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A sólida obra de Dorival Caymmi

25/08/2008

 

 

Dorival Caymmi

A principal fonte de consulta dos pesquisadores da Música Popular Brasileira é o Dicionário Cravo Albin da MPB. Em sua versão na internet, a obra aponta exatas 112 obras compostas por Dorival Caymmi - 86 só dele e 26 em parcerias (com João de Barro, Danilo Caymmi, Osvaldo Santiago, Manuel Bandeira, Jorge Amado, Carlos Lacerda, Antônio Almeida, Alcyr Pires Vermelho, Alberto Ribeiro, Carlos Guinle, Jacques Klein e Hugo Lima).

Agora, preste atenção em quantas destas, por ordem alfabética se tornaram clássicos da MPB: A jangada voltou só, A lenda do Abaeté, Acalanto, acontece que eu sou baiano, Das rosas, Dora, Doralice, É doce morrer no mar, Eu não tenho onde morar, História de pescadores, João Valentão, Lá vem a baiana, Maracangalha, Maricotinha, Marina, Marcha dos Pescadores, Modinha de Gabriela, Não tem solução, Nem eu, Nunca mais, O bem do mar, O mar, O vento, Oração de Mãe Menininha, O que é que a baiana tem?, Peguei um Ita no norte, Requebre que eu dou um doce, Retirantes, Rosa Morena, Sábado em Copacabana, Samba da minha terra, Santa Clara Clareou, Saudade da Bahia, Saudade de Itapoã, Suíte dos pescadores, 365 igrejas, Vestido de bolero, Você já foi à Bahia? e Você não sabe amar.

Faltou alguma? Bem, aí acima estão 39. Portanto, fazendo a conta simples, 34,5% das canções compostas por Dorival Caymmi podem ser consideradas clássicas na história da música brasileira. Não se conhece, na história moderna da música mundial, um compositor tão importante, com uma obra tão sólida. Mesmo artistas com grande sucesso e larga produção não conseguem ter sequer dez canções “definitivas”.

É isso que fará Dorival Caymmi, falecido no domingo passado, ser lembrado para sempre - ao contrário das brincadeiras que se faziam com ele, de ter uma preguiça monstruosa (galhofa espalhada principalmente pelo humorista Jô Soares). Ou de que ele tinha se cansado de compor, que tinha uma excessiva vaidade ou defeitos afins. Tudo isso passará, a obra de Caymmi continuará.

É impressionante constatar, ao ver a lista de canções do compositor baiano, que ele conseguiu ser o introdutor e divulgador de duas vertentes importantes da música brasileira - o samba da Bahia, com influência do samba-de-roda africano, e o samba-canção, com vestígios do bolero latino. Ele já começou abalando as estruturas, em 1938 (isso mesmo, há 70 anos), com O que é que a Baiana tem? na sua primeira audição na rádio Tupi do Rio de Janeiro. Ninguém entendia como ele conseguia trazer todo um estado de espírito apenas na voz e no violão. Mas ele fazia isso, e mudou a forma de se tocar violão e de se fazer samba. Só com aquela estréia ele já influenciaria gerações.

Mas ele fez mais - levou todos os elementos baianos para a música, cada um no momento certo. O mar, o vento, a mulher, a praia, a igreja (quer dizer, as igrejas). Se havia alguém que ainda não tenha entendido, ele fez questão de explicar em Samba da minha terra: “O samba da minha terra deixa a gente mole / quando se canta todo mundo bole (...) / quem não gosta de samba / bom sujeito não é / é ruim da cabeça / ou doente do pé / eu nasci com o samba / no samba me criei / e no danado do samba / nunca me separei...”.

Nunca mesmo. Suas canções ficaram eternizadas, e foram regravadas por muitos. As principais delas por João Gilberto, que não se cansa nunca de homenagear Caymmi. Mas ninguém consegue superar o próprio compositor cantando, com seu fraseado especial e seu vozeirão característico. Incrível - além de ser um baita compositor, Dorival ainda foi um ótimo intérprete (para quem não acreditar, que ouça Inútil paisagem, de Tom Jobim e Aloysio de Oliveira, com ele e a filha Nana).

