Manuel Bandeira acaba de ter
suas poesias amorosas e crônicas inéditas publicadas pela Cosac NaifyManuel Bandeira escreve os
versos que se chamarão Madrigal Melancólico. É 11 de junho de 1920. Tem 34
anos esse homem tímido e miúdo, de uma vibração terna e a experiência
sustada pela sombra de uma tuberculose que prometia, qualquer hora dessas,
levá-lo.
Talvez seja possível ver Madrigal Melancólico, ele
mesmo, como um tratado de estilo de Bandeira, o poeta cuja morte completa 40
anos, oportunidade para a reedição de sua obra consagrada e o lançamento de
inéditos, que têm agitado o mercado editorial.
Madrigal é um tipo
de balada lírica comum às mães italianas que ninavam seus filhos ou aos
pastores que matavam o tempo, acalentando seus rebanhos no século 14. Aquele
milênio veria chamar de "madrigal" a uma estrutura poética flutuante, muitas
vezes de 5 a 16 versos de 7 a 11 sílabas, mas que bem se prestava à
composição musical.
Bandeira quer cantar, portanto. Canta a
atração. Não para desenganar-se das juras de amor, como o adjetivo
"melancólico" faria crer. Nem para fazer figura às virgens cem por cento.
Porque Bandeira não canta uma atração em particular, mas "a" atração.
"O que eu adoro em ti,
Não é a tua beleza.
A
beleza, é em nós que ela existe.
A beleza é um conceito.
E a
beleza é triste.
Não é triste em si,
Mas pelo que há nela de
fragilidade e de incerteza."
Atributo
Descarnado de propriedades acidentais, o que sobra de uma paixão? Um a um, o
poema descarta predicados que vêm à mente. Se não é beleza, por certo será a
inteligência. Se não esta, a presença de espírito, talvez o humor, decerto a
graciosidade ou a lembrança da infância.
O que eu adoro em ti,
Não é a tua inteligência.
Não é o teu espírito sutil,
Tão ágil,
tão luminoso,
- Ave solta no céu matinal da montanha.
Nem é a tua
ciência
Do coração dos homens e das coisas.
O que eu
adoro em ti,
Não é a tua graça musical,
Sucessiva e renovada a
cada momento.
Graça aérea como o teu próprio
pensamento.
Graça que perturba e que satisfaz.
O que eu adoro em ti,
Não é a mãe que já perdi.
Não é a irmã que
já perdi.
E meu pai.
Argumento do ritmo
|
Irene no céu por Graça
Lima, em Berimbau e Outros Poemas (Nova Fronteira) |
Manuel Bandeira cerca cada atributo (a
beleza, a inteligência, a graça, a lembrança querida), desenvolve as vias de
força de cada qualidade antes de partir para a próxima resposta à questão
que se propõe. Os versos que o poeta usa têm métrica livre, mas sente-se a
rédea do ritmo, que, puxado pelo (falso) mote "O que eu adoro em ti,", se
acelera a cada estrofe.
Até que, na cinza das horas, algo muda no
poema.
O que eu adoro em tua
natureza,
Não é o profundo instinto maternal
Em teu flanco aberto
como uma ferida.
Nem a tua pureza. Nem a tua impureza.
O que eu
adoro em ti
- lastima-me e consola-me!
O que eu adoro em ti, é a
vida.
A mudança do verso inicial da estrofe indica que
algo diferente será dito em seguida. Bandeira destrincha qualidades opostas
ao preparar o arremate: emocionais (o instinto maternal) e cerebrais (o
apreço cultural à pureza, o impulso calculado rumo ao lascivo). Pois com
elas mantém a tônica do poema sugerida nas estrofes anteriores, mas num
ritmo que se precipita nos dois versos finais.
Essa ênfase, essa
mudança de tom, a precipitação brusca provocada pela exclamação ("lastima-me
e consola-me!"), abre terreno para o impacto da informação final: é a vida,
pulsão vital, impulso da vontade; é o entusiasmo de ser que responde pelo
êxtase que contagia - e o que de mais apaixonante haveria?
Essa
"qualidade" (se a vida for qualidade), insinua o poeta, escuda a adoração,
impede que o que se sente pelo outro se esgote em propriedades particulares
que, no cotidiano, tendem a ser valorizadas. O poema faz uso retórico do
ritmo, o momento em que se fundem informação vital e ápice declamativo, com
a sensibilidade para preparar a chegada desse momento.
