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Eduardo Coutinho não sabe o que fazer

22/09/2009

 

 

Foto: Filipe Redondo/Folha Imagem
O cineasta Eduardo Coutinho, 76
 

EDUARDO ESCOREL

Não poderia haver filme menos indicado do que Moscou, dirigido por Eduardo Coutinho, para inaugurar uma seção de crítica de cinema nesta revista. Sendo amigo e colaborador dele há muitos anos, não posso comentar seu novo documentário com isenção. Além disso, João Moreira Salles, editor de piauí, é também produtor de Moscou, o que agrava a situação e torna aconselhável deixar o filme de lado sob pena de promover uma ação entre amigos.

Ignorar Moscou por essas razões seria discriminar um cineasta de notória importância e excluir o filme da reflexão crítica que iniciamos com esta página. Assumimos, então, os riscos inerentes à falta de isenção, na tentativa de reviver a prática de uma época em que não havia diferença nítida entre fazer filmes e escrever sobre cinema.

Se comentar Moscou é arriscado, fazer documentários envolve riscos ainda maiores. Da concepção ao término de cada projeto, o sentimento predominante do diretor é de estar à beira do abismo. A incerteza que permeia a produção, resultante da falta de controle sobre o que ocorre diante da câmera, pode levar a um acidente fatal, sendo essa imprevisibilidade, no entanto, um dos principais trunfos desse gênero de filme. O encanto do documentário está, muitas vezes, no registro de acontecimentos fortuitos.

No caso de Moscou, o projeto não previa gravar eventos que ocorreriam de qualquer maneira, independentemente da vontade do realizador e fora do seu domínio. Coerente com sua filmografia, Coutinho iria propiciar a situação a ser documentada. Ele escolhe As Três Irmãs, de Tchekhov, convida o Grupo Galpão para ensaiar e Enrique Diaz para dirigir o ensaio. Essa proposta de registrar o que seria uma encenação distingue Moscou, de forma nítida, dos documentários anteriores feitos por Coutinho, de Santo Forte, de 1999, a Jogo de Cena, de 2007, nos quais depoimentos são a marca registrada.

O título original do filme, Antes da Estréia, tinha sentido dúbio para um documentário, considerando que não haveria estréia. O Grupo Galpão e Enrique Diaz aceitaram o desafio de ensaiar diante da câmera sem o propósito de vir a encenar As Três Irmãs. O único objetivo do ensaio fragmentário de trechos da peça era ser gravado.

Até esse momento, tudo é artifício. Coutinho cria o evento e até começar a gravar mantém relativo controle sobre o processo. Mas, à diferença de um filme de ficção, o que acontece diante da câmera, em um documentário, é imprevisível. E na gravação de Moscou, nada aconteceu. Ao contrário do fio de intriga das peças de Tchekhov, célebres pela dimensão trágica, sem que a narrativa seja estruturada através do encadeamento de eventos, no filme a ausência de acontecimentos e conflitos não tem relevância dramática. Enquanto o texto teatral dá acesso à vida interior das personagens, na gravação do ensaio foi registrada apenas uma visão externa do elenco. Tchekhov retrata a impotência de mulheres e homens que desperdiçam a vida. Moscou mal chega a esboçar atrizes, atores e o diretor teatral, todos trabalhando em aparente harmonia.

Nostálgicas do paraíso perdido da juventude, as três irmãs de Tchekhov pensam em voltar para Moscou. Falam em mudar, mas a inércia as imobiliza. Têm planos grandiosos, mas são incapazes de agir. Vivem dilaceradas entre ambição e conformismo. Esse mesmo impasse, cerne de As Três Irmãs, impregna o filme.

Ao propor a encenação, Eduardo Coutinho sabia estar fazendo uma aposta de risco. Esperava que o confronto das personalidades envolvidas no ensaio fizesse surgir algo que pudesse documentar. Mas gravou cerca de oi-tenta horas, com duas câmeras, e nada de interessante ocorreu. Influiu nesse resultado, sem dúvida, a aparente falta de engajamento radical das atrizes e dos atores, apesar de advertidos, logo no início, de que não poderiam "ficar só brincando". Mais decisiva ainda foi a omissão deliberada do próprio Coutinho. Desde o início, embora decepcionado com o resultado dos ensaios, deixou de intervir e redirecionar o projeto.

O método de Coutinho, desde Cabra Marcado para Morrer, de 1984, sempre foi estabelecer uma relação intensa com pessoas que têm o desejo represado de serem ouvidas e de terem seus depoimentos registrados. Revelando uma insuspeitada empatia com homens e mulheres cuidadosamente pré-selecionados, ele propiciou algumas grandes atuações em que, através de seus relatos, os entrevistados compuseram personagens inesquecíveis. A interação entre as pessoas filmadas e o diretor é o princípio definidor desses filmes.