E as duas virtudes se afirmaram na sua incursão pelo samba-canção. Parecia que tinha nascido no Rio, criado em Copacabana e vivido noites intermináveis no Road Point, no Meia-Noite e no Sacha’s. Embrenhou-se no mundo da fossa - sem ter a menor experiência no assunto - e saiu de lá com Nem eu, Nunca mais, Não tem solução e Você não sabe amar.

Canções com o brilho da qualidade de composição de Dorival Caymmi e com o gosto de uísque com gelo das noites cariocas - que, à época, não tinha tantos letristas de qualidade militando nesta vertente. É possível imaginar que o sucesso do baiano com os sambas-canções fez com que outros artistas se animassem a compor. Caso específico de Tom Jobim, que iniciou a carreira com músicas neste estilo.

Já ficou claro, até agora, que Dorival Caymmi é um dos grandes da música brasileira. Mas ele foi também um nome internacional. Primeiro com o sucesso de Carmem Miranda, com O que é que a Baiana tem?, e de Aurora Miranda, com Você já foi à Bahia?, usada em um filme de Walt Disney. Mais tarde, o próprio Caymmi ganhou as paradas - já com cabelos brancos e aquele estilão que ficou notório (cabelo curto, camisa listrada, calça branca e sandálias), ele brilhou com Das rosas, ou And roses and Roses, a versão cantada por ele e Andy Williams.

E Caymmi fez mais. Virou influência básica da Bossa Nova, compôs um tema festivo que virou sucesso (Oração de Mãe Menininha), fez dois clássicos em novelas (Retirantes e Modinha de Gabriela). Seu maior sucesso popular, Maracangalha, parece uma brincadeira de tão divertida que é. Teve três filhos, todos grandes músicos (Danilo, Dori e Nana). E ainda compôs o que é a maior canção de ninar. Acalanto é tão linda que só poderia ter saído da cabeça privilegiada de Dorival Caymmi.
 

(© Paraná Online)

 


Dorival Caymmi, um músico brasileiro

Patrick Labesse

Gilberto Gil e Caetano Veloso dizem que ele é o seu pai espiritual, e João Gilberto o considera como seu ídolo. Um músico entre os mais respeitados na comunidade artística brasileira, amigo do escritor Jorge Amado (1912-2001), o cantor, autor e compositor Dorival Caymmi morreu em 16 de agosto, no Rio de Janeiro, de um câncer, que ele tratava havia vários anos, segundo declarou, na TV Globo, a sua neta Stella Caymmi. Ele tinha 94 anos.

Considerado como um dos criadores que definiram as bases da música popular moderna do Brasil, pai dos cantores Nana Caymmi, Dori Caymmi e Danilo Caymmi, ele nasceu em Salvador, Bahia, em 30 de abril de 1914. Quando a sua morte foi anunciada, os governadores da Bahia e do Rio de janeiro, onde ele vivia desde 1938, declararam luto oficial de três dias. "A sua música faz parte da herança cultural da nação", declarou o presidente Lula, ao prestar-lhe uma homenagem.

O filho de um imigrante italiano e de uma baiana, Dorival Caymmi se notabiliza pela primeira vez no final dos anos 1930, quando compõe "O Que é Que a Baiana Tem?" para a cantora e atriz Carmen Miranda (1909-1955), uma das primeiras artistas brasileiras a conquistar uma notoriedade importante na Europa e nos Estados Unidos - ela receberá o apelido de "Brazilian bombshell in Hollywood" (a brasileira explosiva de Hollywood) por conta dos incontáveis filmes que ela estrelou.

A partir do sucesso desta música, Dorival Caymmi inicia uma carreira que durará cerca de sessenta anos, ao longo da qual ele gravará mais de vinte álbuns e comporá cerca de cem músicas. Foram sambas e baladas que se tornaram clássicos, entre os quais "Samba da Minha Terra", "Promessa de Pescador", "O Vento" e "Saudade da Bahia". São músicas que expressam toda a sua gratidão para com a sua terra, a sua paixão pelo mar e seu carinho pelos pescadores, e que prestam homenagem ao povo negro e às mulheres da Bahia, a "africana".

