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O engenheiro e poeta
Joaquim Cardozo |
Edição do volume que reúne a poesia completa e a
prosa do autor pernambucano peca por não trazer a
identificação dos organizadores
Manoel Ricardo de Lima
Foi publicado recentemente pela Nova Aguilar, numa parceria com a editora
Massangana, na conhecida Série Brasileira da Biblioteca Luso-Brasileira, o
volume intitulado Poesia completa e prosa de Joaquim Cardozo.
Um volume que aparece cercado por algumas discussões acerca dos créditos
de organização, e que devem ser estendidas até o que aparece e não aparece
no livro como indicação e lacuna, como serviço e falta etc. É fato que este
volume cumpre um bom lugar de acesso, principalmente para a poesia e alguns
textos esparsos sobre arte e arquitetura de Joaquim Cardozo, mas é fato
também que, ao mesmo tempo, abre motivos de alerta para outras questões
ausentes do seu trabalho aberto e amplo.
O começo da conversa toda está numa carta de João Cabral de Melo Neto
para Clarice Lispector, datada de 08/12/1948, quando pede a ela que lhe ceda
seu Coro de anjos para edição na Livro Inconsútil (aqueles pequenos livros
que Cabral fazia em prensa manual). E avisa que vai enviar a ela a Antologia
pernambucana que fez com poemas de Joaquim Cardozo. Diz: "Conhece V. a
poesia de Cardozo? Soube que publicaram há pouco, no Rio, suas poesias
completas, arrancadas do autor, que nunca publicara livro, e baseadas em
textos ‘fixados e estabelecidos’ pelo poeta e por mim, quando estava no Rio
(o poeta não tinha cópia de nenhum poema; e assim, meu trabalho foi: pedir
aos amigos as versões que possuíam e submetê-las à memória do poeta que as
corrigisse). Pois desses textos, num momento de añoranza da luz recifense,
escolhi os mais diretamente pernambucanos e organizei-os numa antologia que
tenho estado imprimindo. O próprio Cardozo não sabe de nada, nem da
estrutura que dei ao livro (um tanto especial) nem do próprio livro. A ver
se lhe agradará".
O desejo de João Cabral em editar a poesia e todo o trabalho do também
pernambucano Joaquim Cardozo tem a ver, diretamente, primeiro com a
importância que atribuía a ele e depois como pauta do pensamento sofisticado
e silencioso deste engenheiro calculista, poeta, dramaturgo, crítico de
arte, de poesia e de arquitetura. Pensamento marcado por uma linha de
variantes intensa que pode fazer o caráter institucionalizado e hierárquico
das leituras já cumpridas do modernismo brasileiro se mover para outro
lugar, mais longe e mais pantanoso, como o do esquecimento e o do deserto.
Num desvio de propósito, uma espécie de baixa sedução (seguindo
Bataille), Joaquim Cardozo ajustava sua postura política a um gesto radical
entre modesto e lúcido, como disse dele Oscar Niemeyer na Módulo, de 1961:
"... o trato ameno e simples do homem inteligente – Cardozo é o brasileiro
mais culto que conheço – incapaz de impor uma opinião com a intransigência
das coisas irrefutáveis, apresentando-as sempre como sugestões pessoais, que
julga justas e convenientes". E acrescenta: "O homem simples que se situa,
modesto e lúcido, diante do mundo transitório em que vivemos (...)". Cabral
sabia disso, por isso também manteve o desejo de publicação de uma espécie
de obra completa de Cardozo até bem perto de morrer.
Este livro agora é, um pouco, o resultado disso. Os desdobramentos da
preparação, do resultado e do projeto que ele parece traçar é que vêm
carregados de alguns problemas. Tanto é que no dia 17 de junho deste ano, no
Diário de Pernambuco, em matéria assinada por Thiago Correa, dá-se a ver uma
teia conflituosa acerca da edição do livro, da organização e,
principalmente, de algumas coisas que parecem muito localizadas.
