Foto: Divulgação
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Cena do documentário "Moscou", do diretor Eduardo Coutinho
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Avesso à pompa e atento às
circunstâncias do real e da ficção, como se vê em
Moscou, que estreia no próximo mês, Eduardo Coutinho
ganha retrospectiva no MoMA, em Nova York, e segue
reinventando o documentário nacional
- Tudo bem, Coutinho?
- Mais ou menos...
- Qual é o problema?
- O problema é a entrevista... Eu não sei o que falar sobre os meus
filmes, ainda mais sobre esse último, mas vamos lá...
Eduardo Coutinho olha para o interlocutor com aquele jeitão meio cético
mas de alguma forma simpático. O vestuário é o de sempre. Despojado como
o de um universitário, pulôver surrado jogado nos ombros, bolsa a
tiracolo, cigarro permanente nos lábios.
O começo é sempre mais ou menos assim. Parece que não vai engrenar.
Coutinho não gosta de discutir seus filmes. Detesta teorizar. Odeia
intelectualizar. Mas, quando começa a falar..., sai de baixo. Surge um
jorro de ideias, nunca banais, muito articuladas. Aquele tipo de fluxo
de pensamento que dispensa citações, mesmo porque as referências parecem
tão sedimentadas, tão meditadas e assumidas que fazem parte do próprio
sujeito. A teoria está no sangue, no DNA de Coutinho. Por isso ele pode
dispensá-la. Falando, sem pensar, ele recorre a todo um embasamento que
faz o seu documentário ser o que é: reinvenção constante que o coloca em
posição única no Brasil.
Sabemos que Coutinho é desse jeito e atingiu esse patamar. Mesmo assim,
não podemos evitar o espanto a cada vez que ele lança um novo filme. Já
estávamos habituados à revolução do cinema de diálogo, feita através de
Santo Forte, Babilônia 2000 e Edifício Master, e então sobreveio a
surpresa de Jogo de Cena. O que era esse filme? Documentário? Ficção?
Nenhum dos dois e ambos ao mesmo tempo? De fato, esse "objeto" abolia de
vez o limite entre gêneros, fazendo com que atrizes encenassem falas de
personagens reais e estas, por sua vez, interpretassem aquilo que
diziam.
Em seguida, veio Moscou, que será exibido amanhã na mostra Première
Brazil, no MoMa, em Nova York - que o homenageia com uma restrospectiva,
a ser aberta hoje com Cabra Marcado Para Morrer (leia mais sobre o
evento na página 2) -, e estreia dia 7 de agosto nas salas de cinema do
País, depois de passar pelos festivais de Paulínia (onde ganhou, na
quinta, o prêmio da crítica) e É Tudo Verdade, em São Paulo. Moscou? Uma
definição falsamente objetiva diria que esse documentário registra os
bastidores da montagem de uma peça - As Três Irmãs, de Chekhov, dirigida
por Enrique Diaz, pelo Grupo Galpão, de Minas Gerais. Algo como Tio
Vânia em Nova York (1994), o filme de Louis Malle sobre a montagem dessa
outra peça de Chekhov, paixão dos dramaturgos do mundo todo.
Acontece que Moscou é de outra natureza. Uma natureza tão inapreensível
que coloca dificuldades para Coutinho: "Eu já estava na metade da
filmagem e ainda não sabia se havia ali um filme", diz. Bem, esse é um
longo percurso de alguém que domina de maneira tão plena a sua arte que
pode se dar ao luxo de perder-se nela - sem medo de não encontrar a
melhor solução, afinal de contas.
