Foto: Filipe Redondo/Folha Imagem
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O cineasta Eduardo
Coutinho, 76
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EDUARDO ESCOREL
Não poderia haver filme menos indicado do que Moscou, dirigido
por Eduardo Coutinho, para inaugurar uma seção de crítica de cinema nesta
revista. Sendo amigo e colaborador dele há muitos anos, não posso comentar
seu novo documentário com isenção. Além disso, João Moreira Salles, editor
de piauí, é também produtor de Moscou, o que
agrava a situação e torna aconselhável deixar o filme de lado sob pena de
promover uma ação entre amigos.
Ignorar Moscou por essas razões seria discriminar um cineasta de
notória importância e excluir o filme da reflexão crítica que iniciamos com
esta página. Assumimos, então, os riscos inerentes à falta de isenção, na
tentativa de reviver a prática de uma época em que não havia diferença
nítida entre fazer filmes e escrever sobre cinema.
Se comentar Moscou é arriscado, fazer documentários envolve riscos
ainda maiores. Da concepção ao término de cada projeto, o sentimento
predominante do diretor é de estar à beira do abismo. A incerteza que
permeia a produção, resultante da falta de controle sobre o que ocorre
diante da câmera, pode levar a um acidente fatal, sendo essa
imprevisibilidade, no entanto, um dos principais trunfos desse gênero de
filme. O encanto do documentário está, muitas vezes, no registro de
acontecimentos fortuitos.
No caso de Moscou, o projeto não previa gravar eventos que
ocorreriam de qualquer maneira, independentemente da vontade do realizador e
fora do seu domínio. Coerente com sua filmografia, Coutinho iria propiciar a
situação a ser documentada. Ele escolhe As Três Irmãs, de Tchekhov,
convida o Grupo Galpão para ensaiar e Enrique Diaz para dirigir o ensaio.
Essa proposta de registrar o que seria uma encenação distingue Moscou,
de forma nítida, dos documentários anteriores feitos por Coutinho, de
Santo Forte, de 1999, a Jogo de Cena, de 2007, nos quais
depoimentos são a marca registrada.
O título original do filme, Antes da Estréia, tinha sentido dúbio
para um documentário, considerando que não haveria estréia. O Grupo Galpão e
Enrique Diaz aceitaram o desafio de ensaiar diante da câmera sem o propósito
de vir a encenar As Três Irmãs. O único objetivo do ensaio
fragmentário de trechos da peça era ser gravado.
Até esse momento, tudo é artifício. Coutinho cria o evento e até começar a
gravar mantém relativo controle sobre o processo. Mas, à diferença de um
filme de ficção, o que acontece diante da câmera, em um documentário, é
imprevisível. E na gravação de Moscou, nada aconteceu. Ao contrário
do fio de intriga das peças de Tchekhov, célebres pela dimensão trágica, sem
que a narrativa seja estruturada através do encadeamento de eventos, no
filme a ausência de acontecimentos e conflitos não tem relevância dramática.
Enquanto o texto teatral dá acesso à vida interior das personagens, na
gravação do ensaio foi registrada apenas uma visão externa do elenco.
Tchekhov retrata a impotência de mulheres e homens que desperdiçam a vida.
Moscou mal chega a esboçar atrizes, atores e o diretor teatral,
todos trabalhando em aparente harmonia.
Nostálgicas do paraíso perdido da juventude, as três irmãs de Tchekhov
pensam em voltar para Moscou. Falam em mudar, mas a inércia as imobiliza.
Têm planos grandiosos, mas são incapazes de agir. Vivem dilaceradas entre
ambição e conformismo. Esse mesmo impasse, cerne de As Três Irmãs,
impregna o filme.
Ao propor a encenação, Eduardo Coutinho sabia estar fazendo uma aposta de
risco. Esperava que o confronto das personalidades envolvidas no ensaio
fizesse surgir algo que pudesse documentar. Mas gravou cerca de oi-tenta
horas, com duas câmeras, e nada de interessante ocorreu. Influiu nesse
resultado, sem dúvida, a aparente falta de engajamento radical das atrizes e
dos atores, apesar de advertidos, logo no início, de que não poderiam "ficar
só brincando". Mais decisiva ainda foi a omissão deliberada do próprio
Coutinho. Desde o início, embora decepcionado com o resultado dos ensaios,
deixou de intervir e redirecionar o projeto.
O método de Coutinho, desde Cabra Marcado para Morrer, de 1984,
sempre foi estabelecer uma relação intensa com pessoas que têm o desejo
represado de serem ouvidas e de terem seus depoimentos registrados.
