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Dorival Caymmi |
A principal fonte de consulta dos pesquisadores da
Música Popular Brasileira é o Dicionário Cravo Albin da
MPB. Em sua versão na internet, a obra aponta exatas 112
obras compostas por Dorival Caymmi - 86 só dele e 26 em
parcerias (com João de Barro, Danilo Caymmi, Osvaldo
Santiago, Manuel Bandeira, Jorge Amado, Carlos Lacerda,
Antônio Almeida, Alcyr Pires Vermelho, Alberto Ribeiro,
Carlos Guinle, Jacques Klein e Hugo Lima).
Agora, preste atenção em quantas destas, por ordem
alfabética se tornaram clássicos da MPB: A jangada
voltou só, A lenda do Abaeté, Acalanto, acontece que eu
sou baiano, Das rosas, Dora, Doralice, É doce morrer no
mar, Eu não tenho onde morar, História de pescadores,
João Valentão, Lá vem a baiana, Maracangalha,
Maricotinha, Marina, Marcha dos Pescadores, Modinha de
Gabriela, Não tem solução, Nem eu, Nunca mais, O bem do
mar, O mar, O vento, Oração de Mãe Menininha, O que é
que a baiana tem?, Peguei um Ita no norte, Requebre que
eu dou um doce, Retirantes, Rosa Morena, Sábado em
Copacabana, Samba da minha terra, Santa Clara Clareou,
Saudade da Bahia, Saudade de Itapoã, Suíte dos
pescadores, 365 igrejas, Vestido de bolero, Você já foi
à Bahia? e Você não sabe amar.
Faltou alguma? Bem, aí acima estão 39. Portanto, fazendo
a conta simples, 34,5% das canções compostas por Dorival
Caymmi podem ser consideradas clássicas na história da
música brasileira. Não se conhece, na história moderna
da música mundial, um compositor tão importante, com uma
obra tão sólida. Mesmo artistas com grande sucesso e
larga produção não conseguem ter sequer dez canções
“definitivas”.
É isso que fará Dorival Caymmi, falecido no domingo
passado, ser lembrado para sempre - ao contrário das
brincadeiras que se faziam com ele, de ter uma preguiça
monstruosa (galhofa espalhada principalmente pelo
humorista Jô Soares). Ou de que ele tinha se cansado de
compor, que tinha uma excessiva vaidade ou defeitos
afins. Tudo isso passará, a obra de Caymmi continuará.
É impressionante constatar, ao ver a lista de canções do
compositor baiano, que ele conseguiu ser o introdutor e
divulgador de duas vertentes importantes da música
brasileira - o samba da Bahia, com influência do
samba-de-roda africano, e o samba-canção, com vestígios
do bolero latino. Ele já começou abalando as estruturas,
em 1938 (isso mesmo, há 70 anos), com O que é que a
Baiana tem? na sua primeira audição na rádio Tupi do Rio
de Janeiro. Ninguém entendia como ele conseguia trazer
todo um estado de espírito apenas na voz e no violão.
Mas ele fazia isso, e mudou a forma de se tocar violão e
de se fazer samba. Só com aquela estréia ele já
influenciaria gerações.
Mas ele fez mais - levou todos os elementos baianos para
a música, cada um no momento certo. O mar, o vento, a
mulher, a praia, a igreja (quer dizer, as igrejas). Se
havia alguém que ainda não tenha entendido, ele fez
questão de explicar em Samba da minha terra: “O samba da
minha terra deixa a gente mole / quando se canta todo
mundo bole (...) / quem não gosta de samba / bom sujeito
não é / é ruim da cabeça / ou doente do pé / eu nasci
com o samba / no samba me criei / e no danado do samba /
nunca me separei...”.
Nunca mesmo. Suas canções ficaram eternizadas, e foram
regravadas por muitos. As principais delas por João
Gilberto, que não se cansa nunca de homenagear Caymmi.
Mas ninguém consegue superar o próprio compositor
cantando, com seu fraseado especial e seu vozeirão
característico. Incrível - além de ser um baita
compositor, Dorival ainda foi um ótimo intérprete (para
quem não acreditar, que ouça Inútil paisagem, de Tom
Jobim e Aloysio de Oliveira, com ele e a filha Nana).
