Foto: Divulgação
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Cena do filme O Milagre de Santa
Luzia |
Documentário examina a forma como se toca instrumento em
todo o Brasil e aquilo que une e forja diferentes
tradições
Jotabê Medeiros
O diretor pergunta ao poeta Patativa do Assaré sobre
Luiz Gonzaga. Patativa dá uma cuspida de lado e
permanece em silêncio, durante uns 30 ou 40 segundos,
olhando fixo para o interlocutor. Velhinho, parece que
não ouviu a pergunta. O espectador começa a pensar que
perdeu a viagem. Mas então Patativa começa a responder,
e em versos, e fascina pela capacidade de memorizar, de
criar ritmo, de pintar paisagens nos ouvidos. O Milagre
de Santa Luzia, documentário de Sergio Roizenblit, já se
justificaria somente por essa cena - mas tem muito mais.
Patativa do Assaré morreu após a gravação, assim como
outros artistas que deram depoimentos ao diretor
(Sivuca, Mario Zan, Marinês). Roizenblit ficou quase 10
anos fazendo o trabalho, e o filme estreia justamente no
momento em que nasce o filho do diretor - a mulher está
grávida de 9 meses. A ansiedade, ele diz, é igual,
afinal são dois filhos que nascem.
O Milagre de Santa Luzia mostra como se dá pelo País a
diáspora de um instrumento musical, a sanfona (ou gaita,
ou acordeom, dependendo da circunstância geográfica). É
muito mais do que isso, no entanto: é um tratado
sociológico, com seus closes dos rostos dos vaqueiros
encourados do Nordeste, os velhos italianos do Rio
Grande do Sul, as famílias, os moleques curiosos, os
bailes, a falta de dentes, os olhos dos cavalos, o
churrasco, a carne de sol pendurada na barraca.
Dominguinhos, que ganhou uma sanfona de Luiz Gonzaga
quando criança após chegar ao Rio de Janeiro de "pau de
arara", é o fio condutor da narrativa. Dominguinhos abre
o filme tocando Lamento Sertanejo, dele e de Gilberto
Gil. O músico não é símbolo apenas porque venceu na
vida, e anda de picape, mas porque os pares o respeitam.
O espectador morre de rir em Caruaru com a história de
Pinto do Acordeon, que cantou New York New York em baile
sem saber inglês para salvar a própria pele. Morre de
vontade de ir dançar no forró mais famoso do Recife no
dia em que Arlindo dos 8 Baixos estiver tocando.
Roizenblit não é apenas um empilhador de depoimentos.
Sabe precisamente aonde quer chegar. Um dos momentos
mais elucidativos de sua tese é quando o gaiteiro gaúcho
Borges fala da mediocridade que é um gaiteiro sem seu
instrumento. Borghettinho, sem sua gaita, seria apenas
um guri qualquer de chapéu. A sanfona e o homem que a
toca são uma espécie de entidade, uma criatura com vida
independente, e é essa entidade que o filme procura pelo
Brasil, do pantanal mato-grossense às cidades
fronteiriças, como Alegrete.
Ah, ia esquecendo: por que o filme se chama O Milagre de
Santa Luzia? Bom, Luiz Gonzaga nasceu no dia de Santa
Luzia. Fosse mulher, seria Luzia. Se o nascimento de
Luiz Gonzaga não foi um milagre, então é difícil definir
um. Para quem gosta de música, é um documentário
necessário. Para quem escreve sobre música, ou escreve
música, é essencial. Para o espectador comum, no
entanto, talvez o filme tenha ficado um pouco longo
demais - e portanto, fastidioso, em alguns momentos.
Poderia ter sido editado com uns 20 minutos a menos, sem
que o essencial ficasse ameaçado.
(©
Estadão)
Sanfoneiros conduzem bom documentárioSÉRGIO
RIZZO
CRÍTICO DA FOLHA
A jornada musical do documentário "O Milagre de Santa Luzia" conduz o espectador
por uma espécie de "Oiapoque a Chuí" da sanfona. Os marcos extremos, neste caso,
são a pequena Exu (PE), por onde começa a viagem, e Bagé (RS), uma de suas
paradas intermediárias.
Além de se deter sobre a presença do instrumento nas regiões Nordeste e Sul
do país, o diretor, roteirista, fotógrafo e montador Sérgio Roizenblit também
percorre, em seu primeiro longa-metragem, o Centro-Oeste e o Sudeste. Na maior
parte do trajeto, é acompanhado por um guia muito especial, o sanfoneiro
Dominguinhos.
"Sua sanfona saudosa, com que vivia abraçado, era santa milagrosa
ressuscitando o passado", diz o poema que Patativa do Assaré (1909-2002) dedicou
à memória de Luiz Gonzaga (1912-1989), nascido em Exu no dia de Santa Luzia, 13
de dezembro, e batizado em homenagem a ela.
Gonzaga, Patativa -que gravou sua participação no documentário pouco antes de
morrer- e a tradição poética e musical nordestina são o ponto de partida para
que Roizenblit e Dominguinhos apresentem os artistas da sanfona como
representantes de uma estirpe de grande apelo popular.
O caráter informativo de "O Milagre de Santa Luzia" possibilita compreender
como a sanfona -também chamada de acordeão, fole, gaita, pé-de-bode e oito
baixos, de acordo com a região- se enraizou em manifestações musicais muito
distintas que se mantêm vivas e com fôlego intenso, inclusive em metrópoles.
Contribui para isso a pesquisa que Roizenblit já havia desenvolvido para a
realização do vídeo "O Brasil da Sanfona", do projeto Memória Brasileira, de
Myriam Taubkin.
A riqueza de seu documentário, no entanto, envolve a felicidade de registrar
situações que traduzem o apelo sentimental da sanfona melhor do que qualquer
explicação didática.