Sublimação
|
Versão de Guignard
para Santa Maria Egipcíaca, de Bandeira |
Muitas são as pérolas em Manuel Carneiro de Souza Bandeira
Filho (1886-1968), no nível de Madrigal Melancólico. Algumas, no entanto,
nunca viraram livro. Agora, a editora Cosac Naify começou a trazer a público
os inéditos do autor.Lançará, a partir deste semestre, em edição caprichada,
sua poesia amorosa desconhecida e uma nova leva de crônicas nunca reunida
num só volume.
A edição com inéditos, de Elvia Bezerra, terá
reproduções fac-similares de quatro poesias e dois bilhetes, desenhos do
próprio autor e um estudo sobre o tema do amor em Bandeira. A coletânea
ilustrada pretende fazer um painel biográfico do autor, entre o período de
1963 e 68, data de sua morte. Foi quando compôs até uma paródia de Vou-me
Embora pra Pasárgada, para uma paixão de fim de vida.
- Os poemas
mostram faceta não conhecida, a história de alumbramento que Bandeira viveu
aos 78 anos, quando se apaixonou por uma mulher de 28.
Elvia
identificou semelhanças entre a amostra do novo livro e ao menos três poemas
de obras editadas pelo autor, como O Fauno.
- Há associação clara
entre alguns dos inéditos e os conhecidos. A poesia de Bandeira tem muito de
biográfica, embora na maioria dos poemas de amor que publicou ele tenha
omitido a fonte de inspiração.
Dizia-se que ele sublimava
paixões.
- Coisa nenhuma e nisso concordo com o
crítico Ivan Junqueira. Gosto em Bandeira principalmente da delicadeza de
seu erotismo. Ele é de um lirismo discreto, achava que a língua inglesa
facilitava a tradução, porque nela mesmo a maior ternura não ficava
"melada". Sua poesia era sensual até pela delicadeza que lhe era
característica - diz Elvia Bezerra.
A pesquisadora acredita que
Bandeira chegou a um grau de refinamento dessa delicadeza no erotismo em
poemas como Arte de Amar ("Deita o teu corpo sobre outro corpo / Que os
corpos se entendem / Mas as almas, não.") e Unidade, especialmente o último
verso ("no momento fugaz da unidade"). É esse tipo de sutileza, defende
Elvia, que permitiria ao leitor fruir vários níveis de leitura na obra
bandeiriana.
Ritmo dissoluto
Manuel
Bandeira é o poeta da delicadeza que procura liberdade de movimentos. Tal
busca parece tê-lo levado, por exemplo, à experimentação formal (foi um dos
precursores do Modernismo e trilhou do verso livre à forma fixa, passando
pela poesia concreta). Levou-o também à predileção por certos temas, como o
desconforto ante o confinamento, a lucidez no trágico e a cumplicidade com a
morte. Mas, principalmente, o desejo de liberdade de movimentos parece ter
levado o poeta à observação carinhosa sobre o que há de ordinário no mundo.
O poeta transforma fatos pessoais e a mazela cotidiana em matéria bruta de
composição. O falho no ser humano é tratado por ele com a reserva permissiva
de um confessor compreensivo. O fatídico é nele descrito com leveza, humor e
resignação. É assim que, por uma causa de fé, Santa Maria Egipcíaca dá o
corpo ao balseiro, para atravessar um rio. Que a dama branca (a morte) o
visita. Que se torna amigo do rei de Pasárgada. Que uma notícia de jornal
vira verso. Ou Irene, sua ama preta, entra no céu.
Um poema seu
desenvolve quase sempre um espanto de observação, quando não pinça um
momento fugidio, com a ironia travessa de um amigo discreto.
Em mais de uma ocasião, o crescendo de seus versos prepara a
irrupção no ritmo, que não raro estala rente ao final do poema.
Assim eu quereria o meu último poema
Que fosse terno
dizendo as coisas mais
simples e menos intencionais
Que fosse
ardente como um soluço sem
lágrimas
Que tivesse a beleza das
flores quase sem
perfume
A pureza da chama em que se consomem
os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam
sem
explicação
Aqui, o
penúltimo verso de O Último Poema, num trecho cuja extensão fora antecipada
(autorizada) pelo segundo verso, prolonga a recitação e faz a retomada de
fôlego funcionar no poema como uma apresentação calculada para a constatação
final.