Mas o dado é que em 2005, quando estive em Recife para recolher material
de pesquisa sobre Joaquim Cardozo, encontrei Maria da Paz Ribeiro Dantas
(pesquisadora e autora de três livros sobre o trabalho dele como poeta) e
Everardo Norões (poeta que, naquele momento, concentrava esforços na
organização deste volume). Morto João Cabral, a tarefa de organizar uma
espécie de obra completa de Joaquim Cardozo caberia, num primeiro plano de
ação, a Maria da Paz, tendo em vista a sua tarefa crítica cumprida até
agora. Mas, ao mesmo tempo, a partir do esmero com que Everardo Norões
cuidava do material recolhido entre várias pessoas, de Geraldo Santana a
Paulo Brusky, da própria Maria da Paz a César Leal entre outros, a edição
estava em boas mãos.
A questão é que o livro saiu como se não houvesse um organizador. O
mínimo que se pode fazer como compromisso é, quando há um, dar-lhe o devido
crédito. Ainda mais quando dentro do livro há um texto que lembra que há
organizador: "Como podemos constatar neste livro, organizado pelo poeta e
crítico Everardo Norões.", diz Marco Lucchesi na apresentação da poesia de
Joaquim Cardozo.
Depois, toda a parte do teatro de Joaquim Cardozo (seis peças) foi
retirada do volume – porque constava dele antes – descolando uma importância
fundamental à construção de seu pensamento e de sua poética (que é por onde
arma o seu procedimento, dos poemas às peças, da crítica ao relato etc).
Isto também terminou por reorientar o título do livro e o livro, não mais
obra completa, mas poesia. Com isso perdeu-se também o rigor minucioso do
texto de João Denys Araújo feito para este volume.
João Denys que já apresentara o teatro de Joaquim na pequena e charmosa
edição de 2001 feita pela Fundação de Cultura Cidade do Recife em cinco
volumes. Ainda, a parte relativa aos contos, ou relatos (textos muito mais
próximos do testemunho, do comentário ou da anotação íntima e que não foram
publicados em livro, mesmo que Joaquim idealizasse um conjunto), fixos assim
apenas como contos podem incorrer no desajuste com a imprecisão ou com a
necessidade conservadora de institucionalizar o impreciso ou de facilitar a
linha mais tensa de um procedimento. Isto comparece numa solicitação, a de
dar um lugar ao trabalho de Joaquim Cardozo. Lugar que ele mesmo preferiu
marcar como "participação ausente", para lembrar a expressão precisa que
Carlos Drummond de Andrade usa no prefácio ao primeiro livro de poemas de
Joaquim, em 1947. Tanto é que o primeiro texto de Joaquim Cardozo,
"Astronomia Alegre", publicado em 1913, um relato inacabado e fundamental
para a compreensão de sua "luta cósmica" também não consta do volume.
Assim, do índice econômico até o desenho solicitante que atravessa alguns
textos do livro, como o de "integrar" Joaquim Cardozo ao cânone do
modernismo brasileiro, como o de reclamar uma atenção crítica que até então
lhe foi ingrata ou um parentesco antecipador do concretismo etc, parecem
remeter a um sintoma da necessidade de construção de um monumento. E Robert
Musil nos lembra o descabido dessa condição, ao dizer que "não há nada no
mundo tão invisível quanto os monumentos". O trabalho de Joaquim Cardozo é
um móbil incessante, tanto que ao lê-lo nessa clave comum de solicitação
para o monumento se pode perder de vista alguma saída possível, alguma
disposição para sair dessa mediocridade imperativa que tem assolado este
tempo agora, este "tempo de alarme". Ele mesmo disse: "Ninguém se lembrou
que o silêncio pode ser uma energia ainda desconhecida e que sua
concentração pode, ou se abafar inteiramente, ou explodir; (...). Ou mesmo,
quem sabe, fora a própria materialização do silêncio. Se não a explosão, a
implosão do silêncio."
(©
JB Online)
Nesta
Sevilha quentíssima, passo pelas ruas, vejo os jardins e as praças, e penso
nos poemas de João Cabral de Melo Neto. Muito antes de vir para cá, às
portas do verão, foi com o poeta que imaginei a cidade. Agora fico de frente
para o Arquivo das Índias, onde ele, na condição de diplomata, pesquisou
documentos e organizou o livro O Arquivo das Índias e o Brasil (1966), em
quatro volumes. Um trabalho de valor histórico feito com a disciplina do
funcionário.
***
De todas as cidades espanholas onde trabalhou ou que conheceu, Sevilha
foi a mais sensual, a mais feminina, a que mais envolveu o corpo do poeta.
