28/08/2009
Logo após lançar A Panela do Diabo, o mago morria, em 21 de agosto de
1989, há 20 anos
Edmundo Leite
Quando velhos sucessos de Raul Seixas começaram a tocar repetidamente nas
rádios na tarde daquela segunda-feira, 21 de agosto de 1989, não foram
poucos os que se surpreenderam. Com Raul ausente das paradas desde Cowboy
Fora da Lei, dois anos antes, escutar antigos hits como Ouro de Tolo, Gita,
Metamorfose Ambulante e Maluco Beleza no meio da programação regular - que
então ia da revelação Marisa Monte a Chitãozinho e Xororó e Milli Vanilli,
passando por Legião Urbana - deveria significar alguma coisa. E a notícia
não demorou a chegar
Se para muitos foi uma surpresa, para os que acompanhavam o artista de perto
era mais que esperado. Suas últimas aparições públicas causavam um misto de
choque e comoção. Mesmo com a saúde bastante debilitada, a lenda do rock
brasileiro arrastava multidões em seus shows. Apoiado pelo amigo e discípulo
Marcelo Nova, acabara de realizar uma extensa e bem-sucedida excursão por
todo o País. A derradeira apresentação foi em Brasília, poucos dias antes de
ser encontrado morto no modesto apartamento onde morava sozinho em São
Paulo. A semana que se seguiu ao show no Planalto Central seria de descanso
e de preparação para as atividades programadas para o lançamento do disco
gravado nos intervalos das apresentações pelo Brasil.
A Panela do Diabo, batizado pela dupla por inspiração de evangélicos que
distribuíam panfletos comparando Raul ao Belzebu na porta de um show no
interior de São Paulo, era o resultado da parceria que uniu os dois
irrequietos baianos no momento em que o País vivia uma de suas mais
importantes transições.
As primeiras apresentações conjuntas de Raul e Marcelo foram na Concha
Acústica do Teatro Castro Alves, em Salvador, a apenas duas semanas da
promulgação da Constituição de 1988. Mais que um marco histórico, a nova
Carta tinha um efeito prático para o roqueiro. Após quase 20 anos de
carreira, pela primeira vez ele estaria legalmente livre para dizer o que
quisesse, como pregava a sua constituição, o manifesto da Sociedade
Alternativa. Junto com a volta das garantias coletivas e individuais, a
Constituição Cidadã - como Ulysses Guimarães a batizara - acabava de vez a
censura às obras artísticas, mantida no governo civil de Sarney mesmo após a
saída dos militares do poder e que ainda naquele 1988 havia proibido a
execução pública de Não Quero Mais Andar na Contramão, do fraco disco Pedra
do Gênesis que antecedeu o encontro de Raul com Marcelo.
Se os novos tempos traziam liberdade total de expressão, o que faltava agora
a Raul era motivação. Diabético, com uma pancreatite crônica decorrente do
alcoolismo e recém-separado da última das cinco mulheres com quem foi
casado, estava depressivo e amargurado. O sarcasmo, a ironia e a índole
zombeteira e verborrágica que por anos marcaram suas aparições e músicas
deram lugar a uma figura calada.
O convite do ex-líder do Camisa de Vênus para os shows - junto a um
necessário acompanhamento médico - deu uma injeção de ânimo em Raul. Já na
chegada a Salvador para as primeiras apresentações, a dupla chegou zombando
de Gilberto Gil, que dava na capital baiana os primeiros passos da carreira
política que culminaria anos depois com o cargo de ministro da Cultura no
governo Lula. O atual presidente, na época disputando a sua primeira eleição
presidencial, também foi alvo da dupla. Com a inédita campanha eleitoral
para a escolha do novo presidente a pleno vapor em meados de 1989, o magro
barbudo e Marcelo declaravam que não acreditavam em alguém que não ria,
referindo-se à sisudez do petista, considerada um dos principais fatores de
rejeição a ele.
