Foto: Mastrangelo Reino -
14.jul.2009/Folha Imagem
O músico Caetano Veloso, na pre-estreia de "Coração Vagabundo"em São Paulo
Tema de "Coração Vagabundo", que estreia na sexta, o músico
critica a cobertura da Folha sobre o uso da Lei Rouanet para sua turnê,
afirma que o jornal quis tratá-lo como "misto de Sarney e Dado Dolabella" e
revela saudades da "alegria física" da juventude
SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL
Caetano Veloso tem medo da morte, mas menos do que tinha
"quando era mais moço e mais narcisista". Aos 66, ele tem "saudades do
equilíbrio e da elasticidade do corpo, da força dos cabelos, o jato de urina
forte, as ereções firmes, a alegria física da juventude".
Caetano Veloso odeia "a hipocrisia" e teme "o fanatismo".
Ele acha que "dadas as revelações da personalidade pragmática do político
Lula", a adesão de seu amigo e também músico Gilberto Gil ao governo, como
ministro da Cultura (2003-2008) "não teve o caráter negativo" que ele temia.
Tudo isso o cantor e compositor baiano contou à Folha,
numa entrevista a propósito de "Coração Vagabundo", documentário a seu
respeito, que chega aos cinemas nesta sexta. O diretor do filme, Fernando
Grostein de Andrade, diz que sua intenção era realizar "não uma biografia,
mas uma passagem pela vida de Caetano".
Com orçamento em torno de R$ 700 mil, considerado baixo
pelos parâmetros brasileiros, "Coração Vagabundo" contou com patrocínio de
empresas que tiveram incentivo fiscal para realizar o investimento no filme.
O incentivo é proporcionado pelas leis federais de incentivo à cultura, das
quais quase todos os filmes produzidos no Brasil lançam mão.
Quando fala no tema da subvenção estatal ao fazer
artístico, representada sobretudo pela Lei Rouanet, que movimenta cerca de
R$ 1 bilhão por ano, Caetano Veloso engrossa o discurso e critica a Folha,
certo jornalismo "travestido de investigativo" e a coluna "Mônica Bergamo"
nesta entrevista, que preferiu fazer por e-mail.
A polêmica sobre o uso da Lei Rouanet envolvendo o nome de
Caetano tem origem na revelação feita pela Folha de que a turnê de seu mais
novo álbum, "Zii e Zie", só pôde recorrer a patrocínio com benefício desse
mecanismo de renúncia fiscal depois que o ministro da Cultura, Juca
Ferreira, interveio em decisão da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura
(CNIC).
A comissão analisa os projetos submetidos à Lei Rouanet e
avaliou, originalmente, que a turnê de Caetano era comercialmente viável,
podendo prescindir do incentivo. O orçamento era de R$ 2 milhões.
Caetano julga a cobertura da Folha "uma pobreza".
Por um lado, ele estrila. Por outro, não se cansa de ter esperança de um dia
"melhorar mais", como afirma a seguir.
FOLHA - Na última vez em que falou à Folha sobre
a Lei Rouanet, você deixou clara a sua impressão de não estar sendo
devidamente compreendido. Poderia dizer qual é sua opinião sobre o subsídio
estatal à produção artística e que avaliação faz do principal mecanismo em
prática no Brasil -a Lei Rouanet?
CAETANO VELOSO - Uma moça
entrou na fila de fãs no camarim e, ao chegar junto de mim, pediu para fazer
duas perguntas. De cara, não percebi que era uma jornalista. Quando entendi
isso, eu a encaminhei para a assessora de imprensa. Eu tinha uma fila grande
para atender. Julguei que a assessora fosse dispensá-la.
Mas ela reapareceu depois, dizendo agora que faria uma pergunta só. Respondi
rindo que sim, que fizéssemos logo para nos livrarmos. Era sobre a Lei
Rouanet. Não sou bom nesses assuntos e já tinha lido na Folha
sugestões de que eu estaria usando dinheiro público indevidamente. Ora, eu
não pleiteei nada junto à comissão que se encarrega de julgar esses pedidos.
O produtor que me contratou é que pleiteia. Como a comissão não aprovou, sob
o pretexto de que uma turnê minha se sustenta sem isso, o jornal achou que
havia um caso aí.
Em entrevista à revista "Cult", eu tinha dito que nunca pensava em Lei
Rouanet quando tratava de música popular e que só me pronunciei a respeito
por causa do cinema: eu havia me manifestado contra o projeto da Ancinav. A
música popular, eu dizia, não me parece precisar de incentivos além dos que
já tem. Continuo pensando assim (embora pudesse perfeitamente ter mudado de
ideia).