Para aí chegar, Coutinho trilhou longo caminho. Nascido em São Paulo, em
1933, Eduardo de Oliveira Coutinho estudou cinema no IDEHC (Institut des
Hautes Études Cinématographiques) na França. Consta que bancou a viagem
e estada em Paris com o dinheiro ganho num programa de perguntas e
respostas da TV no qual mostrou seu conhecimento sobre a vida e obra de
Charles Chaplin. De volta ao Brasil, em 1960, encontra um País em
ebulição, política e cultural. Pega de frente o governo João Goulart
(1961- 1964), que assumiu depois da renúncia de Jânio Quadros e propôs
as polêmicas reformas de base. Época em transe, na qual a tomada de uma
posição política era tão natural como tomar um copo d?água. Nesse
ambiente, Coutinho integrou-se ao Centro Popular de Cultura da União
Nacional dos Estudantes e trabalhou como gerente de produção do
longa-metragem de episódios Cinco Vezes Favela, um cartão de visitas do
então nascente Cinema Novo. Pouco depois começou também a trabalhar num
singular - e explosivo - projeto. Reconstituía o assassinato de um líder
das Ligas Camponesas, João Pedro Teixeira, usando como atores os
próprios trabalhadores do Engenho Cananeia, no interior de Pernambuco. A
viúva do líder, dona Elizabeth Teixeira, interpretava a si mesma. Com o
golpe de 1964, o projeto teve de ser interrompido pela mais prosaica das
razões - se cineastas e atores fossem pegos pelos novos donos do poder,
estariam fritos. No regime que se instalou no País não havia clima para
a continuidade desse tipo de filme.
Por muitos anos, Coutinho considerou esse trabalho perdido. Ocupou-se de
outras atividades relacionadas com o mundo do cinema. Adaptou a peça A
Falecida, de Nelson Rodrigues, roteiro que foi filmado por Leon
Hirszman, seu amigo e colega do Cinema Novo. Escreveu também a adaptação
do maior sucesso brasileiro de todos os tempos, Dona Flor e Seus Dois
Maridos, inspirado em Jorge Amado e dirigido por Bruno Barreto em 1976.
Dirigiu filmes de ficção, como o episódio O Pacto, de ABC do Amor
(1966), O Homem Que Comprou o Mundo (1968) e Faustão (1971).
Mas foi em 1981 que um fato extraordinário aconteceu na vida de Eduardo
Coutinho. Os negativos daquele filme sobre as Ligas Camponesas, que
todos julgavam perdidos, são reencontrados. Um dos camponeses havia
escondido o filme da polícia. E assim Coutinho resolve retomar o
projeto, já numa fase de abertura e declínio da ditadura militar. Na
época ele trabalhava na televisão, fazendo parte da equipe do Globo
Repórter. Antes de se dedicar aos encantos da vida animal, esse programa
da TV Globo notabilizou-se por reportagens exemplares, ousadas tanto no
conteúdo como na forma. O programa, comandado pelo cineasta Paulo Gil
Soares, tinha em sua equipe craques como João Batista de Andrade e o
próprio Coutinho, que lá dirigiu Seis Dias em Ouricuri (1976), O
Pistoleiro da Serra Talhada (1977) e Theodorico, Imperador do Sertão
(1978), entre outros. Tendo duas férias acumuladas, Coutinho pediu
licença de dois meses e internou-se no sertão em busca dos integrantes
de Cabra Marcado Para Morrer.
Localizou dona Elizabeth Teixeira, escondida desde 1964 no sertão do Rio
Grande do Norte, com outro nome e vivendo com um dos seus dez filhos. O
"filme de ficção baseado em fatos reais" passa a ser um documentário
sobre a dispersão da família após o assassinato de João Pedro e o golpe
militar. Cada um deles revê o que havia sido filmado no passado e
elabora para a câmera sua experiência. Dona Elizabeth, até então usando
o codinome Marta, faz o mesmo. Conta como o filme deu outro sentido à
sua vida, permitindo-lhe reatar duas pontas de uma história que havia
sido cortada pela ditadura. Em entrevista ao Jornal de Brasília, em
1997, dona Elizabeth diz que era tida como morta até por sua mãe. "O
filme me devolveu tudo: o passado, o nome, o direito de lembrar o que
João Pedro e eu vivemos nas Ligas Camponesas, os meus filhos
esparramados por este Brasil afora." Nascia Cabra Marcado Para Morrer,
filme premiado no Brasil e em 12 festivais internacionais.