Músico de importância crucial para o patrimônio musical
A partir dos anos 1960, artistas de maior relevância retomam suas composições ou delas se inspiram. Este foi o caso dos mestres da bossa nova, um gênero do qual se comemora o jubileu neste ano, e de artistas como Antonio Carlos Jobim e João Gilberto, os tropicalistas Gilberto Gil e Caetano Veloso, Baden Powell, a cantora Joyce...

Em 1978, quando Sarah Vaughan vai gravar um disco no Rio, Dorival Caymmi dá um pulo até o estúdio para acompanhá-la numa das suas composições ("Das Rosas"). Alguns anos atrás, Marisa Monte, uma das jovens estrelas da música brasileira, cantou em duo com a cabo-verdiana Cesaria Evora "É Doce Morrer no Mar", uma composição de Dorival Caymmi, mais uma vez.

Todas essas interpretações se destacam como homenagens prestadas a um músico que reveste uma importância crucial para o patrimônio musical brasileiro. Na França, Caymmi foi contemplado com a medalha da ordem das Artes e das Letras, em 1984, e foi o objeto de um retrato documentário realizado em 1999 por Aluisio Didier, intitulado "Um Certo Dorival Caymmi".

Muito além das releituras das suas músicas, o nome de Dorival Caymmi vem se perpetuando através dos seus filhos, Dori, Danilo e Nana Caymmi, três vozes renomadas no Brasil. Eles foram formados por impregnação no começo das suas carreiras, acompanhando seu pai em suas turnês ou nos estúdios de gravação.

Tradução: Jean-Yves de Neufville

(© UOL Mídia Global/Le Monde)


Memória de Caymmi

João Ubaldo Ribeiro

Infelizmente, a linguagem é linear e as coisas têm que ser contadas em sucessão. Que fazer, a gente vive no tempo - há sempre um "antes", um "durante" e um "depois". Mas eu gostaria que fosse possível fotografar uma amizade de mais de quatro décadas, como a de Dorival Caymmi comigo. Não filmar, cujo resultado, por mais que inventem truques engenhosos, tampouco escapa da linearidade, mas fotografar mesmo. É como se tudo pudesse ter sido simultâneo, do jeito em que agora está na minha cabeça. Não me ocorre uma sucessão ou conjunto de fatos, me vem somente uma espécie de claridade alegre, risonha, festeira. E não há como transmitir isso a ninguém.

Mas, se não posso livrar-me da cronologia, posso pelo menos embaralhá-la à vontade. E agora estamos ele e eu sentados na casa dele na Bahia, há não sei quantos anos. Ele em sua poltrona favorita, perto da porta de entrada. Sem camisa, de bermuda e chinela, peito tomado por colares de contas e guias de todos os tipos, cabeça repousada sobre o telefone em que falava, recusando à sua maneira um convite para festa ou almoço, não lembro bem. Quem nunca viu Caymmi recusar alguma coisa perdeu um espetáculo único. Aliás, quem nunca conviveu com Caymmi um pouco assim meio que perdeu muito, como às vezes se diz lá na ilha.

Ele nunca recusava convites explicitamente, pelo menos que eu tenha testemunhado - e testemunhei diversos. Conversava com o convidador sobre assuntos variados, filosofava um pouco, concordava enfaticamente com algumas afirmações do outro, contava histórias, fazia observações, comentava o tempo, elogiava profusamente quem quer que fosse mencionado na conversa e ria com freqüência. Enfim, montavam-se verdadeiras prosas, em que o sujeito acabava se despedindo e desligando, provavelmente sem entender nada e não tendo nem certeza sobre se o convite fora mesmo recusado. Uma vez comentei isso com ele e ele respondeu muito sério, embora com aquela expressão marota que não o deixava nem quando ele se aborrecia: "É uma técnica que eu desenvolvi e só não patenteei porque só quem sabe usar sou eu".