Pois bem, a moça não só não fez uma única pergunta como na terceira de umas
cinco punha na minha boca frases que eu não disse. Ela tinha sido enviada
por Mônica Bergamo, que mantém uma página de fofocas meio "sociais", meio
políticas (ou meio de autoridades, meio de celebridades) e o fito era
nitidamente me tratar como se eu fosse um misto de Sarney com Dado
Dolabella.
Ao fim da quarta resposta, disse-lhe que fosse embora. Ela perguntou
triunfante: "Você está me mandando embora?". Respondi que estava e insisti
para que fosse logo. Depois a Bergamo foi para o rádio gritar meu nome com
aquela voz de taquara rachada, competindo em demagogia e má-fé com [o
jornalista Ricardo] Boechat.
Claro que não ouvi isso na hora: uma amiga me mandou por e-mail em MP3.
Havia um desejo ridículo de criar um caso em que eu aparecesse como um cara
que não merece respeito.
Li artigos de outros na Folha (e cartas de leitores) meio eufóricos
com isso. Uma pobreza.
Mas um conhecido me escreveu o seguinte: "Não sei se você sabe, mas o papel
de imprensa onde eles destilam o veneninho goza de 100% de isenção fiscal.
Será que os próprios repórteres sabem disto? Estamos falando de dezenas e
dezenas de milhões de reais em incentivos fiscais, não só federais (0% de
PIS, Cofins, imposto de importação etc...) mas também estaduais, já que
papel de imprensa também não paga um centavo de ICMS. E a isenção é dada a
todo mundo, não só ao jornal do AfroReggae mas também a enormes corporações
como a Folha, cujo faturamento está na casa do bilhão. A isenção de
impostos do papel de imprensa é provavelmente a forma mais antiga de
incentivo fiscal à cultura no Brasil. Acho que vem dos anos 50. Não sou
contra ela. Ao contrário, sou muito a favor, tanto para os jornais quanto
para os teus shows. Só sou contra a hipocrisiazinha vingativa -e boba-
travestida de jornalismo investigativo."
É um aspecto a ser pensado por mim e por você, Silvana.
O ministro da cultura disse que achava desequilibrada a decisão da comissão
(no meu caso como no de Bethânia e no de Fernanda Montenegro). Se não fosse
assim, o produtor da minha turnê que se virasse para fazê-la seguir ou a
suspendesse. Eu não ligo a mínima. O ministro quer mudar a lei. Seja como
for, hoje todos a usam.
Mas eu não peço isso a ninguém. Conversei depois com Maurício Pessoa (o
produtor contratante) e ele me disse que, sem isso, não teríamos espetáculos
como o de Juazeiro do Norte, em que os ingressos custavam R$ 30. Mas eu não
faço essas contas. Por mim, os ingressos todos dos meus shows deveriam ser
menos caros porque o público que tem muito dinheiro é, em geral, muito
careta -e eu não sou careta. Muitas pessoas que se identificam com o que
faço não podem, em certas cidades, ir ver o meu show. Quem quer que me
contrate deverá, contando ou não com isenção fiscal, tentar resolver essa
questão, que me interessa. O resto -os casos jornalísticos de excitação por
tentar destruir reputações- não me interessa.
Cantor desaprova tendência a desvalorizar tudo
o que "ganha corpo" no país e diz que EUA precisam entender Lulu Santos
Músico comenta relação com a espiritualidade e
diz que, recentemente, passou a ser "programaticamente antirreligioso"
DA REPORTAGEM LOCAL
Nessa parte da entrevista, Caetano Veloso fala
sobre a velhice, a morte, a religião e "um idiota" que desqualificou seu canto.
(SILVANA ARANTES)
FOLHA - Se a velhice traz a conclusão de
que "o pior já passou", como diz no filme, o que foi o seu pior? CAETANO - Não é bem uma conclusão. É a
constatação de que não se pode pôr tudo na conta da velhice. Alguns podem viver
o pior de suas vidas aos 17, ou aos 35, ou aos 42, e atravessar a velhice com
alegria e paz.
No filme, não falava de mim. Sou um cara que tem saudades da juventude -não do
tempo em que fui jovem, mas da juventude em si, do equilíbrio e da elasticidade
do corpo, da força dos cabelos, o jato de urina forte, as ereções firmes, a
alegria física da juventude.
Mas não sou burro e sei que não é impossível alguém ter, no cômputo geral, mais
alegria na velhice. Reconheço que há vários aspectos da minha vida que
melhoraram -e ainda desejo melhorar mais. Algumas coisas, no entanto, não podem
deixar de decair com a idade.
FOLHA - Você fala no filme de seu enterro.