Referência
|
O poeta nos anos 60:
uso argumentativo do ritmo, a serviço da exploração de limites |
Manuel Bandeira costuma ser lembrado em
vestibulares e compêndios literários pela importância histórica de sua
poesia, como a de Os Sapos, crítica a "certos ridículos do
pós-parnasianismo", apresentada na Semana de Arte Moderna, em fevereiro de
1922. Assim como Pneumotórax e Vou-me Embora pra Pasárgada, ou como Evocação
de Recife ou Poética, pequenas grandes peças de uma engrenagem que ajudou a
abrir caminho para o verso livre e para uma dicção poética à brasileira.
Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem
comportado
Do lirismo funcionário público com livro
de ponto
expediente protocolo
e manifestações de apreço ao sr. diretor
Estou farto do lirismo que pára e vai
averiguar no dicionário o cunho
vernáculo de um vocábulo
(...)
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O
lirismo dos clowns de Shakespeare
- Não quero mais saber
do lirismo que não é libertação.
Bandeira, no entanto, tem asas mais amplas. É, por exemplo, um cronista
cosmopolita e polivalente o que vemos flagrado em Crônicas Inéditas 1
(1920-1931), organizadas por Júlio Castañon Guimarães para a Cosac Naify. Se
o ofício da escrita impõe ser sensato, Bandeira o será tanto por meio de
ironia e coloquialidade quanto de gravidade e consistência.
- Sua
prosa era bem diferente da idéia que hoje se faz de crônica. Seu texto
reporta os fatos cotidianos, traz comentários à vida cultural do momento, a
um passo da atividade crítica - diz Castañon.
Virada
Castañon acaba de lançar, pela editora Globo, Por que
Ler Manuel Bandeira, uma apresentação biográfica e literária para, segundo o
autor, situar o leitor e mostrar que a poesia não era, em Bandeira,
atividade isolada do cronista, crítico e tradutor. O pesquisador da Fundação
Casa de Rui Barbosa, no Rio, vê uma virada de temas e de estilo nas crônicas
bandeirianas a partir de meados dos anos 20.
- No início,
ele abordava concertos, músicas e livros num texto próximo da crítica.
Depois, os temas mudam, e ele vira o analista da cidade, do cinema. Seu
estilo também muda, refletindo a passagem da concepção anterior, simbolista
e de poesia metrificada, para o Modernismo.
Bandeira
teria mantido a unidade de estilo de um momento a outro pelo cuidado com o
idioma, avalia Castañon.
- Mesmo quando toma liberdades
com o idioma, o conhecedor da língua se destaca. O Modernismo se instala em
sua prosa na reprodução de falas do cotidiano, no apelo ao oral e ao humor,
na incorporação de uma visão irônica sobre os fatos.
Apesar de feitas no calor do momento, as crônicas de Bandeira mantêm o
interesse, não só pelo valor histórico, mas porque o tipo de reflexão e
muitos dos fatos que o poeta retratou fazem eco até hoje. Na coluna
"Música", de setembro de 1925, mostra-se cismado com os clichês da crítica
de arte, que nos anos 20 costumava usar, de forma indiscriminada, certas
expressões, como "forma" e "técnica".
"Existe na forma
uma realidade ideal subjetiva que escapa a essa gente. Forma para eles é uma
realidade tátil, nada mais. Arte, fabricação. Ouve-se freqüentemente dizer:
Fulano tem muita técnica mas não tem sentimento. Esse Fulano, dizemos nós,
poderá ter muito mecanismo, mas não terá técnica nenhuma se não tem
sentimento. A técnica, como a arte, é essencialmente expressiva", escreve
Bandeira.
As crônicas segredam até produções poéticas
marginais. Em "Saudades dos telefones do Recife", de julho de 1929, ao
comentar o fim da função das telefonistas na nova era da comunicação direta
por fio, compôs o poema de circunstância "Comunicação Cortada", que não
constava em livro e parece até antecipar a intermediação sacal dos serviços
de atendimento ao cliente dos dias atuais:
- Número, faz
favor?