Um clássico instantâneo, que tirava do limbo os verdadeiros
protagonistas de uma página reprimida da história, adotando uma
linguagem cinematográfica em que os meios de produção também ficavam
expostos. Cabra falava de dona Elizabeth, dos filhos, de João Pedro
assassinado a mando de latifundiários, mas falava também da sua própria
feitura, como filme, a partir de fragmentos. "A picada que o filme abre,
a meu ver, não é tanto o fato de a equipe aparecer - isto se faz muito.
O importante é que certas informações de texto e de estrutura do filme
servem para indicar as condições de produção da ?verdade?", disse
Coutinho na ocasião.
Produção da verdade, a filmagem escancarada ao espectador, o olhar para
o fragmento - tudo isso confluía para um método em construção, sem que,
aparentemente, o cineasta se preocupasse em teorizá-lo. Outros o fariam
por ele. Por exemplo, Jean-Claude Bernardet, ao comentar Cabra, diz que
o fragmento não era, nesse caso, uma arbitrariedade estilística, mas a
própria forma da história derrotada. Uma forma que Cabra realizava de
maneira admirável. E, trabalhando no fragmentário, por paradoxo,
conseguia restituir sentido e coerência aos náufragos da história.
(©
Estadão)
A magia despojada
de Coutinho
Documentarista lapidou de tal forma o seu ofício que
parece impossível a outros diretores imitá-lo
Então, a partir de Cabra Marcado Para Morrer a carreira
de Coutinho deslizou suave e tranquila, sem mais problemas para a
realização do que quer que lhe passasse pela cabeça? Nada disso, pois o
país se chama Brasil e não costuma recompensar esse tipo de coisa. Pelo
contrário. Desse modo, depois do extraordinário sucesso do filme,
Coutinho enfrentou graves problemas para viabilizar novos projetos. Ao
longo de uma década, produziu com dificuldade seis médias-metragens e
apenas um longa - O Fio da Memória, encomendado para comemorar os 100
anos da Abolição da Escravatura, mas lançado apenas em 1991. Mesmo
assim, em circuito reduzidíssimo, num lançamento quase clandestino.
Se alguém mantivesse o olhar sobre o trabalho de
Coutinho nesse período, veria nesses médias-metragens, em especial Santa
Marta - Duas Semanas no Morro (1987) e Boca do Lixo (1993),
manifestações de um cineasta fundamental, talvez já preparando um novo
salto em sua carreira. Mas pouca gente prestava essa atenção e, assim,
quando apareceu um filme chamado Santo Forte (1999), houve susto quase
geral. Sob pretexto de investigar a religiosidade em uma favela carioca,
Coutinho obtinha dos personagens depoimentos comoventes. Aquela gente
falava para ele - e para nós - de maneira aberta, profunda, intrigante.
Uma delas, dona Thereza, que acredita ter sido rainha do Egito em outra
encarnação, entrou, ao lado de dona Elizabeth Teixeira, para a galeria
das grandes personagens femininas do cinema brasileiro. Era comum ver a
plateia às lágrimas com essas mulheres e homens que entregavam para a
câmera - quer dizer, para Coutinho e para nós - aquilo que tinham de
melhor, de mais profundo e humano. O filme foi uma revelação. Fez
sucesso, nas limitações do formato documentário, e venceu entre outros o
Festival de Brasília, o mais importante do País.
Era o início de um ciclo fantástico do "cinema de entrevista", que
Coutinho prefere chamar de conversa, e que rendeu filmes como Babilônia
2000 (2000), Edifício Master (2002), Peões (2004) e O Fim e o Princípio
(2005). Com a exceção de Peões, um retorno aos protagonistas das greves
do ABC às vésperas da chegada de Lula à Presidência, os outros se
debruçavam sobre questões humanas, sobre os desejos e expectativas,
sobre a esperança e a dor daqueles personagens.