E as duas virtudes se afirmaram na sua incursão pelo
samba-canção. Parecia que tinha nascido no Rio, criado
em Copacabana e vivido noites intermináveis no Road
Point, no Meia-Noite e no Sacha’s. Embrenhou-se no mundo
da fossa - sem ter a menor experiência no assunto - e
saiu de lá com Nem eu, Nunca mais, Não tem solução e
Você não sabe amar.
Canções com o brilho da qualidade de composição de
Dorival Caymmi e com o gosto de uísque com gelo das
noites cariocas - que, à época, não tinha tantos
letristas de qualidade militando nesta vertente. É
possível imaginar que o sucesso do baiano com os
sambas-canções fez com que outros artistas se animassem
a compor. Caso específico de Tom Jobim, que iniciou a
carreira com músicas neste estilo.
Já ficou claro, até agora, que Dorival Caymmi é um dos
grandes da música brasileira. Mas ele foi também um nome
internacional. Primeiro com o sucesso de Carmem Miranda,
com O que é que a Baiana tem?, e de Aurora Miranda, com
Você já foi à Bahia?, usada em um filme de Walt Disney.
Mais tarde, o próprio Caymmi ganhou as paradas - já com
cabelos brancos e aquele estilão que ficou notório
(cabelo curto, camisa listrada, calça branca e
sandálias), ele brilhou com Das rosas, ou And roses and
Roses, a versão cantada por ele e Andy Williams.
E Caymmi fez mais. Virou influência básica da Bossa
Nova, compôs um tema festivo que virou sucesso (Oração
de Mãe Menininha), fez dois clássicos em novelas
(Retirantes e Modinha de Gabriela). Seu maior sucesso
popular, Maracangalha, parece uma brincadeira de tão
divertida que é. Teve três filhos, todos grandes músicos
(Danilo, Dori e Nana). E ainda compôs o que é a maior
canção de ninar. Acalanto é tão linda que só poderia ter
saído da cabeça privilegiada de Dorival Caymmi.
Dorival Caymmi, um músico brasileiro
Patrick Labesse
Gilberto Gil e Caetano Veloso dizem que ele é o seu pai espiritual, e João
Gilberto o considera como seu ídolo. Um músico entre os mais respeitados na
comunidade artística brasileira, amigo do escritor Jorge Amado (1912-2001),
o cantor, autor e compositor Dorival Caymmi morreu em 16 de agosto, no Rio
de Janeiro, de um câncer, que ele tratava havia vários anos, segundo
declarou, na TV Globo, a sua neta Stella Caymmi. Ele tinha 94 anos.
Considerado como um dos criadores que definiram as bases da música popular
moderna do Brasil, pai dos cantores Nana Caymmi, Dori Caymmi e Danilo
Caymmi, ele nasceu em Salvador, Bahia, em 30 de abril de 1914. Quando a sua
morte foi anunciada, os governadores da Bahia e do Rio de janeiro, onde ele
vivia desde 1938, declararam luto oficial de três dias. "A sua música faz
parte da herança cultural da nação", declarou o presidente Lula, ao
prestar-lhe uma homenagem.
O filho de um imigrante italiano e de uma baiana, Dorival Caymmi se
notabiliza pela primeira vez no final dos anos 1930, quando compõe "O Que é
Que a Baiana Tem?" para a cantora e atriz Carmen Miranda (1909-1955), uma
das primeiras artistas brasileiras a conquistar uma notoriedade importante
na Europa e nos Estados Unidos - ela receberá o apelido de "Brazilian
bombshell in Hollywood" (a brasileira explosiva de Hollywood) por conta dos
incontáveis filmes que ela estrelou.
A partir do sucesso desta música, Dorival Caymmi inicia uma carreira que
durará cerca de sessenta anos, ao longo da qual ele gravará mais de vinte
álbuns e comporá cerca de cem músicas. Foram sambas e baladas que se
tornaram clássicos, entre os quais "Samba da Minha Terra", "Promessa de
Pescador", "O Vento" e "Saudade da Bahia". São músicas que expressam toda a
sua gratidão para com a sua terra, a sua paixão pelo mar e seu carinho pelos
pescadores, e que prestam homenagem ao povo negro e às mulheres da Bahia, a
"africana".