Teme a morte ou morrer? CAETANO - Tenho medo das duas coisas. Mas
tinha mais quando era mais moço e mais narcisista.
FOLHA - Numa cena, você se preocupa com sua
voz. Como lidou com a perda vocal de Gilberto Gil? O filme revela sua recusa à
maquiagem para a TV, por receio de "ficar com cara de político babaca". Que
impacto teve em sua relação com Gil a decisão dele de ser ministro da Cultura?
CAETANO - Gostaria de ter podido persuadir
Gil a poupar mais a garganta. Embora a voz brilhante e extensa que ele tinha
fosse linda, a força de Gil está na musicalidade, no modo como toca o violão,
como intui a rítmica de uma frase, como revela a consciência imediata das
relações entre as notas. Isso não depende de voz limpa.
Quanto ao ministério, é sabido que eu lhe disse: "Lula já é um símbolo: você
será o Lula do Lula". No fim, achei que ele foi mesmo um Lula do Lula. Só que
isso, dadas as revelações da personalidade pragmática do político Lula, não teve
o caráter negativo que eu temia.
FOLHA - Em "Coração Vagabundo" você diz que
"a pobreza termina resultando espiritualmente". Trata-se de um pensamento
religioso de alguém que se diz antirreligioso? CAETANO - Não. Essa nossa carne cuja
existência percebemos é um fato espiritual o tempo todo. Já fui antirreligioso;
depois, fui contra essa posição, que me parecia uma repressão da religiosidade.
Passei a ser mais programaticamente antirreligioso, porque odeio hipocrisia e
temo o fanatismo.
FOLHA - Em cena no Japão você fala da
consciência de ser "racialmente suspeito'; em NY, diz-se distinto de quem nasceu
acreditando estar no mundo. Hoje sente-se mais estrangeiro no lugar do que no
momento? CAETANO - Sempre estrangeiro. Sou um
brasileiro brasileirista. Gosto de São Paulo porque é diferente do Brasil de
Vargas e da Rádio Nacional. Mas odeio a cultura do desprezo a tudo o que ganhou
ou ganha corpo no Brasil (inclusive Vargas e Rádio Nacional). Outro dia li um
idiota desqualificando meu canto em "Zii e Zie" porque supostamente pareceria
com Cauby Peixoto e Ângela Maria. Mas eu penso que os EUA só se salvarão quando
entenderem Chico Buarque e Lulu Santos.
Os trechos a seguir da entrevista de Caetano Veloso ao caderno Ilustrada,
da Folha de S.Paulo, estão disponíveis apenas aqui, na Folha
Online.
Folha - Você menciona sua "obra comportamental" em seu blog como parte
do conjunto de sua carreira e de seu impacto na música popular brasileira.
Você situa a cena de nudez de "Coração Vagabundo" como parte dessa "obra
comportamental"? Se sim, ela não seria demasiadamente pudica? A propósito
desse tema, você poderia dar sua opinião sobre a análise do ator Pedro
Cardoso de que a nudez no cinema e na TV deixou de ser um ato de
transgressão e se tornou uma expressão subliminar de pornografia para vender
produtos ruins?
Caetano Veloso - Não decidi posar nu para o filme. Foi um acaso
que o diretor achou engraçado mas pensou que a produtora fosse querer
cortar. Ela não quis cortar. Eu nem opinei. Não ligo. Não acho nem pudico
nem safado aquilo. Há uma foto em que apareço nu, feita pela Vânia Toledo,
que pode se ver num número recente da revista TPM. É um nu muito mais nu do
que esse do filme.
Quando vi "Hair", em 1969, em Londres, as pessoas ficarem nuas em cena
era um acontecimento. Depois passou a ser mais comum. Mesmo assim, nunca
deixou de provocar algum nervosismo. Liga-se a nudez ao sexo. E sexo não é
uma coisa entre as outras. Um ginecologista não deixa de achar o corpo da
mulher excitante só porque vê dezenas de mulheres nuas todos os dias.
As coisas que Pedro Cardoso disse têm fundamento. Lembro de Marcuse
falando em dessublimação repressiva. Quando eu era garoto detestava a
revista "Playboy". Aquilo não ajudou na construção da minha
heterossexualidade. Mas há também algo com que não me identifico no papo de
Pedro: parece que há um desejo de voltar atrás, uma reverência por um
suposto passado mais moral, mais saudável e mais justo. Eu não acredito
nisso.