Apesar do calor da disputa eleitoral enquanto corria a turnê, a sucessão
política especificamente não serviu de inspiração para as composições da
nova dupla. Mas outros temas que estavam nas páginas de jornais e nos
noticiários da TV não passaram despercebidos. Em meio às celebrações ao
"rockão antigo" e canções autobiográficas, a panela preparada por Raul e
Marcelo misturava Salman Rushdie, Sting e cacique Raoni em Best Seller e
ainda davam uma espinafrada em Edir Macedo na divertida Pastor João e a
Igreja Invisível: "Pois eu transformo água em vinho, chão em céu, pão em
pedra, cuspe em mel/Para mim não existe impossível/pastor João e a Igreja
Invisível." 20 anos depois, com os mesmos personagens ainda protagonizando
os noticiários não deixa de ser premonitória a sentença da já citada Best
Seller, que dizia que no final bandido casa com o mocinho
Mas os pontos altos eram mesmo as que olhavam para dentro, para trás, ou
para o futuro, com a mistura de balanço de vida com testamento de Banquete
de Lixo: "Meu amigo Marceleza/já me disse com certeza/ não sou nenhuma
ficção/ e assim torto de verdade/com amor e com maldade/ um abraço e até
outra vez."
Raul não viveria para ver o relativo sucesso do disco. Morreu aos 44 anos no
dia em que o LP chegava às lojas. Também não viu o resultado daquelas
eleições, a iminente queda do Muro de Berlim, a chegada da MTV, os anos 90,
a internet... que talvez poderão ser cantadas por alguém daqui dez mil anos.
(©
Estadão)
A cauda do cometa
Raulzito
Há 20 anos
morria, aos 45, o cantor Raul Seixas, o maluco beleza que viveu intensamente
José Teles
teles@jc.com.brPancreatite
crônica, hipoglicemia e parada cardiorespiratória, as causas do falecimento
segundo o atestado de óbito de Raul Santos Seixas, no dia 21 de agosto de
1989, em São Paulo. O que há de mais curioso, ou estranho, nele é sua
obsessão, desde criança, em fazer anotações sobre quase tudo o que lhe
acontecia, sobre as pessoas com quem convivia, e sobre o mundo ao seu redor.
Foi um existencialista sem saber. No seu famigerado baú, onde conservou
todas os cadernos que enchia de escritos e desenhos pode-se acompanhar toda
sua trajetória do adolescente que descobriu o rock and roll de Elvis
Presley, e fez dele um modo de vida, ao músico de Os Panteras, um conjunto
de iê iê iê de Salvador, ao compositor de baladinhas inocentes da Jovem
Guarda, ao produtor de astros do iê iê iê, até a metamorfose, que deu no
personagem Raul Seixas, uma persona que criou para si mesmo, e na qual ficou
aprisionado até até morrer, aos 44 anos, com o corpo debilitado pelo uso de
muitas drogas e muito álcool. Ele passou a vida escrevendo sua
autobiografia.
“Num planeta
chamado Terra. Num país chamado Brasil. Num estado chamado Bahia. Numa
cidade chamada Salvador. Numa rua chamada Avenida 7. Numa casa número 108.
Nasceu um menino gordinho com 4 quilos e meio.Chamado Raulzito”, escreveu
ele aos 13 anos. Filho de uma família classe média, Raul foi mau aluno, mas
ótimo leitor dos livros que havia na biblioteca do pai, que o levaram a
querer ser escritor, antes de se decidir pela música. “Defeitos e vícios:
Rou (sic) unha. Fumo. Sou medroso. Sofro de claustrofobia (receio aos
lugares feixados). Tenho raiva demais quando trato uma pessoa bem e ele me
paga mal. Minto”. A confissão feita pelo Raulzito pré-adolescente, já um
filósofo pessimista, que escrevia versos como estes: “A vida é um palito de
fósforo que vai se queimando até apagar, para sempre. A felicidade é como um
eclipse solar, só se dá de tempos em tempos”.
Sua passagem
pelos Os Panteras, o comportado compositor e produtor de iê iê iê não
prenunciavam o barulho que ele faria na MPB, a partir do primeiro LP, o
antológico Krig-ha bandolo, em 1973. O início da metamorfose, da criação do
personagem Raul Seixas aconteceu quando ele conheceu malucos beleza feito
ele, Sérgio Sampaio, Míriam Batucada e Eddy Star (um baiano que morou no
Recife na época do udigrudi pernambucano, no final dos anos 60), e gravou
com eles o LP Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das 10. O
disco o sintonizou com a turma alternativa, que na época não tinha vez em
gravadoras. A história deste disco, logo retirado de catálogo, é bem
conhecida. Foi feito quando o chefão da CBS, Evandro Ribeiro fez uma viagem
à Europa. Raul produziu o disco, sem autorização de ninguém, e ainda gastou
uma pequena fortuna nele.