Coutinho lapidou seu instrumento de trabalho. Tomou gosto e fixou-se na
questão da locação única: uma determinada favela, um determinado morro
carioca, um único edifício em Copacabana, pois o mundo cabe numa
esquina, desde que se olhe e se escute bem. Não acredita em roteiros e
está sempre aberto ao acaso. Uma equipe de produção faz um trabalho
prévio, entrevista e seleciona personagens. Coutinho discute muito com
seus colaboradores. Às vezes esbraveja: "Não há filme aqui", como disse
durante a preparação de Edifício Master. Pensa muito no projeto, mas
quando está diante do personagem, frente a frente, olhos nos olhos,
prefere nada pensar e nada esperar. Obtém o resultado excepcional porque
apurou, sobretudo, seu olhar e seus ouvidos.
Com essa nova leva de sucessos, Coutinho passou a ser muito imitado. Mas
a safra de documentários "à la Coutinho" nunca convenceu. Os filmes dos
epígonos pareciam sempre paródicos porque não tinham justamente o que
era o essencial - o olhar e a escuta de Coutinho. É preciso prestar
atenção no que ele diz para entender por que consegue depoimentos
daquela qualidade e com aquele grau de verdade. Locação única e
despojamento cada vez maior dos meios de produção; busca da
simplificação da situação intersubjetiva; disponibilidade total em
relação ao personagem; procura de um vazio interno que o proíba de
dirigir as respostas segundo suas expectativas; uso do silêncio como
forma ativa de intervenção. Tudo isso aponta para uma inspiração
profundamente psicanalítica para esse fazer cinematográfico. Com esse
não-agir ativo, Coutinho consegue de seus personagens um grau de
sinceridade e entrega que parece impossível aos cineastas que o imitam.
E, nessa imitação, reside o erro fundamental. Porque, ao longo da vida,
Coutinho foi construindo uma poderosa ferramenta de trabalho, sob medida
para sua mão, que lhe serve perfeitamente, mas não pode ser transferida,
a não ser com muitas adaptações. Só Coutinho faz filmes como Eduardo
Coutinho.
E quando já havia estabelecido essa forma clássica do "cinema de
conversa", aparece com Jogo de Cena. Afinal, estamos diante do que nesse
filme? Coutinho entrevista uma série de mulheres, ouve suas histórias e
faz com que elas as revivam diante da câmera. Convida algumas atrizes
famosas como Marília Pêra, Fernanda Torres e Andréa Beltrão para
"interpretar" o que as convidadas haviam relatado. Há no filme atrizes
menos conhecidas, que podem ser confundidas com as personagens reais.
Além disso, as atrizes, ao interpretar as histórias que haviam ouvido,
acrescentavam a elas suas próprias experiências. Em alguns casos,
"sentiam" mais as histórias do que as pessoas que as haviam vivido.
Então, até onde vai o real e onde começa a ficção? Isso já não importa.
Porque, verdadeiro ou não, no sentido factual do termo, importa a
maneira como o que é dito toca o sujeito.
Estamos aqui em pleno domínio da arte milenar da representação. Não
interessa se a tragédia de Édipo se deu de fato ou não, se aconteceu
agora, há milênios ou no tempo imemorial do mito. Ela pertence a todos
nós e diz respeito a todos. É nessa temporalidade que a obra de Coutinho
está ingressando.