Músico de importância crucial para o patrimônio musical
A partir dos anos 1960, artistas de maior relevância retomam suas
composições ou delas se inspiram. Este foi o caso dos mestres da bossa nova,
um gênero do qual se comemora o jubileu neste ano, e de artistas como
Antonio Carlos Jobim e João Gilberto, os tropicalistas Gilberto Gil e
Caetano Veloso, Baden Powell, a cantora Joyce...
Em 1978, quando Sarah Vaughan vai gravar um disco no Rio, Dorival Caymmi dá
um pulo até o estúdio para acompanhá-la numa das suas composições ("Das
Rosas"). Alguns anos atrás, Marisa Monte, uma das jovens estrelas da música
brasileira, cantou em duo com a cabo-verdiana Cesaria Evora "É Doce Morrer
no Mar", uma composição de Dorival Caymmi, mais uma vez.
Todas essas interpretações se destacam como homenagens prestadas a um músico
que reveste uma importância crucial para o patrimônio musical brasileiro. Na
França, Caymmi foi contemplado com a medalha da ordem das Artes e das
Letras, em 1984, e foi o objeto de um retrato documentário realizado em 1999
por Aluisio Didier, intitulado "Um Certo Dorival Caymmi".
Muito além das releituras das suas músicas, o nome de Dorival Caymmi vem se
perpetuando através dos seus filhos, Dori, Danilo e Nana Caymmi, três vozes
renomadas no Brasil. Eles foram formados por impregnação no começo das suas
carreiras, acompanhando seu pai em suas turnês ou nos estúdios de gravação.
Tradução: Jean-Yves de Neufville
(©
UOL Mídia Global/Le Monde)
Memória de Caymmi
João Ubaldo Ribeiro
Infelizmente, a linguagem é linear e as coisas têm que ser contadas em
sucessão. Que fazer, a gente vive no tempo - há sempre um "antes", um
"durante" e um "depois". Mas eu gostaria que fosse possível fotografar uma
amizade de mais de quatro décadas, como a de Dorival Caymmi comigo. Não
filmar, cujo resultado, por mais que inventem truques engenhosos, tampouco
escapa da linearidade, mas fotografar mesmo. É como se tudo pudesse ter sido
simultâneo, do jeito em que agora está na minha cabeça. Não me ocorre uma
sucessão ou conjunto de fatos, me vem somente uma espécie de claridade
alegre, risonha, festeira. E não há como transmitir isso a ninguém.
Mas, se não posso livrar-me da cronologia, posso pelo menos embaralhá-la à
vontade. E agora estamos ele e eu sentados na casa dele na Bahia, há não sei
quantos anos. Ele em sua poltrona favorita, perto da porta de entrada. Sem
camisa, de bermuda e chinela, peito tomado por colares de contas e guias de
todos os tipos, cabeça repousada sobre o telefone em que falava, recusando à
sua maneira um convite para festa ou almoço, não lembro bem. Quem nunca viu
Caymmi recusar alguma coisa perdeu um espetáculo único. Aliás, quem nunca
conviveu com Caymmi um pouco assim meio que perdeu muito, como às vezes se
diz lá na ilha.
Ele nunca recusava convites explicitamente, pelo menos que eu tenha
testemunhado - e testemunhei diversos. Conversava com o convidador sobre
assuntos variados, filosofava um pouco, concordava enfaticamente com algumas
afirmações do outro, contava histórias, fazia observações, comentava o
tempo, elogiava profusamente quem quer que fosse mencionado na conversa e
ria com freqüência. Enfim, montavam-se verdadeiras prosas, em que o sujeito
acabava se despedindo e desligando, provavelmente sem entender nada e não
tendo nem certeza sobre se o convite fora mesmo recusado. Uma vez comentei
isso com ele e ele respondeu muito sério, embora com aquela expressão marota
que não o deixava nem quando ele se aborrecia: "É uma técnica que eu
desenvolvi e só não patenteei porque só quem sabe usar sou eu".
Acabado o telefonema, passou-se à verdadeira prosa, a que se dava entre nós.