Revelando uma insuspeitada empatia com homens e mulheres cuidadosamente
pré-selecionados, ele propiciou algumas grandes atuações em que, através de
seus relatos, os entrevistados compuseram personagens inesquecíveis. A
interação entre as pessoas filmadas e o diretor é o princípio definidor
desses filmes.
Ao abandonar esse procedimento, Coutinho se acomodou no lugar de espectador
privilegiado da ação e incorporou o conformismo das personagens de Tchekhov.
Coutinho é o grande ausente de Moscou. Aparece, é verdade, no
começo, dando algumas orientações para as atrizes e os atores. Sua voz
também é ouvida duas vezes. A primeira é uma intervenção episódica que tenta
suprir lacunas da narrativa. A outra encerra o filme.
Abdicando da posição de principal interlocutor, Coutinho abriu mão do
dispositivo que dominara, sem ter formulado outro para lhe servir de baliza.
Em Moscou, a câmera se limita a observar à distância. Apenas em
alguns momentos, as atrizes e os atores se voltam diretamente para a lente,
mas nunca estabelecem contato visual com o diretor. O olhar distanciado que
predomina é decisivo para a incômoda sensação de alheamento que permeia o
filme.
Tendo sido capaz de se reinventar como documentarista em Santo Forte,
Coutinho tentou redefinir outra vez os parâmetros de seus documentários
fazendo Moscou. Nenhuma ambição é maior que esse compromisso de
reinvenção periódica assumido por ele.
Transformado à revelia em entidade sagrada, sempre haverá alguém disposto a
dizer que um novo filme de Coutinho é uma obra-prima. No recente festival de
Paulínia, por exemplo, Moscou recebeu o prêmio da crítica. Louvores como
esses podem expressar apenas veneração ou condescendência. Não contribuem em
nada para o esforço que ele tem feito de não se deixar aprisionar por
fórmulas bem-sucedidas.
Quando termina um filme e chega o momento de propor outro projeto, Coutinho
nunca sabe o que fazer. Custa a se definir e só encaminha uma nova proposta
com relutância. Levando em conta seu permanente
estado de dúvida e o compromisso de renovação periódica que se impôs, além
do risco próprio a todo documentário, é natural que nem sempre seus filmes
estejam à altura dos mais notáveis que já fez. O que merece louvor é sua
trajetória, feita de erros e acertos, na qual põe em questão seus próprios
procedimentos.
No último plano de Moscou, ouve-se a voz de Coutinho lendo as
palavras finais de Olga, uma das três irmãs. A frase dela, dita por ele, é:
"Nossa vida ainda não terminou. Nós viveremos!" É um momento raro na obra de
Coutinho em que ele deixa entrever um sentimento pessoal. Parece fazer um
apelo a favor da continuidade da vida; mas ele não se deixa levar e sua voz
fenece antes de chegar a ler a exclamação final do texto de Tchekhov em que
Olga diz: "Se pudéssemos saber, se pudéssemos saber!" O filme acaba pouco
antes de As Três Irmãs. Terminado o ensaio, ouve-se apenas o
vozerio do elenco. A encenação chega ao fim. A vida continua e aguardamos
novos e surpreendentes filmes de Eduardo Coutinho.
"Moscou" vira pesadelo de Coutinho

Diretor levou cinco meses para montar seu novo filme, processo mais longo
de sua carreira
Longe de ser "making of", documentário traz ensaios de peça de Tchekhov pelo
Grupo Galpão, onde atores misturam suas memórias
FERNANDA EZABELLA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Às 2h da manhã, o relógio de pulso de Eduardo Coutinho dispara o alarme, todos
os dias.
O Casio digital com pulseira de borracha está assim ajustado, e ele não tem
ideia de como mudá-lo. A pouca intimidade tecnológica mantém, dessa forma, o
diretor distante de internet e celulares. Nunca viu YouTube.
Apesar de até considerar aprender a mexer num computador, viver assim não
atrapalha a rotina de Coutinho, um dos mais renomados documentaristas
brasileiros, realizador de sete filmes apenas nos últimos dez anos, incluindo
"Santo Forte" (1999) e "Peões" (2004).
Problema mesmo foi "Moscou", no qual filmou os ensaios de uma peça de
Tchekhov pelo Grupo Galpão, com o diretor convidado Enrique Diaz. Coutinho diz
que pensou em parar de fazer cinema. Foi seu filme mais difícil, embora também o
mais elaborado visualmente.