Daí, nada mais natural que o passo seguinte, passo no abismo de Moscou,
a obra sobre a qual Coutinho não quer falar porque não sabia o que
estava fazendo quando tão bem a fazia. Como ele explica, tudo nela é
construção. Existe a peça de Chekhov, mas não há condições para
encená-la em sua íntegra. Então, o jeito é trabalhar com fragmentos da
obra. Tudo é despojado, não há roupa de época nem nada que lembre a
Rússia do século 19. "Samovar na mesa está proibido", ri Coutinho. Fazem
parte do dispositivo os exercícios de sensibilização, ou que nome se dê
a eles. Os atores são convidados a falar para a câmera alguma coisa que
os incomode, no presente. São maneiras de chegar a Chekhov, pelas
bordas. "Eles são atores e atores são seres pagos para viver a paixão
dos outros", diz Coutinho.
E aí reside toda a magia. Preparando-se para Chekhov eles chegam a nós.
Tudo nos diz respeito, segundo a frase de Horácio: De te fabula narratur
- a história fala de você. Realidade ou ficção? Que importa, se produz o
mesmo efeito?
Coutinho ri, e acende mais um cigarro. E, claro, o interlocutor fica
sabendo que o seu mau humor é puro jogo de cena, de alguém que cultiva,
pelo contrário, um senso de humor sutil até o limite do equívoco.
Coutinho só não tem paciência com pseudointelectuais, gente que deseja
passar por quem não é. O despojamento que criou para o seu cinema, ele o
adota como norma de vida.
(©
Estadão)
Foto:
Mauricio Stycer/iG
Coutinho disseca o trabalho do ator em ‘Moscou’
Daniel Schenker
PAULÍNIA, SP, ESPECIAL PARA O JORNAL DO BRASIL
A figura do ator foi louvada em Paulínia nos dois filmes apresentados na
noite da última segunda-feira. Em Moscou, Eduardo Coutinho mostra o processo
vivenciado pelos integrantes do Grupo Galpão, que ensaiaram, durante apenas
três semanas, uma suposta montagem de As três irmãs, de Anton Tchekhov, sob
a condução de Enrique Diaz. Em No meu lugar, primeiro longa-metragem de
Eduardo Valente, valeu o rendimento do elenco liderado por Dedina
Bernardelli, Marcio Vito e Raphael Sil sobressai. A proposta de Coutinho é
assumir o inacabado. Desde o início estava acordado que a rotina de ensaios
seria interrompida após 20 dias. Interessava registrar até onde e de que
forma diretor e atores conseguiriam evoluir em tão pouco tempo e diante de
um material tão estranho ao Galpão.
– Queria agradecer ao Tchekhov, que não é culpado do que fiz, ao Galpão,
que aceitou um convite suicida, e ao Enrique Diaz – ressalta Coutinho, que
dedicou o filme a João Moreira Salles. – Em determinado momento, eu estava
perdido com quatro horas de material nas mãos. João viu tudo e disse que ali
havia um filme.
O espectador acompanha os exercícios lançados por Diaz para que os atores
se apropriassem dos personagens de Tchekhov e assiste às cenas de As três
irmãs. Eduardo Coutinho não explicita exatamente o modo como os exercícios
iluminam as cenas, mas dá continuidade a questões presentes em seu filme
anterior, o bem-sucedido Jogo de cena – em especial, no que se refere à
busca de uma verdade interpretativa.
- O ator é pago para viver as paixões dos outros. Mas como separar o ator
da pessoa? – questiona Coutinho
Em No meu lugar, exibido na última edição do Festival de Cannes, Eduardo
Valente evidencia como uma tragédia repercute direta ou indiretamente nas
vidas de pessoas distantes e de classes sociais diversas, que passam a estar
conectadas por uma espécie de fio invisível. O diretor embaralha instâncias
temporais diferentes, como um quebra-cabeça que vai sendo montado à medida
que a projeção avança. De início, Valente não entregou o roteiro para os
atores, que tiveram acesso apenas à situação de toda a trama e às ações
relativas ao seu núcleo dentro da história. Esta decisão gerou possivelmente
uma instabilidade que serviu a personagens esgotados, assombrados e saudosos
de um passado que não têm como recuperar. Mas, ao contrário do que possa
parecer, as motivações de Valente não eram desconectadas de sua realidade.