A personagem
Raul Seixas se formaria de vez quando ele conheceu Paulo Coelho, que o
ajudou a abrir as portas da percepção. As leituras esotéricas da dupla é o
amálgama que fez do primeiro álbum de Raul Seixas, Krig-ha bandolo, uma obra
única na música brasileira. Apenas as letras não seriam suficientes, se não
tivesse também melodias que alcançavam todos os tipos de consumidores, algo
que ele aprendeu compondo inocentes iê iê iês românticos, para ídolos da
Jovem Guarda, como Renato e seus Bluecaps, Jerry Adriani, e Lílian. Mas o
pop que cantava tinha arestas e efeitos colaterais. “Graças aos demônios,
deuses totens meus/ eu nasci um louco, dou graças a Deus/ como um anormal
não durmo de noite/ não tenho mais medo”, versos de um poema escrito por
volta de 83, época em que ele se queixava de ter caído no ostracismo, e ia
fundo no álcool e outros aditivos.
O Raul
atormentado, que desde criança se preocupava com sua sanidade mental,
embelezou a sua maluquice, e esbanjou criatividade e transgressão. Ele já
teria seu nome entre os grandes da MPB apenas com os primeiros cinco discos:
o citado Krig-ha bandolo, Gita, Novo aéon, Há dez mil anos atrás (estes o
auge da parceria com Paulo Coelho), No dia em que a Terra parou (com um novo
parceiro, Cláudio Roberto).
Daí em
diante, o personagem Raul Seixas domina totalmente Raulzito. Entrada e
saídas de gravadoras fixaram nele a imagem de “artista problema”. Maluco
Beleza, música que lançou no LP No dia em a Terra parou, acabou como seu
segundo nome. Ele seguiu pela vida cada vez mais maluco, e cada vez menos
beleza.
Quando passou
a tocar com Marcelo Nova, com quem lançou seu último disco, A panela do
diabo, no ano de sua morte, ele era, literalmente, uma pálida sombra do que
fora 15 anos antes, uma morte anunciada. O cara com necrológio pronto em
todo jornal e revista. Naquele dia 21 de agosto, ele poderia ter se valido
dos versos de Comet express: “Arrumei a mala/ deixei as perguntas na minha
gaveta/ procurei saber o horário do cometa/ me agarrei em sua cauda/ e fui
morar n’outro planeta”.
(©
JC Online)
Raul Seixas (1945...)
Duas décadas após sua morte, a obra do roqueiro continua influenciando
fãs e artistas
Eduardo de Oliveira
A autorreferência “eu prefiro ser essa metamorfose ambulante” talvez seja o fio
condutor para a produção artística de Raul Seixas e esteja na raiz de qualquer
análise ou explicação para a perenidade da sua obra, que continua a influenciar
fãs e artistas, mesmo após 20 anos da morte do roqueiro.
Nascido em Salvador (BA) no dia 28 de junho de 1945, ainda criança ele já dava
sinais da peculiaridade no seu modo de pensar e agir, o que mais tarde viria a
forjar a sua distinção como artista genial ou render-lhe o rótulo de maluco. Sua
diversão era passar horas devorando livros na vasta biblioteca do pai, a ponto
de criar a sua própria realidade, o seu mundo interior, “mais rico e intenso.”
Aos 9 anos, ele ganhou o primeiro violão e aprendeu sozinho a dedilhar algumas
músicas. A iniciação no rock and roll ocorreu a partir de contatos com colegas
do vizinho Consulado Americano na capital baiana, que lhe apresentaram Little
Richard, Chuck Berry e Elvis Presley, influência decisiva para o início da
carreira musical de Raul.
Nessa época, a música e os pensamentos formulados pelo constante hábito da
leitura dominavam o imaginário do futuro artista, a ponto de ele renegar a
escola, onde, dizia, “não aprendia nada do que queria saber.”
Provocador, anos mais tarde, quando já despontava como cantor, Raul decidiu dar
uma pausa na carreira e se entregar aos estudos tradicionais. Isso só para
passar entre os primeiros numa faculdade de direito – não para se dedicar a uma
nova carreira, mas para provar às pessoas e à família como era “fácil isso de
estudar e passar em exames.”