Enquanto o relógio de pulso é ajustado com ajuda da reportagem da Folha,
em meio a uma entrevista, Coutinho lembra do sofrimento das gravações e dos
cinco meses de montagem, a mais longa de sua carreira, que fez o filme passar de
quatro horas para 80 minutos.
"Se eu faço um filme, gasto dinheiro, filmo 120 horas, e eu não encontro um
filme, não dá.
Eu sou um velho reduzido a fraldas. Acabou, entendeu?", diz Coutinho, 76.
"Foi uma crise realmente muito forte." Ao longo da entrevista, porém, surgem
novas ideias.
"Queria fazer um filme que só tivesse citações [...] Podem ser citações de
jornal [...], de uma portaria proibindo o cigarro", diz, segurando um dos sete
cigarros fumados em 1h30.
"Mas não quero que ninguém conte a vida pra mim", insiste Coutinho, que ficou
famoso pelas técnicas de entrevista. "Não posso voltar para trás. Estou tentando
sair para outra coisa. Mas não é dogma."
De fato, esse movimento em busca do novo já começou em "Jogo de Cena" (2007),
seu trabalho anterior, no qual atrizes interpretam histórias de mulheres comuns,
num palco de teatro. Em "Moscou", as histórias são substituídas pela peça "As
Três Irmãs", na qual as protagonistas sonham em voltar à capital russa. Os
atores misturam suas memórias e experiências ao texto, dificultando diferenciar
a vida da ficção.
"Eu não sei até hoje o que é verdade", diz o diretor sobre os exercícios nos
quais os atores falavam sobre imagens ou pessoas registradas em fotografias.
"Não trabalho no Google, graças a Deus. O Google não sabe qual é a verdade."
Nada de "making of"
Coutinho não dirigiu ninguém, pela primeira vez na carreira. E mal dava
palpites. "Estava na mão dos outros, entende? É uma sensação estranha." Ele
apenas propôs a empreitada ao Galpão, que topou mesmo sem saber que peça
encenaria.
E ambos convidaram Diaz, diretor da Cia. dos Atores, que só tinha 18 dias
úteis para os ensaios de uma peça de três horas, quando o normal são meses.
Houve também conflitos internos, mas todos civilizados, explica. O clima
tenso, no entanto, não respinga no filme, que é muito mais um registro poético
de atores trabalhando.
"Queria evitar pra burro o [estilo de filme de] "making of".
Nossas conversas [com diretor e atores] eram um troço tão deliberado e tão
frio, que não me interessaram. Você sentiu falta?", pergunta o diretor,
emendando: "Já ouvi pessoas reclamando, "ah, tinha que ter mais o processo, mais
o Kiki [Diaz]".
Bom, não tem. Foi uma decisão difícil, mas não me arrependo." É justamente do
improviso que vem sua cena favorita, a mais longa do filme, com seis minutos.
Após o fim de um ensaio, o elenco debanda, mas uma atriz começa a chorar ao se
sentar numa mesa. Suas colegas se aproximam, uma dá um copo de água, diz uma
frase do texto, como se mantivesse o ensaio, e, por fim, uma atriz entoa o hino
de Divinópolis (MG).
"Daí você me pergunta, "o que tem a ver com Tchekhov?" Pouco importa. Tudo
pode."
Cenas como essa, incluindo uma coreografia às escuras ao som de Roberto
Carlos e isqueiros, dão uma plasticidade a "Moscou" nunca vista nos filmes de
Coutinho, mais centrados na oralidade. Teria então o diretor se rendido à
beleza, palavra que tanto evita? "Talvez", diz. "São coisas, que você chama de
beleza, muito mais devidas ao trabalho dos próprios atores, que criaram as
coreografias, e do Enrique e do Jack [Cheuiche, iluminador]."
A ligação com a classe teatral vem de bem antes de "Jogo de Cena". Coutinho
conta que assistiu a peças por 30 anos, mas abandonou tudo no final dos anos 70.
"Acho que por causa do cigarro e de outras neuroses", diz o fumante há 50 anos.
Mês passado, o tabaco foi motivo de outro inferno na vida do diretor, que foi à
retrospectiva de sua obra no Museu de Arte Moderna de Nova York.
MOSCOU
Direção: Eduardo Coutinho
Produção: Brasil, 2009
(©
Folha de S. Paulo)
Comentário
Longa é fiel ao espírito da peça de Tchekhov
BERNARDO CARVALHO
ESPECIAL PARA A FOLHA
É inevitável a comparação de "Moscou", de Eduardo Coutinho, com dois outros
filmes: "Jogo de Cena", do próprio cineasta -não apenas por ser seu documentário
anterior e, devido a sua repercussão, fonte natural de expectativa quanto aos
projetos subsequentes do diretor, mas por também tratar de teatro-, e "Tio Vânia
na Rua 42", de Louis Malle, que também representa o ensaio de uma peça de
Tchekhov.