Acabado o telefonema, passou-se à verdadeira prosa, a que se dava entre nós. Pode ser que meus amigos pessoais não acreditem, mas eu ouvia muito mais do que falava. Logo aprendi que havia algo que denominei, por falta de inventividade, de "a história de Caymmi". A história não era a da vida dele, embora sua biografia aparecesse muito, mas era simplesmente a história. Um dos melhores conversadores que conheci, expressivo, eloqüente, histriônico, ele pegava a palavra e ninguém queria mais que ela lhe fosse tomada. A história começava por algum acontecimento mencionado e ia seguindo, desenrolando-se como uma serpentina ou uma espiral, e não acabava nunca. E ninguém que a ouvia queria que acabasse. E ainda não acabou mesmo, só que não mais está conosco seu grande contador.

Corte para outro encontro na casa dele, onde eu não tinha aparecido nem dado notícias havia semanas. Que tinha acontecido? Respondi que andava me virando. Mercado sempre difícil para jornalistas, escritores e afins, dureza mesmo. Mas que ele não se preocupasse, eu me virava. E ele, apesar de algumas palavras encorajadoras, pareceu não se preocupar mesmo.

Dias mais tarde, me procura, num dos bicos em que eu batalhava contra a penúria, o representante de uma agência de propaganda. Um banco, cliente dessa agência, ia inaugurar sua primeira filial em Belo Horizonte e haviam escolhido Caymmi para estrelar um comercial dirigido aos mineiros. Ele só tinha que aparecer vestido de Dorival Caymmi mesmo e dizer uma frase de duas linhas. Tudo acertado, foram a ele e mostraram a frase. Não precisava nem decorá-la, podia ler de um cartaz posto à sua frente, fora de cena. Ele a examinou com gravidade, fez a beiçola de dúvida que era também marca sua e perguntou quem tinha escrito aquele negócio.

- Um redator lá da agência, é só isso mesmo que o cliente quer que o senhor diga, é só dizer essas palavrinhas.

- Não digo. Só digo textos de alta qualidade literária.

- Mas qualidade literária aqui, o senhor...

- Não adianta. Procurem João Ubaldo Ribeiro. Só leio se ele escrever. E vocês paguem a ele decentemente, para eu não passar vergonha.

Pronto. Ali estava o compreensivelmente indignado representante da agência para que eu escrevesse a frase que Caymmi leria. O cheque era régio, dava de sobra para me safar do que na época se chamava pindaíba total. Mas escrever o quê? Pois é, disse o emissário, não tem nada o que escrever, é só "eu sou Dorival Caymmi e estou aqui em Belo Horizonte etc.", só isso. Vi que era verdade e, morto de vergonha, pedi pelo menos para copiar as palavras na minha máquina, para Caymmi realmente receber um papel saído de minhas mãos. Voltaram lá, ele nem olhou o texto, só perguntou se era meu mesmo.

- Então eu leio - disse ele. - Se é do João Ubaldo, eu leio.

E leu. Dias mais tarde, apareci de novo na casa dele, trocamos umas abobrinhas e ele, antes de recomeçar a história como sempre, me perguntou se as coisas tinham melhorado, eu disse que sim, ele bloqueou meu agradecimento, voltou logo à história e nunca me falou no assunto.

É desse Caymmi que estou lembrando agora, com o coração apertado. Que ele foi uma dos maiores artistas da nossa História, que falas suas se incorporaram à linguagem popular mais do que as de qualquer outro, que ele foi um grande, incomparável e insubstituível criador de beleza, isso e muito mais eu não preciso repetir, porque todos sabemos, Deus seja louvado.

(© Estadão)


A jangada voltou só

Daniel Piza

Dorival Caymmi fez poucas canções para seus 94 anos de vida, encerrada na semana passada, e no entanto é difícil imaginar música ainda tão longe de ser compreendida em sua grandeza. Acho que isso acontece porque ela ainda é vítima de duas apreensões: a dos que não percebem a sofisticação de sua arte, desprezando-a como exaltação da baianidade e brasilidade ou como produto da intuição preguiçosa; e a dos que querem convertê-lo justamente em estereótipo, num porta-voz da felicidade dengosa e mestiça que encarnaria o mito brasileiro, o projeto tropical. Mas, como água, sua música escorre pela brecha entre o rural e o urbano, o sociológico e o colonizado, o autóctone e o globalizado.