“O Raul costumava dizer que tinha um desejo muito grande de ser escritor. Mas,
devido ao pouco hábito de leitura do brasileiro, preferiu musicar a sua
filosofia. E ele tinha o enorme talento de sintetizar em quatro ou cinco
estrofes ideias que outros precisariam de 200 páginas para expressar”, afirma
Sylvio Passos, amigo que acompanhou intensamente a última década de vida do
cantor e presidente do Raul Rock Club – fã-clube oficial do artista, fundado em
1981.
Em 1962, Raul criou o seu primeiro grupo musical, Os Relâmpagos do Rock, que
dois anos mais tarde, com nova formação, seria rebatizado como The Panters e,
mais à frente, como Raulzito e Os Panteras. Era dado início a uma carreira
permeada por muitos altos e baixos, incompreensão, intolerância e depressão, que
foi abreviada por graves problemas de saúde.
O início como cantor foi complicado. Depois de figurar com a sua banda como
coadjuvante em shows de astros da Jovem Guarda, Raul conseguiu, ao lado dos
parceiros, gravar o primeiro disco em 1968, o LP Raulzito e Os Panteras. Foi um
fracasso de público e crítica. Na análise do cantor, isso ocorreu porque tocavam
“coisas complicadas.”
Com o percalço, o grupo se dissolveu, o que deixou Raul desiludido. Mas o
convite de um amigo o trouxe de volta ao mundo artístico em 1970, para trabalhar
numa grande gravadora como produtor de discos e compositor para grandes artistas
da época. Em meio à atuação nos bastidores, Raul voltou a brilhar com o projeto
do disco Os 24 maiores sucessos da era do rock (esgotado), que ele produziu e
para o qual gravou algumas músicas, de forma anônima, em 1973.
Nessa mesma época, o cantor deu o grande passo em sua carreira solo, com o
lançamento do compacto Ouro de tolo, com sua crítica à classe média brasileira.
Na sequência, veio o lançamento do primeiro LP, Krig-ha, bandolo! (esgotado),
sucesso absoluto entre a crítica.
Até hoje, esse disco é considerado um referencial na história do rock
brasileiro. Entrou para a seleção feita por Charles Gavin – baterista do Titãs e
ávido pesquisador da música brasileira – no seu livro 300 discos importantes da
música brasileira, lançado no ano passado. “Esse é o melhor disco de Raul. É
importante, porque representa um autêntico disco de rock brasileiro, numa época
em que se falava que não existia rock por aqui. Mesmo sendo o primeiro disco de
Raul, já surgiu bem maduro, com um texto muito avançado. Ele era um visionário,
e o seu trabalho permanece contemporâneo. Basta ver a música Al Capone e o que
acontece hoje no Senado”, alfineta Gavin.
Determinado a mudar o mundo, o roqueiro fundou com o amigo Paulo Coelho a
Sociedade Alternativa, onde a lei deveria ser a total liberdade. Em meio à
repressão da ditadura militar, aquele ideal e a fina ironia das suas letras
musicais eram um atentado contra a ordem vigente, o que obrigou Raul a um breve
exílio nos Estados Unidos em 1974, quando começavam a estourar por aqui sucessos
do seu disco Gita.
De volta ao Brasil no ano seguinte, ele entrou na fase mais efervescente do
processo criativo de sua carreira. Lançou os discos Novo Aeon (esgotado), Há 10 mil anos atrás, Raul Rock Seixas, O dia em que a
Terra parou (esgotado), Mata virgem (esgotado), Por quem os sinos dobram,
Abre-te Sésamo, Raul Seixas, Metrô linha 743,
Uah-Bap-Lu-Bap-Lah-Béin-Bum!, A pedra do Gênesis e
A panela do diabo (em conjunto com Marcelo Nova) entre 1975 e
1989, por diferentes gravadoras.
Emplacou grandes sucessos, marcados pela crítica sarcástica a temas como
censura, ditadura militar e capitalismo, entre outros. Conquistou discos de
ouro, reconhecimento do público e da crítica, lotou shows e festivais e até
lançou o livro As aventuras de Raul Seixas na cidade de Thor, em 1983.