Em ambos os casos, "Moscou" corre o risco de sair perdendo, numa visão
apressada. O filme não almeja nem as surpresas teatrais de "Jogo de Cena" nem a
precisão e a sutileza interpretativa de Malle. O surpreendente no longa é de
outra ordem, menos evidente. E vem de uma analogia entre o projeto desse
documentário e o entrecho da peça ensaiada, ambos fadados a um tipo de fracasso
que é ao mesmo tempo a sua redenção e a sua beleza.
Apaixonado por "As Três Irmãs", de Tchekhov, o cineasta propôs a Enrique
Diaz, um dos diretores mais originais do teatro brasileiro contemporâneo,
trabalhar a peça com os atores do grupo Galpão, de Belo Horizonte. Em nenhum
momento a proposta visava à montagem integral da peça, o que seria impossível em
três semanas (tempo de duração das filmagens). A ideia era documentar os ensaios
de uma peça que nunca estrearia. Essa situação -de um ensaio que não é ensaio,
fingindo ser (a obra como o esforço de realização de uma obra que, já se sabe,
não se realizará)- põe o filme em sintonia com o drama dos personagens diante da
irrealização.
A peça conta a história de três irmãs e um irmão numa cidade de província,
depois da morte do pai militar, tendo que lidar com a consciência progressiva da
irrealidade de seus sonhos (voltar para Moscou, alcançar sucesso no amor e na
vida profissional etc.), enredados na realidade medíocre e irreversível que os
cerca e à qual tentaram em vão escapar.
Uma vez filmados, os métodos de ensaio do Grupo Galpão sob a direção de Diaz
(incorporação da experiência e das histórias pessoais dos atores à construção
dos personagens) parecem querer repetir os efeitos e os jogos de cena do
documentário precedente de Coutinho, num tom menor, o que poderia dar a
impressão de inércia e diluição. Mas a ambiguidade entre ficção e realidade já
não é o centro das atenções.
Os atores podem trazer fotos pessoais, às quais se referem com nostalgia,
como se fossem personagens. Um deles pode falar de Moscou, empunhando uma foto
da cidade de sua infância, ao que tudo indica no interior de Minas. Outro pode
se referir ao filho recém-nascido, diante da foto do próprio pai, como se fosse
o personagem anunciando o nascimento do filho ao pai morto. Mas o principal não
é a confusão entre a experiência pessoal dos atores e os personagens. Para quem
está acostumado aos laboratórios de grupos teatrais contemporâneos, seria
demasiado trivial.
"Moscou" cria uma analogia entre o projeto do filme e a sensação de vida
(in)acabada dos personagens. Assim como a vida na província, o fracasso e a
frustração, o esquecimento e o sentimento de não poder ir a lugar nenhum fazem
deles, por oposição, personagens dramaticamente realizados e universais, é por
meio de um projeto que nunca chegará a termo, um ensaio que nunca se realizará
em uma montagem, que Coutinho arranca da peça o seu sentido. E, na irrealização
deliberada do filme, representação de um processo que não terá fim nem
conclusão, realiza o drama de um dos maiores textos do teatro universal.
BERNARDO CARVALHO é escritor, autor de "O Filho da Mãe"
(Companhia das Letras)
(©
Folha de S. Paulo)
Em Coutinho como
Tchecov
Cineasta
brasileiro se inspira no escritor russo para, num filme-ensaio, refletir
sobre o cinema, o teatro e o jogo da realidade encenada
Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com
Poder acompanhar
a construção lenta e gradual da obra de um autor continua sendo uma das
melhores coisas da arte. No caso de Eduardo Coutinho, seu cinema (Cabra
marcado para morrer, Santo forte, Babilônia 2000) firmou-se como o cinema
brasileiro do registro, forçosamente rotulado de “documentário”.
Recentemente, partiu para ensaios filmados que parecem questionar sua
própria herança autoral. Isso nos leva ao curioso fracasso que talvez seja
Moscou (Brasil, 2009), seu novo filme.
A
possibilidade de Moscou ser uma falha não deve ser entendida como a de um
fracasso comum. Não trata-se de um documentário objetivo que nada acrescenta
à obra do realizador, ou que resvala para o ‘nada a declarar’ como discurso.
