que parava para pensar a respeito dos modelos ideais para os jardins brasileiros. 

O scholar em Bandeira meditou sobre reforma ortográfica e sobre o dicionário da Academia Brasileira de Letras, e não deixa escapar, saudando-os, os livros relacionados à língua que vão vindo à luz. 

Tornam-se estas crônicas contribuição obrigatória para estudo de nossos modernistas, com suas observações sempre pertinentes, fruto de um olhar agudo e perspicaz.

Esta edição não desrespeita, como freqüentemente acontece, o autor: capa dura, que preservará do desmanche as quase quinhentas páginas, sob repetidas leituras; ilustrações com fotos de época muito bem escolhidas e cheias de charme; papel de boa qualidade; aparato crítico discreto mas competente; índices bem preparados; crédito das imagens, etc. Edição que dá gosto compulsar, o que se fará em incontáveis ocasiões.

Vêm à mente casos semelhantes, que dão o que pensar, em suas vantagens e desvantagens. Se a fama de um dado autor está em expansão, começa-se a raspar o fundo do tacho e a publicar coisas que ele próprio relegou à gaveta, e em muitos casos renegou de todo. De um lado, temos os dividendos de herdeiros e editores, de outro temos o prestígio pessoal empenhado pelos estudiosos. É um processo insopitável e já deu frutos envenenados.

Entre esses, é bom lembrar os de Fernando Pessoa e Guimarães Rosa. Do poeta português, há muito falecido, a certa altura publicaram as quadrinhas, que nada lhe acrescentam à reputação, muito pelo contrário, até a prejudicam. Adolfo Casais Monteiro imediatamente escreveu um artigo para o Suplemento Literário deste mesmo jornal, protestando conta o fato. No caso do segundo, várias décadas se passaram antes que se imprimisse seu único livro de poesia, Magma, que ele próprio, bom juiz de sua obra, manteve trancado, apesar de ter ganho um prêmio. 

Mas a curiosidade do leitor é insaciável, e já fomos premiados com a divulgação de livros que a tanto não se destinavam. Tal é o caso da primorosa edição de um livro coletivo, O Perfeito Cozinheiro das Almas deste Mundo, diário da garçonnière de Oswald de Andrade, onde os amigos escreviam, desenhavam, pregavam postais e papeizinhos, deixavam recados uns para os outros. A edição fac-similar reproduziu com cuidado todas essas modalidades, inclusive as colagens em alto relevo. 

Outro caso, ainda pendente, é o da publicação do Diário de Hamburgo, de Guimarães Rosa, destinação não prevista pelo autor. O original está em poder da editora da Universidade Federal de Minas Gerais, que tem o propósito de trazê-lo à luz. Trata-se de uma respeitável editora, que tem produzido obras de máxima relevância, como o livro das Passagens, de Walter Benjamin, além do mais numa edição impecável. Já foi feito um filme (Outro Sertão, por Adriana Jacobsen e Soraia Vilela) baseado nesse diário, e naturalmente os leitores têm o direito de estar assanhados. As cineastas conseguiram até localizar e entrevistar uma protagonista ainda viva, a Frau Heubel de O Mau Humor de Wotan, conto de Ave, Palavra.

Também a correspondência passiva de Mário de Andrade está começando a aparecer, para deleite do leitor. Ao publicar as cartas de Mário, Manuel Bandeira resguardou as suas próprias, mas agora já temos a edição de ambas as partes. E já venceu o prazo de 50 anos sob sigilo, estipulado pelo próprio Mário, procedendo-se à abertura dos arquivos, à indexação e à catalogação da epistolografia, a cargo das equipes do Instituto de Estudos Brasileiros da USP.Quando se trata de publicar algo que o autor não autorizou, os problemas são muitos, como se vê neste rápido esboço - mas os prazeres também. 

Walnice Nogueira Galvão, professora de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP, é autora de Mínima Mímica

(© JC Online)

 

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