Divulgação
Caetano Veloso em cena
de "Coração Vagabundo" gravada no Japão; documentário estreia nesta
sexta
Folha - Em sua passagem mais introspectiva no filme, você diz que a
melancolia daquele momento tem a ver com coisas "da vida íntima, das quais
não se fala". Pensei imediatamente em canções como "O Quereres",
"Branquinha", "Não Enche", em que temos a impressão de ter acesso à sua
intimidade afetiva. Pensei ainda até que ponto seria uma construção
deliberada (e talvez distante da verdade mais íntima) a imagem pública que
se construiu de sua relação com Paula Lavigne, a quem se atribui o papel de
uma mulher dominadora e empresária sagaz e implacável. Você estabelece um
limite de exposição da intimidade a que se permite em sua obra --tanto a
artística quanto a comportamental? Qual é esse limite?
Caetano - "Branquinha" é uma canção conscientemente feita sobre e
para Paulinha Lavigne. "O Quereres" foi conscientemente escrita sobre e para
Cristina Mandarino. 'Não Enche" foi escrita contra as mulheres que prendem
os homens. Paulinha era minha mulher na época, e, como respondi a um
entrevistador na época, é claro que a música era, portanto, primeiramente
para ela.
Mas a imagem pública que possa haver do que foi nosso casamento nunca
pode ter nada a ver com o que se passava na intimidade. Paulinha é muito
generosa, inteligente e engraçada. Nosso vínculo tinha aspectos que só eu e
ela sabemos.
Não preciso traçar uma linha nítida entre o que se expõe e o que fica
escondido. Muito do que é íntimo não dá para expor: a gente não tem nem como
comunicar - e as pessoas não entenderiam. Mas lembro de que, quando escrevi
"Verdade Tropical", tomei a decisão de revelar o máximo sobre mim sem
entregar nada secreto ou delicado de pessoas com quem me relacionei a partir
da infância.
Folha - Quando afirma que só viveria em Madri ou em Nova York, se
tivesse que morar fora do Brasil, você acrescenta que essas são as cidades
que os terroristas atacaram. Que relação exatamente você fez entre a sua
escolha por essas cidades e o fato de terem sido alvo do terrorismo. Por que
excluiu da lista Londres, em que você já viveu exilado e que também sofreu
ataques terroristas recentes?
Caetano - Londres já estava fora da lista pois não era uma das
cidades que eu escolheria para morar. O fato de as minhas duas escolhidas
terem sido escolhidas também pelos terroristas para serem atacadas me veio à
cabeça porque os fatos eram ainda recentes e porque comentando isso eu
estava dando mostras de quanto me magoaram aqueles ataques.
Outro dia vi, sozinho no cinema, "Jean Charles". Chorei muito. Em primeiro
lugar, Londres aparece linda como eu nunca achei: sente-se que o diretor
(como seu personagem) experimenta deslumbramento diante de Londres. A roda
gigante parece que é mais bonita do que a Torre Eiffel. Eu nunca senti isso
em Londres.
Noto que a cidade hoje tem muito mais essas características parisienses
de cidade central do mundo do que quando eu morei lá, mas não chega a me
parecer um lugar uno e grandioso. Amo em Londres as virtudes algo
melancólicas dos detalhes de civilidade relaxada: os bancos dos parques, os
tipos dos letreiros, as marcas brancas no preto do asfalto. Quando eu morava
lá não havia imigrantes brasileiros do tipo que há hoje. Tudo o que se passa
entre a cidade e os personagens de Selton Mello, Vanessa Giacomo e Luiz
Miranda me emocionou muito fortemente.
*
Abaixo, você lê a versão integral das respostas que estão condensadas no
caderno Ilustrada de hoje.
Folha - Você fala da perspectiva de seu enterro. Não ficou claro para
mim se você tem medo da morte ou de morrer. Tem?
Caetano Veloso - Tenho medo das duas coisas. Mas tinha mais quando
era mais moço e mais narcisista. Não lembro de ter falado sobre isso no
filme. Falei de enterro só porque lembrei que antes queria ser cremado mas
agora já pensava em ser enterrado em Santo Amaro. Para ser sincero, neste
momento não penso nem uma coisa nem outra. Aquilo foi ali no Japão.
Folha - Em dado momento do filme, você revela preocupação com a voz.
Poderia comentar como repercutiu em você o processo de perda vocal de
Gilberto Gil? Considerando que uma das coisas que o filme revela é sua
recusa à maquiagem para a TV, por receio de "ficar com cara de político
babaca", gostaria de saber qual foi o impacto da decisão de Gil de assumir o
Ministério da Cultura na relação de vocês dois.