- Meu bem, você cortou a comunicação!
- Queira desculpar,
com que número estava ligado?
- Não sei, minha flor!
-
Provavelmente chamarão depois.
- É possível, meu amor!
As questões de seu tempo, o cotidiano urbano em rápida
mutação e a vida nas metrópoles de há um século ganham apreciação da
delicadeza irônica de Bandeira, a que a nova safra editorial dá dimensão.
Conhecia-se o Bandeira que usava a prosa como testemunho da consciência
técnica do poeta. Em mais de um texto, o autor revelava detalhes da
construção de seus poemas, oferecendo um painel dos recursos expressivos que
empregava.
Suas crônicas, no entanto, mostram que Bandeira
mantinha o espírito aberto. Até sobre o idioma. Em "Fala Brasileira", de
Crônica da Província do Brasil, defende a ampliação de limites da retórica
literária. "É que a linguagem literária entre nós divorciou-se da vida.
Falamos com singeleza e escrevemos com afetação."
Bandeira advoga para a escrita uma tradição mais próxima da fala, "correta
mas sem afetação literária, da sociedade brasileira culta". Para ele, uma
expressão que muitos achem errada e abusiva pode até ter menor energia,
menos concisão e elegância. Mas terá "muito mais caráter".
Era um homem assim, de dicção delicada, mas ousada.
Obra agita mercado editorial
Lançamentos, novas antologias e reedições ampliam horizonte
da compreensão da obra de Bandeira
Embora a obra poética
de Bandeira esteja (desde a festa dos 80 anos do poeta, em 19 de abril de
1966) agrupada e editada pela Nova Fronteira sob o título de Estrela da Vida
Inteira, há três anos a agência literária Solombra, do Rio, tem
diversificado a oferta de sua obra.
Essa a razão de o
público brasileiro ter testemunhado a publicação recente de novas
antologias, como A Aranha e outros Bichos (Nova Fronteira); Belo Belo e
outros Poemas (José Olympio); Para Querer Bem (Moderna) e Bandeira de
Bolso?(L&PM).?Acaba de sair do forno As Cidades e as Musas (Desiderata),
seleta temática organizada por Antonio Carlos Secchin, e a Nova Fronteira
prepara?o infanto-juvenil As Meninas e o Poeta, reunião de poemas de
circunstância.
O gás dado a Bandeira passa ainda pela
reedição de obras fora de catálogo, como 50 Poemas Escolhidos pelo Autor e
Crônicas da Província do Brasil (Cosac Naify); Seleta em Prosa e Verso e
Alguns Poemas Traduzidos (José?Olympio),?e a edição, repaginada, de Berimbau
e Outros Poemas (Nova Fronteira).
Iniciativas
No exterior, informa Alexandre Teixeira, da Solombra, foram há pouco
publicados Estrella de la vida entera(Adriana Hidalgo Editora), na
Argentina; e Vicente Huidobro e Manuel Bandeira, co-edição bilíngüe da
Academia Chilena de la Lengua e da Academia Brasileira de Letras, com
circulação no Brasil e no Chile.
A Solombra negocia
agora a nova edição da Obra Poética (ou da Obra Completa), em papel bíblia,
pela Nova Aguilar, e busca parceira para uma biografia do autor. Por fim,
negocia com a Novo Século a reedição de traduções do autor, como O divino
Narciso, de Sóror Juana Inéz de la Cruz, e A Máquina Infernal, de Jean
Cocteau.
Prosa inédita
A mais
animadora iniciativa, no entanto, parece ser mesmo a de tirar do baú obras
inéditas, como as que Cosac Naify tem proposto. Entre inéditos e
republicações, a editora trará este semestre Apresentação da Poesia
Brasileira e Crônicas Inéditas 2, continuação do volume editado este ano com
a prosa nunca fixada em livro pelo escritor (o primeiro volume traz mais de
cem textos de 1920 a 31, o segundo, quantidade similar, de 1932 aos 40).
Além de Crônicas da Província do Brasil, Poemas Religiosos e Alguns
Libertinos ganhou as prateleiras com a editora. Já Andorinha, Andorinha e
Flauta de Papel terão novas edições até o ano que vem.
(©
Revista da Língua Portuguesa)