PAI BELEZA
O “Maluco Beleza” para seus fãs era, fora dos palcos, pai carinhoso, atencioso e
divertido. Ele foi casado cinco vezes (duas de papel passado) e teve três
filhas. “Meu pai era muito brincalhão. Bolava as histórias e personagens mais
engraçados, como o Capitão Garfo, que roubava minhas bonecas e as colocava na
geladeira”, lembra Viviane Seixas, que em maio último completou 28 anos. “No
palco, ele era perfeito e seguro. Na vida real e pessoal, como todos nós, teve
suas fraquezas e cometeu erros. O que mais admirava nele era sua coragem de
cantar o que muitos queriam dizer”, complementa.
Mas o problema com a bebida o fazia definhar cada vez mais, padecendo de uma
pancreatite aguda. Então com 44 anos, Raul foi encontrado morto em seu
apartamento na rua Frei Caneca, em São Paulo, no dia 21 de agosto de 1989, em
decorrência de uma parada cardiorrespiratória. Seu corpo foi velado no Palácio
das Convenções do Anhembi, onde foi visitado por milhares de fãs, e enterrado em
sua terra natal.
Nas palavras de Charles Gavin, “Raul Seixas influenciou todos os grandes
pensadores e poetas da música brasileira, roqueiros ou não, como Rita Lee,
Arnaldo Baptista, Tom Zé, Caetano [Veloso], Chico [Buarque] e [Gilberto] Gil.”
“Não haveria rock nos anos 1980 se não fosse por Raul e outros que ele
influenciou. Ele é uma referência eterna, como Bob Dylan ou Lou Reed.”
Expressão da sua própria vida e carreira, a “metamorfose ambulante” de Raul
também se encaixa perfeitamente no modo de vida contemporâneo. Uma realidade
em que a velocidade das transformações, resultado da circulação cada vez
mais frenética das informações, obriga o homem a ser adaptável e maleável, a
estar aberto para novidades, a refletir e questionar ideias preconcebidas.
(©
Revista da Cultura)
Documentário é feito entre busca frenética por imagens de Raul
Seixas
Ricardo Schott
RIO - Mergulhado na vida de Raul Seixas há dois
anos, quando recebeu o convite do produtor paulista Denis Feijão e da AF. Cinema
e Vídeo, do produtor Alain Fresnot, para documentar a vida do roqueiro baiano no
longa O início, o fim e o meio, o cineasta Walter Carvalho corre para
aproximar a data de seu lançamento dos 20 anos de morte do coautor de Gita,
que se completam nesta sexta-feira – sua previsão é de que o filme esteja nos
cinemas no começo do ano que vem. Lidando com um personagem que veio de uma era
pré-DVD e cuja carreira combinava momentos de ultraexposição com períodos de
longos sumiços, Carvalho ainda precisa vencer a barreira do parco material
filmado que há sobre o cantor.
– Estamos inclusive pedindo a quem tiver fotos
ou filmes do Raul em casa que mande para a produtora (www.afcinema.com.br) –
explica Carvalho, acostumado a lidar com os grandes vazios na carreira de Raul.
– Depois de 1983, por exemplo, o Raul ficou muito dependente do álcool e parou
com os shows. É uma era em que quase não se acha nada dele.
Da Bahia aos EUA
O início, o fim e o meio ajuda a
diversificar mais a produção de Carvalho, que se iniciou como assistente de
direção de um documentário dirigido pelo irmão Wladimir, O país de São Saruê
(1971), e que, recentemente, visitou a sofisticação da obra de Chico Buarque em
Budapeste, filme baseado no livro do compositor. Ele explica não ter tido
uma relação de fã com o astro.
– Nos anos 70 eu ouvia mais MPB. Mas não tem
como passar despercebido pelo Raul – afirma o cineasta que, uma vez com a
história nas mãos, tratou de diversificar o assunto, convidando inclusive o
próprio Caetano Veloso, “rival” de Raul e de sua banda Os Panteras, na
polarização rock-bossa da Bahia, nos anos 60. – Procuramos passar por todas as
principais pessoas que tiveram contato com ele, fizemos mais de 90 entrevistas.