É o caso, por exemplo, do inesperado encontro, em plena estrada, entre
Dominguinhos e um grupo de vaqueiros que voltavam para casa depois de uma
vaquejada, devidamente paramentados, e reconhecem o sanfoneiro, com quem passam
a cantar. Ou do depoimento de Pinto do Acordeon, que recorda o episódio em que
interpretou versão impagável de "New York, New York".
"O Milagre de Santa Luzia" foi também bafejado pela sorte ao conseguir
registros de duas lendas da sanfona que morreram logo em seguida: Mario Zan
(1920-2006), que fala com orgulho de suas raízes caipiras, e Sivuca (1930-2006),
alegre como uma criança por tocar com Dominguinhos.
O MILAGRE DE SANTA LUZIA
Direção: Sérgio Roizenblit
Produção: Brasil, 2008
Onde: Espaço Unibanco Augusta, Frei Caneca Unibanco Arteplex e Shopping D
Classificação: livre
Avaliação: bom
(©
Folha de S. Paulo)
"Milagre de
Santa Luzia" mergulha num Brasil da sanfona
Por Alysson Oliveira, do
Cineweb
SÃO PAULO (Reuters) - Existe uma música de
Aldir Blanc e Maurício Tapajós, "Querelas do Brasil", que ficou
famosa na voz de Elis Regina, que poderia muito bem estar no
documentário "O Milagre de Santa Luzia". "O Brazil não conhece o
Brasil", diz um dos versos da canção.
Dominguinhos, um dos sanfoneiros mais
conhecidos do país, faz parte do filme ''O Milagre de Santa
Luzia"
O filme, que estreia em São Paulo, Rio de
Janeiro e Santos nesta sexta, revela um Brasil pouco conhecido pelo
restante do país.
Dirigido por Sergio Roizenblit, "O Milagre
de Santa Luzia" aborda a cultura popular brasileira por meio da
sanfona que, por incrível que pareça, une o Brasil de norte a sul,
com os ritmos mais variados, do baião ao jazz. O cicerone dessa
viagem é o músico Dominguinhos, atualmente, o sanfoneiro mais
conhecido do país.
A saga ao som da sanfona começa em Exu, no
Estado de Pernambuco, onde Dominguinhos interpreta "Lamento
Sertanejo", que compôs com Gilberto Gil. Mas, ao longo dos pouco
mais de 100 minutos de filme, "O Milagre de Santa Luzia" muda o
conceito que temos do instrumento ao mostrar um Brasil
diversificado, no qual cada região o reinventa de acordo com suas
tradições.
O trabalho excepcional de Roizenblit revela
as cores das culturas locais dando espaço para seus personagens e
Dominguinhos, com sua simpatia, conduz entrevistas que são
verdadeiras conversas, despojadas e divertidas, e faz parcerias com
outros músicos, como Mario Zan e Sivuca, ambos mortos em 2006.
Se, por um lado, a tradição da sanfona no
Nordeste já é bem conhecida - embora "O Milagre de Santa Luzia
mostre algumas novidades -, o Sudeste e o Sul surpreendem, com
paulistas que combinam as tradições rurais com a urbanidade ou
gaúchos que adaptam a sanfona para as cores locais combinando com o
som da gaita.
Em meio à visão geral, destacam-se alguns
músicos, como o pernambucano Arlindo dos Oito Baixos, que conta como
a sanfona o ajudou a lidar com a perda da visão.
A gênese de "O Milagre de Santa Luzia"
começou em 2001, quando Roizenblit participou do Projeto Memória
Brasileira, de Myrian Taubkin, para o qual dirigiu vídeo-cenários da
série de shows O Brasil da Sanfona, que posteriormente foram
transformados em DVD.
Desde então, o documentarista trabalha no
projeto. Em 2006, foram colhidos os depoimentos - exceto o de
Patativa do Assaré. O poeta morreu em 2002, por isso o documentário
aproveita cenas filmadas em 2001, nas quais ele homenageia o músico
Luiz Gonzaga com um poema.
É obvio que o som em "O Milagre de Santa
Luzia" é o que mais se destaca. Pedro Noizyman, João Godoy, René
Brasil e Thiago Bittencourt fizeram um trabalho impressionante,
captando todas as nuances dos instrumentos musicais. Na primeira
cena, Dominguinhos toca sanfona andando numa estrada - é possível
ouvir com clareza cada acorde de sua música.
Mas, nem por isso, Roizenblit e Rinaldo
Martinucci, que assinam a fotografia, sabem como explorar as belezas
tanto naturais como metropolitanas das cidades visitadas. Uma das
cenas mais bonitas, tanto no visual quanto no som, acontece por
acaso. É aquele famoso acaso do momento que tanto enriquece
documentários quando bem explorados.
A cena acontece em Custódia (PB), onde
Dominguinhos se encontra na estrada com um grupo de músicos vindos
de uma vaquejada. Todos vestidos a caráter, cantam à capela, ao ar
livre. Nesse momento, o filme mostra claramente a comunhão entre a
música e o ambiente.
Exibido no Festival de Brasília, em
novembro do ano passado, "O Milagre de Santa Luzia" levou os prêmios
de melhor trilha sonora e o Vagalume de melhor filme, concedido por
um júri de deficientes visuais.
Em sua participação em "O Milagre de Santa
Luzia", Sivuca diz que "a nossa missão é tratar bem quem nos trata
bem, que é a sanfona". Roizenblit e seu filme estão cientes disso e
tratam bem não apenas o instrumento, mas também seus músicos e,
especialmente, o público que sai do cinema certo de ter feito uma
bela viagem por um Brasil que o Brasil pouco, ou nada, conhece.
(©
UOL
Cinema)
VÍDEO
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