Em Barcelona, João Cabral de Melo Neto foi político: suas traduções de
poetas catalães não escondiam um gesto solidário com a língua e com os
projetos de independência da região. Ali se repetia um poema de Joan Brossa,
que tratava dos "límites del poema". Com Joan Miró estampou-se a amizade
entre dois homens e duas linguagens, com marcas de rigor e de psicologia da
composição.
***
Apolíneo por opção, resolutamente cerebral, foi em Sevilha que o poeta
expressou com maior força seu erotismo e sua lírica amorosa. Muitos pensavam
que nada disso existia em João Cabral de Melo Neto, mas lá está "Andando
Sevilha", com sua confissão integral: "Só em Sevilha o corpo está / com
todos os sentidos em riste, / sentidos que nem se sabia, / antes de andá-la,
que existissem; / sentidos que fundam num só: / viver num só o que nos vive,
/ que nos dá a mulher de Sevilha / e a cidade ou concha em que vive".
***
Sevilha acolhe neste final de mês a 33ª Sessão do Comitê do Patrimônio
Mundial, e entre itens da agenda, propostas de emendas, parágrafos da
convenção e resoluções corrigidas também encontro o poeta devotado aos
monumentos da cidade. Tudo, para ele, era uma lição de poesia: Manolete, o
impressionante toureiro, lhe ensinou o controle, o rigor, "sua severa
resignação". Aqui comento o patrimônio imaterial, pois o poeta sabia fazer a
diferença entre o sevilhano e o cordobês. Mas o patrimônio edificado também
lhe falava de poesia: a torre La Giralda, com suas flores de ferro forjado
no alto, "nos quatro vasos da esquina", mostrava as vantagens de trabalhar
duro a palavra, o verso e a imagem, até que o poema adquirisse uma forma
final e artesanal indiscutível.
***
Na construção do espaço, o poeta demonstra sua visão não apenas
fortemente patriarcal, mas também estritamente machista. O espaço de Sevilha
é um espaço para homens, feito por homens a partir da necessidade de homens.
"Quem fez Sevilha a fez para o homem, / sem estentóricas paisagens. / Para
que o homem nela habitasse / não os turistas, de passagem". Seria drástico
se houvesse comparação entre um texto como A room of one´s own (1929), de
Virgina Woolf, com o poema de João Cabral de Melo Neto. No caso, o poeta
brasileiro daria razão aos argumentos da escritora britânica! Pois para ela
estavam reservadas as plazoletas, pequenas praças "quase do tamanho de um
lenço".
***
Claro: João Cabral de Melo Neto fez escolhas em Sevilha, como se a cidade
se prestasse a uma antologia. Outras Sevilhas idealizou. E outras mais
inventou. Por exemplo, em sua passagem por aqui ele não quis comentar as
dezenas de igrejas espalhadas sobretudo pelo bairro de Santa Cruz e pela
Macarena, onde uma muralha delimita bem a cidade antiga. A religiosidade
muito intensa do sevilhano foi inteiramente desprezada, assim como outros
lugares-comuns da cidade, a exemplo da "(...) Sevilha cartão-postal, / a que
é histórico-anedótica, / a que é museu e catedral". A catedral, a maior
construção gótica do mundo! Tudo trocado pelas flores de ferro forjado...
***
Em Sevilha, cada poeta faz suas escolhas radicais. Antonio Machado
(1875-1939) já estava cansado, na sua época, da cidade natal que havia
desaparecido, e pedia, em seu desespero, uma "Sevilha sem sevilhanos".
***
Outra escolha de João Cabral de Melo Neto foi não mencionar o traçado
aristocrático da cidade. O poeta esteve mais interessado nas ruelas, nas
pequenas ruas, nas praças mínimas onde confinou as mulheres. Mas em Sevilha
persiste a presença da Coroa espanhola, a partir do século 13. A poesia
sevilhana do autor de "Coisas de cabeceira: Sevilha" só beneficia as coisas
que não se esparramam e mostram linguagem tensa e bem pontuada.
***
Então é assim que o poeta pretende "sevilhizar o mundo", a contrapelo?
Parece mesmo que assim é, e então atravesso a calle Relator sem pensar se
foi crime ou não oferecer a aguardente que a velha senhora, afinal,
solicitara. Sem pensar se eu também já trago Sevilha em mim. Sigo
caminhando.
(©
JB Online)
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