Caetano - Eu gostaria de ter podido persuadir Gil a poupar mais a
garganta. Mas, embora a voz brilhante e extensa que ele tinha fosse linda, a
força de Gil está na musicalidade --que se expressa no modo como ele toca o
violão, como ele intui a rítmica de uma frase, como ele revela a consciência
imediata das relações entre as notas. Isso não depende de voz limpa. Quanto
ao ministério, Gil me chamou para conversar quando recebeu o convite de
Lula. Fui muito cuidadoso com ele, que estava honrado e excitado com a
oportunidade, mas terminei por aconselhá-lo a não aceitar. É sabido que eu
lhe disse: "Lula já é um símbolo: você vai ser o Lula do Lula". Mas ele
queria aceitar. E no fim das contas eu achei que ele foi mesmo um Lula do
Lula, só que isso, dadas as revelações da personalidade pragmática do
político Lula, não teve o caráter negativo que eu temia. Gil trouxe
visibilidade ao ministério da cultura, alargou e aprofundou a visibilidade
do governo Lula (um governo estrela mundial), teve seu nome e sua gestão
citados no livro do Lessig, o criador do Creative Commons, abriu o debate
sobre direitos na era da reprodutibilidade digital e da difusão virtual. E
já deixou o cargo.
Caetano Veloso critica a Folha e fala sobre documentário
SILVANA ARANTES
da Folha de S.Paulo
Caetano Veloso tem medo da morte, mas menos do que tinha "quando era mais
moço e mais narcisista". Aos 66, ele tem "saudades do equilíbrio e da
elasticidade do corpo, da força dos cabelos, o jato de urina forte, as
ereções firmes, a alegria física da juventude".
Reprodução
Documentário
"Coração Vagabundo", que mostra turnê de Caetano Veloso pelos EUA e
Japão, estreia nesta sexta-feira em São Paulo
Caetano Veloso odeia "a hipocrisia" e teme "o fanatismo". Ele acha que
"dadas as revelações da personalidade pragmática do político Lula", a adesão
de seu amigo e também músico Gilberto Gil ao governo, como ministro da
Cultura (2003-2008) "não teve o caráter negativo" que ele temia.
Tudo isso o cantor e compositor baiano contou à Folha, numa
entrevista a propósito de "Coração Vagabundo", documentário a seu respeito,
que chega aos cinemas nesta sexta-feira (24). O diretor do filme, Fernando
Grostein de Andrade, diz que sua intenção era realizar "não uma biografia,
mas uma passagem pela vida de Caetano".
Com orçamento em torno de R$ 700 mil, considerado baixo pelos parâmetros
brasileiros, "Coração Vagabundo" contou com patrocínio de empresas que
tiveram incentivo fiscal para realizar o investimento no filme. O incentivo
é proporcionado pelas leis federais de incentivo à cultura, das quais quase
todos os filmes produzidos no Brasil lançam mão.
Quando fala no tema da subvenção estatal ao fazer artístico, representada
sobretudo pela Lei Rouanet, que movimenta cerca de R$ 1 bilhão por ano,
Caetano Veloso engrossa o discurso e critica a Folha, certo
jornalismo "travestido de investigativo" e a coluna "Mônica Bergamo" nesta
entrevista, que preferiu fazer por e-mail.
A polêmica sobre o uso da Lei Rouanet envolvendo o nome de Caetano tem
origem na revelação feita pela Folha de que a turnê de seu mais novo
álbum, "Zii e Zie", só pôde recorrer a patrocínio com benefício desse
mecanismo de renúncia fiscal depois que o ministro da Cultura, Juca
Ferreira, interveio em decisão da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura
(CNIC).
A comissão analisa os projetos submetidos à Lei Rouanet e avaliou,
originalmente, que a turnê de Caetano era comercialmente viável, podendo
prescindir do incentivo. O orçamento era de R$ 2 milhões.
Caetano julga a cobertura da Folha "uma pobreza". Por um lado, ele
estrila. Por outro, não se cansa de ter esperança de um dia "melhorar mais",
como afirma a seguir.
Folha - Na última vez em que falou à Folha sobre a Lei Rouanet, você
deixou clara a sua impressão de não estar sendo devidamente compreendido.
Poderia dizer qual é sua opinião sobre o subsídio estatal à produção
artística e que avaliação faz do principal mecanismo em prática no Brasil
--a Lei Rouanet?
Caetano Veloso - Uma moça entrou na fila de fãs no camarim e, ao
chegar junto de mim, pediu para fazer duas perguntas [leia mais sobre o caso
aqui ]. De cara, não percebi que era uma jornalista. Quando entendi
isso, eu a encaminhei para a assessora de imprensa. Eu tinha uma fila grande
para atender. Julguei que a assessora fosse dispensá-la.
Mas ela reapareceu depois, dizendo agora que faria uma pergunta só.
