Vinte anos
depois de sua morte, a obra de Luiz Gonzaga continua cada vez mais popular,
e o mito cada vez maior
José Teles
teles@jc.com.brDuas décadas
depois de sua morte, o mito Luiz Gonzaga é cada vez mais incensado. Não
apenas sua caudalosa obra continua constantemente regravada, como também
academicamente dissecada. Para o jornalista e professor José Mário
Austregésilo, autor de Luiz Gonzaga, o homem, sua terra e sua luta, este
constante debruçar sobre a música de Gonzagão é uma das razões de o artista
ser tão lembrado. E não apenas no Brasil, ressalta, apontando que há
dissertações sobre ele em até em Oxford, Inglaterra: “A grande descoberta
sobre a música de Luiz Gonzaga, que pouca gente se dá conta, é que ela não é
tradicional, mas moderna. Gonzaga levou o rural para o urbano, foi um
tradutor, no sentido etimológico da palavra, que significa transportar. Para
mim, é uma Carmem Miranda de chapéu de couro e gibão”, comenta Austregésilo.
Outra grande
importância de Luiz Gonzaga foi ter reinventado o Nordeste: “Depois dele
acabou aquela imagem do sertanejo como uma espécie de Jeca Tatu. Ele se
utilizou da figura de cangaceiro que, com a música, fez com que se tivesse
outra imagem do nordestino. A obra de Luiz Gonzaga é tão grande que é maior
que ele próprio. Se fala que ele usou a música de Zé Dantas, Onildo Almeida
e tantos compositores, na verdade, ele foi um imenso depósito da cultura do
Nordeste”.
Gilberto Gil,
que sempre se disse discípulo de Luiz Gonzaga, afirma: “Se inscreve na
galeria dos grandes inventores da música popular brasileira”. É lembrado por
todos que o conheceram de perto como um gênio, simples e, ao mesmo tempo,
dono de um temperamento impulsivo e inconstante. Nem por isso a admiração
diminui. É o caso do cearense, do Crato, Alcymar Monteiro, que conviveu de
perto com Luiz Gonzaga durante 12 anos. Uma intimidade que os tornou
compadres: “Ele e Edelzuíta foram padrinhos do meu filho”, conta Alcymar.
“Conheci Gonzagão no começo dos anos 80, no Cavalo Dourado (casa de shows
que existiu no Cordeiro). Depois de um show dele, fui lhe entregar um disco
meu. Ele não era um homem de quem se podia se aproximar facilmente. Depois,
me contou que levou o disco, ouviu em casa e gostou. O que, me dissem era
difícil com ele, que recebia centenas de discos e não gostava da maioria.
Sei que nestes 12 anos pude ver de perto a genialidade e a simplicidade de
Gonzaga. Gravei duas músicas com ele, e ele gravou três composições minhas”.
(©
JC Online)
O canto do cisne de Luiz Gonzaga
Sem
poder sair de casa, Gonzagão recebia muitas visitas, entre estas a do
violonista Ednaldo Queiroz, que gravou o último cantar do mestre
Alcymar Monteiro recorda que foi visitar Luiz Gonzaga, no mês em que ele
morreu. Encontrou “Lua” inquieto e impaciente com as dores que não o
abandonavam um instante. Quando Alcymar ia embora, ele lhe fez uma
confissão: “Meu compadre, estou no fim, mas uma coisa me conforta. Sabe que
Luiz Gonzaga tem um dono?”. Alcymar diz que se surrpreendeu com o que ouviu:
“Perguntei, e quem é seu dono seu Luiz? Ele explicou: o povo nordestino”.
Gabriel Domingos, que trabalhou, como divulgador discos, na RCA e
Copacabana, derradeira gravadora de Luiz Gonzaga: “Ele era gente muito boa,
mas quando queria dizer o que pensava, dizia na cara. Sempre que vinha ao
Recife eu acompanhava seu Luiz, fazia parte do meu trabalho. Uma vez a gente
foi almoçar com um produtor no Buraco de Otília, quando terminou ele me
chamou de lado e me deu dinheiro para pagar a conta. Quando o produtor se
mexeu para pagar, ele disse que não precisava. Perguntou se o cara achava
que por ser nordestino ele precisava que lhe pagassem comida”, conta
Gabriel.