Prova disso é ser inclassificável e incomparável. Como classificá-la? Vi na Wikipédia que consta dos gêneros "samba, bossa nova". Não! Ou não só! E com quem compará-la? Só me ocorrem paralelos fora da arte musical, como na pintura de Pancetti e na literatura de Jorge Amado. Mesmo assim, são falhas. Caymmi tem o mesmo olhar de Pancetti, naquelas marinhas cuja beleza está em se aproximar da abstração e criar uma sensação de prazer sereno, mas não tem os personagens de Caymmi. Jorge Amado tem os personagens, a narrativa, mas Caymmi jamais é discursivo, jamais pinta sua galeria com o pano de fundo ideológico. Há rigor em sua malemolência; há vitalidade em sua concisão.

Achei divertido ler que suas canções são a expressão do desejo brasileiro de criar uma civilização alegre, etc. e tal. Alegre? Pode ser que Maracangalha seja alegre, ou Gabriela, ou tantas mais. Mas o que dizer da maioria de suas canções praieiras, certamente a parte mais sólida de sua obra, assim considerada até mesmo por Jorge Amado? A Jangada Voltou Só, O Bem do Mar e É Doce Morrer no Mar (com letra de Amado), minhas três preferidas, estão mais para tristes. Na primeira, Chico, o "boi do rancho" no Natal, e Bento, o cantador, morreram no mar, e as moças de Jaguaripe "choraram de fazer dó"; a festa acabou. Em O Bem do Mar há uma gravura extraordinária do homem dividido entre amor e aventura, o que lhe dá alcance universal. E na terceira, que investe no jogo doce-salgado, a tristeza é declarada ("Triste noite foi pra mim"), ao mesmo tempo que se aceita nobremente que um marinheiro morra afogado.

Esses saveiros e jangadas que não voltam misturam, assim, uma melancolia que parece remeter aos portugueses, como nas modinhas (com tintas de cultura árabe), e uma defesa da festa (como nos ritmos africanos). Caymmi, portanto, está longe de ser precursor do axé. E essa ambigüidade de suas canções praieiras se realizam com uma qualidade musical infinitamente superior. Suas melodias são lindas, de uma leveza sinuosa, e não por acaso o assobio introdutório de O Bem do Mar parece antecipar a bossa nova. Suas harmonias são de grande requinte, com modulações admiráveis, acentos que criam o dramático na medida certa ("é o mar, é o mar, é o mar/ que carrEga com A gente/ prA gente pescar"). E suas letras são pictóricas, fanopaicas: "Fez sua cama de noivo/ No colo de Iemanjá." Há um suave toque do mítico em Caymmi, como a lagoa escura arrodeada de areia branca no Abaeté.

Uma série de outras canções não se encaixa nem nessa modinha dramática nem no samba-exaltação de Maracangalha ou O Que É Que a Baiana Tem?. Penso em João Gilberto cantando Doralice ou Saudade da Bahia, captando o humor brejeiro numa dicção sincopada, sestrosa, suingada - como, de resto, fez Carmen Miranda em O Que É Que a Baiana Tem?, com grande talento vocal debaixo dos abacaxis e balangandãs. Não se pode confundir Caymmi com Ary Barroso; Caymmi é mais moderno. E há outra característica que se esqueceu: o cantor que ele era! Como Bento, "tinha bom peito e pra cantar não tinha vez". Mas seu vozeirão não deixava escapar as passagens tonais e sabia cantar ligeiro.

Seu sincretismo não era o dos estereótipos, dos estigmas que tanto agradam a antropólogos franceses em busca de seus antípodas. Era o da fusão de gêneros musicais, até mesmo o jazz que dizia ter escutado tanto na juventude, e sua superação numa forma peculiar, inimitável. As melhores misturas são as finas, já disse Ivan Lessa. São obras individuais, não planos coletivos. "Pobre de quem acredita/ Na glória e no dinheiro para ser feliz." Sofisticado, triste, intuitivo, alegre, Caymmi ensinou como ser o que se é. Pena que nem seus fãs aprenderam.

(© Estadão)

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