Respondi rindo que sim, que fizéssemos logo para nos livrarmos. Era sobre a
Lei Rouanet. Não sou bom nesses assuntos e já tinha lido na Folha sugestões
de que eu estaria usando dinheiro público indevidamente. Ora, eu não
pleiteei nada junto à comissão que se encarrega de julgar esses pedidos. O
produtor que me contratou é que pleiteia. Como a comissão não aprovou, sob o
pretexto de que uma turnê minha se sustenta sem isso, o jornal achou que
havia um caso aí.
Em entrevista à revista "Cult", eu tinha dito que nunca pensava em Lei
Rouanet quando tratava de música popular e que só me pronunciei a respeito
por causa do cinema: eu havia me manifestado contra o projeto da Ancinav. A
música popular, eu dizia, não me parece precisar de incentivos além dos que
já tem. Continuo pensando assim (embora pudesse perfeitamente ter mudado de
ideia).
Pois bem, a moça não só não fez uma única pergunta como na terceira de
umas cinco punha na minha boca frases que eu não disse. Ela tinha sido
enviada por Mônica Bergamo, que mantém uma página de fofocas meio "sociais",
meio políticas (ou meio de autoridades, meio de celebridades) e o fito era
nitidamente me tratar como se eu fosse um misto de Sarney com Dado
Dolabella.
Ao fim da quarta resposta, disse-lhe que fosse embora. Ela perguntou
triunfante: "Você está me mandando embora?". Respondi que estava e insisti
para que fosse logo. Depois a Bergamo foi para o rádio gritar meu nome com
aquela voz de taquara rachada, competindo em demagogia e má-fé com [o
jornalista Ricardo] Boechat.
Claro que não ouvi isso na hora: uma amiga me mandou por e-mail em MP3.
Havia um desejo ridículo de criar um caso em que eu aparecesse como um cara
que não merece respeito. Li artigos de outros na Folha (e cartas de
leitores) meio eufóricos com isso. Uma pobreza.
Mas um conhecido me escreveu o seguinte: "Não sei se você sabe, mas o
papel de imprensa onde eles destilam o veneninho goza de 100% de isenção
fiscal. Será que os próprios repórteres sabem disto? Estamos falando de
dezenas e dezenas de milhões de reais em incentivos fiscais, não só federais
(0% de PIS, Cofins, imposto de importação etc...) mas também estaduais, já
que papel de imprensa também não paga um centavo de ICMS. E a isenção é dada
a todo mundo, não só ao jornal do AfroReggae mas também a enormes
corporações como a Folha, cujo faturamento está na casa do bilhão. A
isenção de impostos do papel de imprensa é provavelmente a forma mais antiga
de incentivo fiscal à cultura no Brasil. Acho que vem dos anos 50. Não sou
contra ela. Ao contrário, sou muito a favor, tanto para os jornais quanto
para os teus shows. Só sou contra a hipocrisiazinha vingativa --e boba--
travestida de jornalismo investigativo."
É um aspecto a ser pensado por mim e por você, Silvana. O ministro da
cultura disse que achava desequilibrada a decisão da comissão (no meu caso
como no de Bethânia e no de Fernanda Montenegro). Se não fosse assim, o
produtor da minha turnê que se virasse para fazê-la seguir ou a suspendesse.
Eu não ligo a mínima. O ministro quer mudar a lei. Seja como for, hoje todos
a usam.
Mas eu não peço isso a ninguém. Conversei depois com Maurício Pessoa (o
produtor contratante) e ele me disse que, sem isso, não teríamos espetáculos
como o de Juazeiro do Norte, em que os ingressos custavam R$ 30. Mas eu não
faço essas contas. Por mim, os ingressos todos dos meus shows deveriam ser
menos caros porque o público que tem muito dinheiro é, em geral, muito
careta --e eu não sou careta. Muitas pessoas que se identificam com o que
faço não podem, em certas cidades, ir ver o meu show. Quem quer que me
contrate deverá, contando ou não com isenção fiscal, tentar resolver essa
questão, que me interessa. O resto --os casos jornalísticos de excitação por
tentar destruir reputações-- não me interessa.
"O que é bonito tem de ser mostrado", diz ex de Caetano
sobre cena do cantor nu
Na pré-estreia de "Coração Vagabundo", documentário de Fernando Grostein
Andrade sobre Caetano Veloso, o cantor afirmou que não palpitou no corte das
57 horas originais de gravação, nem na cena em que aparece nu.
A ex-mulher de Caetano, Paula Lavigne, também deixou claro que não
interferiu na edição. "Fui a primeira a dizer que não era pra cortar a cena!