Uma das razões pelas quais Luiz Gonzaga fez tanto sucesso é que ele nunca
se furtou a divulgar sua música, independente de ter um profissional do ramo
à disposição, como lembra Gabriel Domingos: “Uma vez eu estava no escritório
da gravadora e me ligaram da Rádio Recife avisando que Luiz Gonzaga se
encontrava na portaria da emissora. Corri para lá, e encontrei seu Luiz
dizendo pelo telefone, ao diretor de programação, que era um artista novo e
vinha trazer um disco pra ver se tocavam ele”.
Coincidiu de Gabriel Domingos estar na Copacabana quando Luiz Gonzaga
gravou o último álbum, Vou te matar de cheiro, em 1989: “Quando o disco saiu
ele já estava bem mal, sem condições de sair pelas rádios divulgando o LP,
mesmo assim uma música estourou, Uma pra mim, outro pra tu (parceria com
João Silva, autor de quase todas as faixas deste disco). Eu fui no hospital
onde ele estava. Quando entrei no quarto, ele ficou meio surpreso:
‘Neguinho, que é que tu está fazendo aqui? Tu não é da outra gravadora? Ele
gostou quando soube que eu, feito ele, tinha deixado a RCA”.
Luiz Gonzaga gravou quase toda sua obra pela RCA (hoje BMG), que trocou
pela Odeon no início dos anos 70, num de seus famosos rompantes. Era uma
época em que ele estava meio por baixo, o dinheiro curto. Ia casar a filha
Rosinha, e foi à RCA tentar um empréstimo para a fazer a festa. O presidente
da gravadora, um americano, não quis recebê-lo. Gonzaga subiu até o
escritório dele, entrou porta adentro, e vociferou: “Que casa é esta onde só
conheço o cachorro, mas não vejo o dono? (referindo-se ao cãozinho no
logotipo da RCA). Quero rescindir meu contrato”. Gravou três discos pela
Odeon, convidado pelo conterrâneo Fernando Lobo. Em 1974 estava de volta à
RCA, onde ficou até 1988. Naquele ano lançou um disco sem repercussão. A
RCA, então já rebatizada de BMG, não se mostrou mais interessada no artista
que por décadas lhe deu tanto lucro. Gonzaga entendeu que os tempos haviam
mudado, e foi para a Copacabana.
Na época em que a doença o deixou prostrado no apartamento de sua última
mulher, Edelzuíta Rabelo, em Boa Viagem, Luiz Gonzaga recebia constantes
visitas de amigos e músicos que tocaram com ele. Um destes foi o bodocoense
Ednaldo Queiroz, que, ainda adolescente, em meados anos 70, foi guitarrista
do grupo LG Som. Ednaldo, hoje morando em Atlanta, nos EUA, na época era
bastante badalado no Recife como violonista. Ele foi levar seu CD Dança
cigana ao mestre, portando, oportunamente, um gravador no bolso. Durante a
conversa, Luiz Gonzaga ouviu o disco, e sentiu vontade de cantar. Deitado
numa rede, acomodou a sanfona no peito, e apesar das dores que sentia,
cantou algumas canções, em levada de toada. Uma delas, Menestrel do sol
(Humberto Teixeira). Foi seu canto de cisne.
Na gravação feita pelo violonista, Gonzagão imprime uma interpretação tão
pungente à canção, que soa como se tivesse cantando seu próprio epitáfio:
“Menestrel do sol/na vida eu só cantei/juntando irmão com irmão/eu esquecia
de viver/...Ai, ai que curta vida/pra quem tanto viveu/os sonhos de outras
vidas/que ajudei com o canto meu”.
(©
JC Online)
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