Pode ser que meus amigos pessoais não acreditem, mas eu ouvia muito mais do
que falava. Logo aprendi que havia algo que denominei, por falta de
inventividade, de "a história de Caymmi". A história não era a da vida dele,
embora sua biografia aparecesse muito, mas era simplesmente a história. Um
dos melhores conversadores que conheci, expressivo, eloqüente, histriônico,
ele pegava a palavra e ninguém queria mais que ela lhe fosse tomada. A
história começava por algum acontecimento mencionado e ia seguindo,
desenrolando-se como uma serpentina ou uma espiral, e não acabava nunca. E
ninguém que a ouvia queria que acabasse. E ainda não acabou mesmo, só que
não mais está conosco seu grande contador.
Corte para outro encontro na casa dele, onde eu não tinha aparecido nem dado
notícias havia semanas. Que tinha acontecido? Respondi que andava me
virando. Mercado sempre difícil para jornalistas, escritores e afins, dureza
mesmo. Mas que ele não se preocupasse, eu me virava. E ele, apesar de
algumas palavras encorajadoras, pareceu não se preocupar mesmo.
Dias mais tarde, me procura, num dos bicos em que eu batalhava contra a
penúria, o representante de uma agência de propaganda. Um banco, cliente
dessa agência, ia inaugurar sua primeira filial em Belo Horizonte e haviam
escolhido Caymmi para estrelar um comercial dirigido aos mineiros. Ele só
tinha que aparecer vestido de Dorival Caymmi mesmo e dizer uma frase de duas
linhas. Tudo acertado, foram a ele e mostraram a frase. Não precisava nem
decorá-la, podia ler de um cartaz posto à sua frente, fora de cena. Ele a
examinou com gravidade, fez a beiçola de dúvida que era também marca sua e
perguntou quem tinha escrito aquele negócio.
- Um redator lá da agência, é só isso mesmo que o cliente quer que o senhor
diga, é só dizer essas palavrinhas.
- Não digo. Só digo textos de alta qualidade literária.
- Mas qualidade literária aqui, o senhor...
- Não adianta. Procurem João Ubaldo Ribeiro. Só leio se ele escrever. E
vocês paguem a ele decentemente, para eu não passar vergonha.
Pronto. Ali estava o compreensivelmente indignado representante da agência
para que eu escrevesse a frase que Caymmi leria. O cheque era régio, dava de
sobra para me safar do que na época se chamava pindaíba total. Mas escrever
o quê? Pois é, disse o emissário, não tem nada o que escrever, é só "eu sou
Dorival Caymmi e estou aqui em Belo Horizonte etc.", só isso. Vi que era
verdade e, morto de vergonha, pedi pelo menos para copiar as palavras na
minha máquina, para Caymmi realmente receber um papel saído de minhas mãos.
Voltaram lá, ele nem olhou o texto, só perguntou se era meu mesmo.
- Então eu leio - disse ele. - Se é do João Ubaldo, eu leio.
E leu. Dias mais tarde, apareci de novo na casa dele, trocamos umas
abobrinhas e ele, antes de recomeçar a história como sempre, me perguntou se
as coisas tinham melhorado, eu disse que sim, ele bloqueou meu
agradecimento, voltou logo à história e nunca me falou no assunto.
É desse Caymmi que estou lembrando agora, com o coração apertado. Que ele
foi uma dos maiores artistas da nossa História, que falas suas se
incorporaram à linguagem popular mais do que as de qualquer outro, que ele
foi um grande, incomparável e insubstituível criador de beleza, isso e muito
mais eu não preciso repetir, porque todos sabemos, Deus seja louvado.
(©
Estadão)
A jangada voltou só
Daniel Piza
Dorival Caymmi fez poucas canções para seus 94 anos de vida, encerrada na
semana passada, e no entanto é difícil imaginar música ainda tão longe de
ser compreendida em sua grandeza. Acho que isso acontece porque ela ainda é
vítima de duas apreensões: a dos que não percebem a sofisticação de sua
arte, desprezando-a como exaltação da baianidade e brasilidade ou como
produto da intuição preguiçosa; e a dos que querem convertê-lo justamente em
estereótipo, num porta-voz da felicidade dengosa e mestiça que encarnaria o
mito brasileiro, o projeto tropical. Mas, como água, sua música escorre pela
brecha entre o rural e o urbano, o sociológico e o colonizado, o autóctone e
o globalizado.