Tomando o nome do filme como modelo, as
entrevistas partiram da capital da Bahia, onde Raul nasceu, e seguiram para os
Estados Unidos. Em Salvador, contaram com uma coprodução local, comandada pelo
cineasta Felipe Kowalczuk. Que, além de recuperar um material raro em Super-8 do
cantor (em shows com os Panteras, sua primeira banda, e até em seu primeiro
casamento), pôs-se a correr atrás de personagens históricos para o próprio rock
brasileiro, como o irmão de Raul, Plinio Seixas, e o agitador cultural Waldir
Serrão, conhecido como Big Ben.
– Ele e o irmão começaram juntos, mas o Plínio
desistiu da carreira artística – recorda Kowalczuk, fã de Raul, que se chocou ao
encontrar Serrão. – Ele foi um grande agitador do rock na Bahia e hoje está com
problemas de saúde, pobre, morando no subúrbio. Quando começa a falar, você vê
que ele se transforma imediatamente naquele personagem que era o Big Ben. Fica
um retrato triste de como o Brasil trata seus artistas.
Mentor da Oto fala
Já nos EUA foram procurados a ex-mulher Scarlet
Seixas, que hoje usa o esotérico nome de Sky Keys, a filha dos dois, Scarlet, e
o único neto de Raul, Dakota, de 13 anos; além da filha mais velha, Simone
Seixas e do ex-parceiro e ex-cunhado (irmão de Scarlet) Gay Vaquer, que tocou
guitarra em discos como Krig-Ha Bandolo! (1973) e dividiu algumas
parcerias. Apenas Edith Wisner, primeira mulher do cantor, também americana, não
pôde gravar, por problemas de agenda.
– Para nós foi uma conquista tê-las no filme.
Pouca gente até hoje falou com elas, que são fundamentais para entender o Raul
além do sexo, drogas e rock'n'roll – relata Denis Feijão, que, programando o
roteiro ao lado de Carvalho e do roteirista Leonardo Gudel, adianta surpresas
para quem quer conhecer o lado místico de Raul. – Nós conseguimos encontrar o
mentor do Raul na Oto (Ordo Templi Orientis), uma das sociedades das quais ele
fez parte. Nos anos 70, o Raul promoveu uma espécie de casamento satânico dele
com a Gloria e até fez uma produção em filme, que pode ser vista no YouTube.
Essa faceta dele estará no longa.
No Rio e em São Paulo, lugares dos quais
Carvalho e Gudel cuidaram pessoalmente, foram procurados músicos, amigos,
ex-mulheres (como Kika Seixas e Tania Menna Barreto), produtores e parceiros de
Raul, como Claudio Roberto (letrista com quem dividiu o álbum O dia que a
Terra parou, de 1977, que continha Maluco beleza), Marcelo Nova,
Roberto Menescal e Mazzola (que, atualmente, cuida do lançamento do kit DVD-CD
20 anos sem Raul Seixas, que contém a inédita Gospel).
– O Mazzola falou de um momento emocionante.
Contou sobre quando Raul ganhou uma grana com seu primeiro disco e, para impedir
que ele gastasse tudo, comprou logo um apartamento para ele. Foi a primeira vez
que Raul teve uma casa própria, ele chegou a chorar abraçado ao Mazzola –
recorda Gudel, que, claro, falou também com Paulo Coelho, maior parceiro do
cantor. – Vai ser uma surpresa para os fãs. Nosso objetivo foi traçar uma
genealogia do Raul.
Consultor do filme e amigo de Raul, Sylvio
Passos, presidente do Raul Rock Club (primeiro fã-clube oficial do ídolo), não
esconde: está ansioso para curtir o rock de seu mestre na tela.
– Conseguimos as imagens do Festival de
Saquarema, de junho de 1976, junto ao Nelson Motta, que produziu o evento. Tem
até o Gay Vaquer, que tocava com ele, vestido de diabo – recorda. – O Mazolla
emprestou um Super-8 em que o Raul grava Eu também vou reclamar no
estúdio da Philips (hoje Universal) em 1976. É um clima quase Frank Zappa, o
Raul espalha papel higiênico e cabeças de boneca pela sala, super-anárquico. Mas
o principal do filme nem é esse lado doidão, é o do artista preocupado com o
cidadão e com o futuro.
(©
JB Online)
MULTIMÍDIA
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RAUL SEIXAS (Baú do Raul)
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