Ainda mais porque Caetano é bem dotado. O que é bonito tem de ser
mostrado!", disse Lavigne ao repórter da Folha Paulo Sampaio, em
reportagem publicada na coluna Mônica Bergamo desta quinta-feira (16).
Ao repórter, o diretor diz acreditar que Caetano e Paula não deixariam
passar a cena de nudez. "Então pensei em dar uma de espertinho e exibi-la no
final do filme, entre as imagens de bastidores", afirma Andrade.
"Coerente com a noção de intocabilidade que costumeiramente se
autoatribui, Caetano vem se mostrar ofendido a propósito do uso da Lei
Rouanet. Não deveria, pois efetivamente lançou mão da lei para subsidiar sua
turnê, beneficiando-se de sinal verde propiciado por escalão superior do
MinC, já que o pleito havia sido analisado por escalão técnico do ministério
e, por sua evidente distorção em face do espírito da lei, julgado não
procedente.
Interessante o cantor fazer alusão a um possível "lado Sarney" em sua
própria pessoa, lado que se beneficia de benesses do poder público e, ao
mesmo tempo, mete a boca na imprensa, tentando desqualificá-la por ter
cumprido sua função; lado que diz que alguém recorreu ao MinC para obter os
ditos recursos.
Seria bom então ele perguntar a esse alguém o que foi prometido ao MinC em
termos de democratizar o bem cultural, conforme o espírito da lei (um dos
seus pilares), no caso atropelada. Ingressos a R$ 30 em Juazeiro do Norte:
primeiro, é caro, dada a isenção fiscal; segundo, é insuficiente (aliás, uma
"pobreza" de retorno) para justificar ter-lhe o poder público aberto as
burras."
BOLÍVAR SILVA (São Paulo, SP)
"Caetano Veloso ganha respeito quando estrila. Perde quando espinafra as
pessoas com rancor.
Taquara rachada, Caetano, é "zê", como sempre alcunhou o público classe "A".
Achar normal que sua produtora receba os beneplácitos de uma lei que tira do
seu, do meu, dos nossos suados impostos é que é sair do tom, desafinar.
Coloquei seus discos em quarentena lá em casa."
LUCAS PACHECO (São Paulo, SP)
"Caetano, você é lindo, aliás, está bem mais bonito hoje, aos 66 anos, do
que com 30, mas o que o jornal fez foi elucidar como, num país dos espertos
e com uma política cultural inexistente aos mais necessitados, deixar que
captasse R$ 2 milhões para seu show não seria justo com as pessoas esperando
de pires na mão por não serem Caetano."
MARCOS BARBOSA (Casa Branca, SP)
"Caetano põe a responsabilidade de captação de recursos de seus shows por
meio da Lei Rouanet em seu produtor, ou seja, se há algo errado em financiar
com dinheiro público um show que se sustenta por si próprio e dá lucros
milionários, a culpa, efetivamente, não é dele.
Chama de careta quem paga R$ 200 para ver seus shows e "uma pobreza" as
manifestações de leitores que ficam "meio eufóricos" com histórias tais. São
declarações que impressionam, pois, além da alegada euforia, causam-nos
choque, confirmando que nós, fãs, leitores, ilustres cidadãos, honestos
trabalhadores e pagadores de impostos, somos muito mais que caretas, somos
imbecis."
'Coração Vagabundo' acompanha viagem
musical de Caetano
Foto: Divulgação
Documentário enfoca período
de turnê do cantor pelo mundo
Melhores cenas do documentário mostram o músico cantando canções como
'Terra', com arranjos inovadores
SÃO PAULO - "Coração Vagabundo", um documentário que se propõe a ser
"uma viagem musical com Caetano Veloso", abre com a tela em negro e um
letreiro explicando que em 1968, o músico foi vaiado durante uma
apresentação de "Proibido Proibir" num festival.
No áudio, ouve-se o som original da época: o cantor discutindo com o
público e dizendo que eles não entendiam nada. Sua voz é quase encoberta
ao som de tantas vaias.
Dessa abertura, o diretor corta para o presente, quando, num quarto de
hotel, Paula Lavigne, ex-mulher de Caetano e produtora do filme, "chama"
a câmera para segui-la e abre a porta do banheiro, onde o músico está
nu, tomando banho. Certamente, o diretor Fernando Grostein Andrade
queria que essa nudez fosse tanto real quanto metafórica para seu
documentário, que estreia em São Paulo e no Rio. Mas não é bem isso o
que se vê na tela.
Por mais que a câmera o acompanhe incessantemente durante a turnê
americana e japonesa para a divulgação do disco "A Foreign Sound", o
filme se ressente da falta de foco ao longo de seus 60 minutos. Ninguém
espera que um documentário tão curto desvende a alma e a obra de seu
retratado, mas um pouco mais de profundidade não faria mal algum a
"Coração Vagabundo".
