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As sanfonas que moldaram um país

28/08/2009

 

 

Foto: Divulgação
Cena do filme O Milagre de Santa Luzia

Documentário examina a forma como se toca instrumento em todo o Brasil e aquilo que une e forja diferentes tradições

Jotabê Medeiros

O diretor pergunta ao poeta Patativa do Assaré sobre Luiz Gonzaga. Patativa dá uma cuspida de lado e permanece em silêncio, durante uns 30 ou 40 segundos, olhando fixo para o interlocutor. Velhinho, parece que não ouviu a pergunta. O espectador começa a pensar que perdeu a viagem. Mas então Patativa começa a responder, e em versos, e fascina pela capacidade de memorizar, de criar ritmo, de pintar paisagens nos ouvidos. O Milagre de Santa Luzia, documentário de Sergio Roizenblit, já se justificaria somente por essa cena - mas tem muito mais.

Patativa do Assaré morreu após a gravação, assim como outros artistas que deram depoimentos ao diretor (Sivuca, Mario Zan, Marinês). Roizenblit ficou quase 10 anos fazendo o trabalho, e o filme estreia justamente no momento em que nasce o filho do diretor - a mulher está grávida de 9 meses. A ansiedade, ele diz, é igual, afinal são dois filhos que nascem.

O Milagre de Santa Luzia mostra como se dá pelo País a diáspora de um instrumento musical, a sanfona (ou gaita, ou acordeom, dependendo da circunstância geográfica). É muito mais do que isso, no entanto: é um tratado sociológico, com seus closes dos rostos dos vaqueiros encourados do Nordeste, os velhos italianos do Rio Grande do Sul, as famílias, os moleques curiosos, os bailes, a falta de dentes, os olhos dos cavalos, o churrasco, a carne de sol pendurada na barraca.

Dominguinhos, que ganhou uma sanfona de Luiz Gonzaga quando criança após chegar ao Rio de Janeiro de "pau de arara", é o fio condutor da narrativa. Dominguinhos abre o filme tocando Lamento Sertanejo, dele e de Gilberto Gil. O músico não é símbolo apenas porque venceu na vida, e anda de picape, mas porque os pares o respeitam.

O espectador morre de rir em Caruaru com a história de Pinto do Acordeon, que cantou New York New York em baile sem saber inglês para salvar a própria pele. Morre de vontade de ir dançar no forró mais famoso do Recife no dia em que Arlindo dos 8 Baixos estiver tocando.

Roizenblit não é apenas um empilhador de depoimentos. Sabe precisamente aonde quer chegar. Um dos momentos mais elucidativos de sua tese é quando o gaiteiro gaúcho Borges fala da mediocridade que é um gaiteiro sem seu instrumento. Borghettinho, sem sua gaita, seria apenas um guri qualquer de chapéu. A sanfona e o homem que a toca são uma espécie de entidade, uma criatura com vida independente, e é essa entidade que o filme procura pelo Brasil, do pantanal mato-grossense às cidades fronteiriças, como Alegrete.

Ah, ia esquecendo: por que o filme se chama O Milagre de Santa Luzia? Bom, Luiz Gonzaga nasceu no dia de Santa Luzia. Fosse mulher, seria Luzia. Se o nascimento de Luiz Gonzaga não foi um milagre, então é difícil definir um. Para quem gosta de música, é um documentário necessário. Para quem escreve sobre música, ou escreve música, é essencial. Para o espectador comum, no entanto, talvez o filme tenha ficado um pouco longo demais - e portanto, fastidioso, em alguns momentos. Poderia ter sido editado com uns 20 minutos a menos, sem que o essencial ficasse ameaçado.

(© Estadão)

 

 


O Milagre de Santa Luzia (Brasil/ 2009, 104 min.) - Documentário. Dir. Sérgio Roizemblit. Livre. Cotação: Ótimo


Sanfoneiros conduzem bom documentário

SÉRGIO RIZZO
CRÍTICO DA FOLHA

A jornada musical do documentário "O Milagre de Santa Luzia" conduz o espectador por uma espécie de "Oiapoque a Chuí" da sanfona. Os marcos extremos, neste caso, são a pequena Exu (PE), por onde começa a viagem, e Bagé (RS), uma de suas paradas intermediárias.

Além de se deter sobre a presença do instrumento nas regiões Nordeste e Sul do país, o diretor, roteirista, fotógrafo e montador Sérgio Roizenblit também percorre, em seu primeiro longa-metragem, o Centro-Oeste e o Sudeste. Na maior parte do trajeto, é acompanhado por um guia muito especial, o sanfoneiro Dominguinhos.

"Sua sanfona saudosa, com que vivia abraçado, era santa milagrosa ressuscitando o passado", diz o poema que Patativa do Assaré (1909-2002) dedicou à memória de Luiz Gonzaga (1912-1989), nascido em Exu no dia de Santa Luzia, 13 de dezembro, e batizado em homenagem a ela.

Gonzaga, Patativa -que gravou sua participação no documentário pouco antes de morrer- e a tradição poética e musical nordestina são o ponto de partida para que Roizenblit e Dominguinhos apresentem os artistas da sanfona como representantes de uma estirpe de grande apelo popular.

O caráter informativo de "O Milagre de Santa Luzia" possibilita compreender como a sanfona -também chamada de acordeão, fole, gaita, pé-de-bode e oito baixos, de acordo com a região- se enraizou em manifestações musicais muito distintas que se mantêm vivas e com fôlego intenso, inclusive em metrópoles.

Contribui para isso a pesquisa que Roizenblit já havia desenvolvido para a realização do vídeo "O Brasil da Sanfona", do projeto Memória Brasileira, de Myriam Taubkin.