Eduardo Coutinho parece estar além disso, como se à procura de uma busca.
Na verdade,
se cada filme (ou obra) é uma busca, às vezes é importante registrar a
busca, ou a tentativa, como o próprio filme. É um conceito que esse autor já
vinha desenvolvendo a cada novo trabalho. Dessa vez, no entanto, ele
documenta o processo de uma obra que não acontece.
Durante a
projeção de Moscou, Coutinho parece estar nos trazendo uma caixa não com um
filme dentro, mas com um paralelepípedo de dez quilos. E nos pede ansioso
que olhemos para a pedra que ele achou na sua procura.
Se em
Edifício Master (2003) ele traçava um panorama humano confinado às linhas
arquitetônicas de um prédio, em Moscou ele parece despir-se dos personagens
para investigar a arquitetura dramática de uma encenação pobre. Vaga sem
pistas pela sua pesquisa num filme composto por imagens de um jogral mal
filmado em planos estéreis.
Logo, o
exercício de Moscou ficará restrito a um jogo puramente intelectual. É a
estréia de Coutinho no exercício cerebral monótono e fora de controle, uma
lombra bem mais atraente finda a sessão do que ao longo da mesma. Atraente
pois um dos nossos grandes autores está livre para experimentar, e solto
para tentar se entender, mesmo que a sua busca seja de interesse restrito
para os muito poucos que tiverem a paciência.
Isso pode
soar como um ponto positivo para alguns, mas certamente deve ser algum tipo
de pesadelo momentâneo para esse autor dotado do talento para a clareza
inteligente no filmar. Exigir paciência a partir de um exercício brechtiano
sem frescor como esse é sensação frustrante na obra de alcance normalmente
bem maior que é a obra de Eduardo Coutinho.
A aridez de
Moscou para com as figuras que o habitam chama a atenção. No conjunto da
obra, o filme é coerente com o anterior, Jogo de cena (2007), já uma
reflexão sobre realismo e drama encenado, usando o teatro não apenas de
maneira literal (palco, cortina, coxia), mas no seu sentido mais figurativo
(a de uma mentira gerada, como o cinema também é).
Coutinho
utiliza mais uma vez o procedimento de atores (Grupo Galpão, de Belo
Horizonte) interpretando eles mesmos, e também personagens, nesse caso os de
As três irmãs, de Anton Tchecov. O texto de 1901 é um dos mais fascinantes
momentos do dramaturgo russo. A escolha de As três irmãs talvez seja
sugestiva para conhecedores do trabalho de Coutinho. É sempre um enigma
tentar enxergar o homem que faz os filmes, mas o texto de Tchecov deixa um
sabor forte e duradouro de passagem do tempo, da satisfação inalcançável e
uma ânsia de ser lembrado num futuro distante. Isso é abraçado com força em
determinado momento na voz rouca de Coutinho sumindo em direção ao silêncio.
Já na casa
dos 70, o cineasta inspirou em muitos a sensação de estar deixando seu
réquiem quando do lançamento de O fim e o princípio, em 2005. A sensação
volta a rondar Moscou. Naquele outro filme, ele conversava com idosos numa
pequena comunidade do interior da Paraíba. Foi um filme de transição e de
impasse, apontado por alguns como a repetição de um mesmo procedimento.
Em O fim e o
princípio, Coutinho parecia flertar com a obra de Lars Von Trier em Dogville
(2003). Um mapa emotivo da comunidade sertaneja seguia o mesmo tipo de
design do mapa da comunidade no filme do cineasta dinamarquês, e agora é
impossível não lembrar em Moscou da encenação de Von Trier via Brecht em
Dogville e em Manderlay (2005).
A citação a
Von Trier é útil ainda no sentido de trazer Coutinho para um trio de autores
(Von Trier com Anticristo, Quentin Tarantino com Bastardos inglórios) do
cinema que acabam de apresentar obras incomuns que podem ser vistas como
fracassos especialíssimos que deixam cada um dos autores em encruzilhadas
criativas que inspiram mais otimismo do que pessimismo.
No caso de
Moscou, há um momento representativo na apresentação dos atores no início do
filme. Temos a presença não só do diretor da peça, Enrique Dias, mas do
próprio Coutinho, que parece estar substituindo Tchecov à mesa. Nesse
encontro inicial, todos parecem estar indo a algum lugar. No final,
suspeita-se que apenas Coutinho foi, saindo ileso de uma experiência que não
deu certo, exceto pela pedra que disso resultou.
(©
JC Online)