Prova disso é ser inclassificável e incomparável. Como classificá-la? Vi na
Wikipédia que consta dos gêneros "samba, bossa nova". Não! Ou não só! E com
quem compará-la? Só me ocorrem paralelos fora da arte musical, como na
pintura de Pancetti e na literatura de Jorge Amado. Mesmo assim, são falhas.
Caymmi tem o mesmo olhar de Pancetti, naquelas marinhas cuja beleza está em
se aproximar da abstração e criar uma sensação de prazer sereno, mas não tem
os personagens de Caymmi. Jorge Amado tem os personagens, a narrativa, mas
Caymmi jamais é discursivo, jamais pinta sua galeria com o pano de fundo
ideológico. Há rigor em sua malemolência; há vitalidade em sua concisão.
Achei divertido ler que suas canções são a expressão do desejo brasileiro de
criar uma civilização alegre, etc. e tal. Alegre? Pode ser que Maracangalha
seja alegre, ou Gabriela, ou tantas mais. Mas o que dizer da maioria de suas
canções praieiras, certamente a parte mais sólida de sua obra, assim
considerada até mesmo por Jorge Amado? A Jangada Voltou Só, O Bem do Mar e É
Doce Morrer no Mar (com letra de Amado), minhas três preferidas, estão mais
para tristes. Na primeira, Chico, o "boi do rancho" no Natal, e Bento, o
cantador, morreram no mar, e as moças de Jaguaripe "choraram de fazer dó"; a
festa acabou. Em O Bem do Mar há uma gravura extraordinária do homem
dividido entre amor e aventura, o que lhe dá alcance universal. E na
terceira, que investe no jogo doce-salgado, a tristeza é declarada ("Triste
noite foi pra mim"), ao mesmo tempo que se aceita nobremente que um
marinheiro morra afogado.
Esses saveiros e jangadas que não voltam misturam, assim, uma melancolia que
parece remeter aos portugueses, como nas modinhas (com tintas de cultura
árabe), e uma defesa da festa (como nos ritmos africanos). Caymmi, portanto,
está longe de ser precursor do axé. E essa ambigüidade de suas canções
praieiras se realizam com uma qualidade musical infinitamente superior. Suas
melodias são lindas, de uma leveza sinuosa, e não por acaso o assobio
introdutório de O Bem do Mar parece antecipar a bossa nova. Suas harmonias
são de grande requinte, com modulações admiráveis, acentos que criam o
dramático na medida certa ("é o mar, é o mar, é o mar/ que carrEga com A
gente/ prA gente pescar"). E suas letras são pictóricas, fanopaicas: "Fez
sua cama de noivo/ No colo de Iemanjá." Há um suave toque do mítico em
Caymmi, como a lagoa escura arrodeada de areia branca no Abaeté.
Uma série de outras canções não se encaixa nem nessa modinha dramática nem
no samba-exaltação de Maracangalha ou O Que É Que a Baiana Tem?. Penso em
João Gilberto cantando Doralice ou Saudade da Bahia, captando o humor
brejeiro numa dicção sincopada, sestrosa, suingada - como, de resto, fez
Carmen Miranda em O Que É Que a Baiana Tem?, com grande talento vocal
debaixo dos abacaxis e balangandãs. Não se pode confundir Caymmi com Ary
Barroso; Caymmi é mais moderno. E há outra característica que se esqueceu: o
cantor que ele era! Como Bento, "tinha bom peito e pra cantar não tinha
vez". Mas seu vozeirão não deixava escapar as passagens tonais e sabia
cantar ligeiro.
Seu sincretismo não era o dos estereótipos, dos estigmas que tanto agradam a
antropólogos franceses em busca de seus antípodas. Era o da fusão de gêneros
musicais, até mesmo o jazz que dizia ter escutado tanto na juventude, e sua
superação numa forma peculiar, inimitável. As melhores misturas são as
finas, já disse Ivan Lessa. São obras individuais, não planos coletivos.
"Pobre de quem acredita/ Na glória e no dinheiro para ser feliz."
Sofisticado, triste, intuitivo, alegre, Caymmi ensinou como ser o que se é.
Pena que nem seus fãs aprenderam.
(©
Estadão) |