A riqueza de seu documentário, no entanto, envolve a felicidade de registrar situações que traduzem o apelo sentimental da sanfona melhor do que qualquer explicação didática.

É o caso, por exemplo, do inesperado encontro, em plena estrada, entre Dominguinhos e um grupo de vaqueiros que voltavam para casa depois de uma vaquejada, devidamente paramentados, e reconhecem o sanfoneiro, com quem passam a cantar. Ou do depoimento de Pinto do Acordeon, que recorda o episódio em que interpretou versão impagável de "New York, New York".

"O Milagre de Santa Luzia" foi também bafejado pela sorte ao conseguir registros de duas lendas da sanfona que morreram logo em seguida: Mario Zan (1920-2006), que fala com orgulho de suas raízes caipiras, e Sivuca (1930-2006), alegre como uma criança por tocar com Dominguinhos.

O MILAGRE DE SANTA LUZIA

Direção: Sérgio Roizenblit
Produção: Brasil, 2008
Onde: Espaço Unibanco Augusta, Frei Caneca Unibanco Arteplex e Shopping D
Classificação: livre
Avaliação: bom
 

(© Folha de S. Paulo)


"Milagre de Santa Luzia" mergulha num Brasil da sanfona

Por Alysson Oliveira, do Cineweb

SÃO PAULO (Reuters) - Existe uma música de Aldir Blanc e Maurício Tapajós, "Querelas do Brasil", que ficou famosa na voz de Elis Regina, que poderia muito bem estar no documentário "O Milagre de Santa Luzia". "O Brazil não conhece o Brasil", diz um dos versos da canção.

Dominguinhos, um dos sanfoneiros mais conhecidos do país, faz parte do filme ''O Milagre de Santa Luzia"

O filme, que estreia em São Paulo, Rio de Janeiro e Santos nesta sexta, revela um Brasil pouco conhecido pelo restante do país.

Dirigido por Sergio Roizenblit, "O Milagre de Santa Luzia" aborda a cultura popular brasileira por meio da sanfona que, por incrível que pareça, une o Brasil de norte a sul, com os ritmos mais variados, do baião ao jazz. O cicerone dessa viagem é o músico Dominguinhos, atualmente, o sanfoneiro mais conhecido do país.

A saga ao som da sanfona começa em Exu, no Estado de Pernambuco, onde Dominguinhos interpreta "Lamento Sertanejo", que compôs com Gilberto Gil. Mas, ao longo dos pouco mais de 100 minutos de filme, "O Milagre de Santa Luzia" muda o conceito que temos do instrumento ao mostrar um Brasil diversificado, no qual cada região o reinventa de acordo com suas tradições.

O trabalho excepcional de Roizenblit revela as cores das culturas locais dando espaço para seus personagens e Dominguinhos, com sua simpatia, conduz entrevistas que são verdadeiras conversas, despojadas e divertidas, e faz parcerias com outros músicos, como Mario Zan e Sivuca, ambos mortos em 2006.

Se, por um lado, a tradição da sanfona no Nordeste já é bem conhecida - embora "O Milagre de Santa Luzia mostre algumas novidades -, o Sudeste e o Sul surpreendem, com paulistas que combinam as tradições rurais com a urbanidade ou gaúchos que adaptam a sanfona para as cores locais combinando com o som da gaita.

Em meio à visão geral, destacam-se alguns músicos, como o pernambucano Arlindo dos Oito Baixos, que conta como a sanfona o ajudou a lidar com a perda da visão.

A gênese de "O Milagre de Santa Luzia" começou em 2001, quando Roizenblit participou do Projeto Memória Brasileira, de Myrian Taubkin, para o qual dirigiu vídeo-cenários da série de shows O Brasil da Sanfona, que posteriormente foram transformados em DVD.

Desde então, o documentarista trabalha no projeto. Em 2006, foram colhidos os depoimentos - exceto o de Patativa do Assaré. O poeta morreu em 2002, por isso o documentário aproveita cenas filmadas em 2001, nas quais ele homenageia o músico Luiz Gonzaga com um poema.

É obvio que o som em "O Milagre de Santa Luzia" é o que mais se destaca. Pedro Noizyman, João Godoy, René Brasil e Thiago Bittencourt fizeram um trabalho impressionante, captando todas as nuances dos instrumentos musicais. Na primeira cena, Dominguinhos toca sanfona andando numa estrada - é possível ouvir com clareza cada acorde de sua música.

Mas, nem por isso, Roizenblit e Rinaldo Martinucci, que assinam a fotografia, sabem como explorar as belezas tanto naturais como metropolitanas das cidades visitadas. Uma das cenas mais bonitas, tanto no visual quanto no som, acontece por acaso. É aquele famoso acaso do momento que tanto enriquece documentários quando bem explorados.

A cena acontece em Custódia (PB), onde Dominguinhos se encontra na estrada com um grupo de músicos vindos de uma vaquejada. Todos vestidos a caráter, cantam à capela, ao ar livre. Nesse momento, o filme mostra claramente a comunhão entre a música e o ambiente.

Exibido no Festival de Brasília, em novembro do ano passado, "O Milagre de Santa Luzia" levou os prêmios de melhor trilha sonora e o Vagalume de melhor filme, concedido por um júri de deficientes visuais.

Em sua participação em "O Milagre de Santa Luzia", Sivuca diz que "a nossa missão é tratar bem quem nos trata bem, que é a sanfona". Roizenblit e seu filme estão cientes disso e tratam bem não apenas o instrumento, mas também seus músicos e, especialmente, o público que sai do cinema certo de ter feito uma bela viagem por um Brasil que o Brasil pouco, ou nada, conhece.

(© UOL Cinema)


VÍDEO

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