O Caetano contestador, que bate boca com o público para defender sua
música, está apenas na memória registrada na abertura do filme. Agora,
"Coração Vagabundo" mostra que ele é um sujeito pacato, que sorri e
interage com japoneses pelas ruas de Tóquio ou na porta de um templo
budista.
A sombra do Caetano de 1968 é projetada muito discretamente, quando
perguntado sobre uma polêmica envolvendo o músico Hermeto Pascoal e os
elogios do baiano para a música norte-americana que, segundo ele, "é a
melhor do mundo".
O que há de melhor em "Coração Vagabundo" são as cenas do show de
Caetano, quando canta músicas como "Terra", com arranjos diferentes dos
originais.
As apresentações em Nova York, Tóquio e Kyoto são cercadas de uma aura
de glamour - mas não há um contraponto de como foi essa mesma turnê no
Brasil. Nos bastidores, Caetano é tietado por brasileiros ilustres no
estrangeiro, como Gisele Bündchen, e outros famosos no país, como a
atriz Regina Casé.
A proposta declarada de Grostein Andrade era fazer um documentário
intimista, um retrato quase em primeira pessoa do músico. Mas não se
pode esquecer que a produtora do filme é a ex-mulher de Caetano, Paula
Lavigne, e que o fim do casamento aconteceu durante as filmagens. A
câmera flagra alguns episódios dessa separação, como o músico pedindo o
telefone de Gisele Bündchen, numa possível brincadeira, embora
comentários dela deem margem a dúvidas.
Entre os entrevistados, aparecem os fãs internacionais do músico, como
David Byrne e o cineasta espanhol Pedro Almodóvar, que passa mais tempo
elogiando a produtora Paula Lavigne do que comentando sua relação com
Caetano - que aparece numa cena de seu longa "Fale Com Ela" (2002).
Ao contrário de dois documentários recentes sobre músicos, "Loki -
Arnaldo Baptista" e "Simonal - Ninguém Sabe o Duro Que Dei", que se
aprofundam em seus personagens, "Coração Vagabundo" é quase um filme
institucional. Nele, o que vemos na tela é o Caetano Veloso que todos
conhecem, sem muito acrescentar à imagem do mito que carrega e do qual
parece não querer se despir. (Por Alysson Oliveira, do Cineweb)
Para o bem e para o mal, "Coração Vagabundo" é um documentário dirigido
por um cineasta jovem. Muito jovem. Fernando Grostein Andrade tinha 22 anos
quando acompanhou Caetano Veloso por 42 dias durante a turnê internacional
do disco "A Foreign Sound", em 2004.
De positivo, o diretor demonstra um saudável despudor para registrar a
intimidade de seu personagem, uma disposição para absorver como esponja, sem
julgamento, o que o cantor tinha a oferecer. De problemático, mostra uma
certa dificuldade para compreender o que é ou não relevante no belo material
que captou.
"Coração Vagabundo" começa com uma cena em que Paula Lavigne, produtora
do documentário e então mulher de Caetano, incentiva o câmera a filmar o
cantor nu no banheiro, por uma fresta da porta.
Acreditar que o assunto -que retorna no final- mereça esse destaque é um
pensamento juvenil. É apostar em um pequeno escândalo que já não escandaliza
ninguém, apenas move a máquina de publicidade em torno do filme.
Há outros problemas, como estabelecer uma relação pouco clara entre o
Caetano de 2004, consagrado no mundo todo, e o de 1968, vaiado por
estudantes de esquerda na apresentação de "É Proibido Proibir", no Festival
Internacional da Canção.
Por outro lado, existem muitas preciosidades. E nenhuma delas é maior do
que o momento em que Caetano revela estar triste por questões pessoais e diz
preferir não falar sobre o assunto. O artista que nunca se cansa de falar,
que tem uma opinião sobre tudo, fica enfim em silêncio. Entrar na intimidade
do personagem é isso, não o ato de olhar pelo buraco da fechadura.
Ou melhor: isso é revelar Caetano no
raro momento em que ele deixa de ser um personagem de si mesmo. De resto, o
filme talvez tenha menos música do que o desejável, mas tem o mérito de
retratar um personagem que se transforma ao longo do filme: quase frívolo em
suas declarações no começo; essencial em suas frases sobre amadurecimento ao
final.
CORAÇÃO VAGABUNDO
Direção: Fernando Grostein Andrade Produção: Brasil, 2008 Onde: a partir de hoje nos cines Bombril, TAM, Frei Caneca e circuito
Classificação: 10 anos Avaliação: regular