- Quis transmitir minha sensação como morador do Rio de Janeiro. Achei
que a situação de violência urbana deveria ser a geradora de todos os
acontecimentos – resume o diretor, que mudou, no final da filmagem, o título
de Vórtice para No meu lugar.
(©
JB Online)
Eduardo Coutinho investiga a memória em "Moscou"
EDILSON SAÇASHIMA
Da Redação
Em "Moscou", o novo trabalho de Eduardo Coutinho,
mais uma vez o cineasta sobe ao palco para lançar o espectador na
linha tênue que separa ficção e realidade. Aqui, o diretor sugere
usar o tablado para fazer a encenação da memória humana. "Moscou"
está na competição brasileira de longa e média-metragem do festival
de documentários "É Tudo Verdade", que acontece até o dia 5 de abril
em São Paulo e no Rio e depois segue para Brasília.
O filme dá prosseguimento às investigações iniciadas em "Jogo de
Cena" (2007). Neste filme, vale lembrar, Coutinho apresentou
depoimentos dados por atores e não-atores, mas em muitos momentos
não era possível diferenciar o que era depoimento "real" ou
"fictício".
"Moscou", por sua vez, retrata os ensaios da peça "As
Três Irmãs", de Tchekhov, pelo grupo Galpão. O filme é composto por
fragmentos de workshops, improvisações e ensaios. No entanto, não se
trata apenas de uma "documentação" dos bastidores da peça.
A primeira cena de "Moscou", antes mesmo da apresentação do título,
mostra uma pessoa falando da demolição de uma sala de cinema. A
seguir, temos três personagens que falam com uma quarta. Elas olham
para câmera como se nós, espectadores, fôssemos esse quarto
personagem. Com "Moscou", Coutinho parece querer romper essa divisão
que há entre o que está do lado de cá da tela e o que está do lado
de lá.Coutinho sugere implodir os lugares
fixos nos quais nos apoiamos. Em um primeiro lugar, desaba a
distinção entre espectador e filme. Em segundo momento, cai por
terra a diferença entre ator e personagem. Talvez por isso o
cineasta pareça se interessar pelo caminho de construção da peça e
não na sua realização final. É nesse momento de início de trabalho
que os atores parecem buscar suas emoções e experiências para dar
forma ao personagem.
No início do filme, vemos alguns worshops em que os atores relatam
memórias de seu passado e os desejos quanto ao futuro. Nessa fase de
preparação, em alguns momentos, atores e personagens se confundem.
Talvez até poderíamos dizer que "ficção" e "realidade" se misturam,
um efeito que o filme anterior, "Jogo de Cena", já provocava no
espectador.
Assim, a peça "As Três Irmãs" filmada por Coutinho seria o resultado
das experiências passadas pessoais dos atores, da interferência do
espectador e da atuação do momento vivido. De certa forma, são as
mesmas bases com as quais as pessoas se apoiam ao dar um depoimento
a alguém.
Nos seus trabalhos, Coutinho capturou depoimentos de personagens
para reconstruir uma história. A matéria-prima dessa reconstrução
sempre foi a memória dos personagens. Em "Moscou", seu 11º longa, o
cineasta parece lançar sua lente para essa matéria-prima.
Talvez por isso "Moscou" tenha uma estrutura fragmentária, que
mistura ficção e realidade. Também nossa memória age assim,
misturando impressões, realidades, fantasias e fragmentos.
Na segunda metade do filme, temos a impressão que estamos diante
"apenas" da encenação de trechos da peça. Parece não haver mais
ambigüidade. Fazemos o mesmo com relação ao nosso passado. Às vezes,
falamos de nós e de nosso passado com convicção. Mas será que a
realidade foi mesmo assim? Com "Moscou", Coutinho coloca em questão
o status de "verdade" daquilo que vemos nos documentários.
(©
UOL
Cinema)
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