Ao abandonar esse procedimento, Coutinho se acomodou no lugar de espectador privilegiado da ação e incorporou o conformismo das personagens de Tchekhov. Coutinho é o grande ausente de Moscou. Aparece, é verdade, no começo, dando algumas orientações para as atrizes e os atores. Sua voz também é ouvida duas vezes. A primeira é uma intervenção episódica que tenta suprir lacunas da narrativa. A outra encerra o filme.

Abdicando da posição de principal interlocutor, Coutinho abriu mão do dispositivo que dominara, sem ter formulado outro para lhe servir de baliza. Em Moscou, a câmera se limita a observar à distância. Apenas em alguns momentos, as atrizes e os atores se voltam diretamente para a lente, mas nunca estabelecem contato visual com o diretor. O olhar distanciado que predomina é decisivo para a incômoda sensação de alheamento que permeia o filme.

Tendo sido capaz de se reinventar como documentarista em Santo Forte, Coutinho tentou redefinir outra vez os parâmetros de seus documentários fazendo Moscou. Nenhuma ambição é maior que esse compromisso de reinvenção periódica assumido por ele.

Transformado à revelia em entidade sagrada, sempre haverá alguém disposto a dizer que um novo filme de Coutinho é uma obra-prima. No recente festival de Paulínia, por exemplo, Moscou recebeu o prêmio da crítica. Louvores como esses podem expressar apenas veneração ou condescendência. Não contribuem em nada para o esforço que ele tem feito de não se deixar aprisionar por fórmulas bem-sucedidas.

Quando termina um filme e chega o momento de propor outro projeto, Coutinho nunca sabe o que fazer. Custa a se definir e só encaminha uma nova proposta com relutância. Levando em conta seu permanente estado de dúvida e o compromisso de renovação periódica que se impôs, além do risco próprio a todo documentário, é natural que nem sempre seus filmes estejam à altura dos mais notáveis que já fez. O que merece louvor é sua trajetória, feita de erros e acertos, na qual põe em questão seus próprios procedimentos.

No último plano de Moscou, ouve-se a voz de Coutinho lendo as palavras finais de Olga, uma das três irmãs. A frase dela, dita por ele, é: "Nossa vida ainda não terminou. Nós viveremos!" É um momento raro na obra de Coutinho em que ele deixa entrever um sentimento pessoal. Parece fazer um apelo a favor da continuidade da vida; mas ele não se deixa levar e sua voz fenece antes de chegar a ler a exclamação final do texto de Tchekhov em que Olga diz: "Se pudéssemos saber, se pudéssemos saber!" O filme acaba pouco antes de As Três Irmãs. Terminado o ensaio, ouve-se apenas o vozerio do elenco. A encenação chega ao fim. A vida continua e aguardamos novos e surpreendentes filmes de Eduardo Coutinho. 

(© Revista Piauí)

 


"Moscou" vira pesadelo de Coutinho

Diretor levou cinco meses para montar seu novo filme, processo mais longo de sua carreira

Longe de ser "making of", documentário traz ensaios de peça de Tchekhov pelo Grupo Galpão, onde atores misturam suas memórias  

FERNANDA EZABELLA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Às 2h da manhã, o relógio de pulso de Eduardo Coutinho dispara o alarme, todos os dias.

O Casio digital com pulseira de borracha está assim ajustado, e ele não tem ideia de como mudá-lo. A pouca intimidade tecnológica mantém, dessa forma, o diretor distante de internet e celulares. Nunca viu YouTube.

Apesar de até considerar aprender a mexer num computador, viver assim não atrapalha a rotina de Coutinho, um dos mais renomados documentaristas brasileiros, realizador de sete filmes apenas nos últimos dez anos, incluindo "Santo Forte" (1999) e "Peões" (2004).

Problema mesmo foi "Moscou", no qual filmou os ensaios de uma peça de Tchekhov pelo Grupo Galpão, com o diretor convidado Enrique Diaz. Coutinho diz que pensou em parar de fazer cinema. Foi seu filme mais difícil, embora também o mais elaborado visualmente.

Enquanto o relógio de pulso é ajustado com ajuda da reportagem da Folha, em meio a uma entrevista, Coutinho lembra do sofrimento das gravações e dos cinco meses de montagem, a mais longa de sua carreira, que fez o filme passar de quatro horas para 80 minutos.

"Se eu faço um filme, gasto dinheiro, filmo 120 horas, e eu não encontro um filme, não dá.

Eu sou um velho reduzido a fraldas. Acabou, entendeu?", diz Coutinho, 76. "Foi uma crise realmente muito forte." Ao longo da entrevista, porém, surgem novas ideias.

"Queria fazer um filme que só tivesse citações [...] Podem ser citações de jornal [...], de uma portaria proibindo o cigarro", diz, segurando um dos sete cigarros fumados em 1h30.

"Mas não quero que ninguém conte a vida pra mim", insiste Coutinho, que ficou famoso pelas técnicas de entrevista. "Não posso voltar para trás. Estou tentando sair para outra coisa. Mas não é dogma."

De fato, esse movimento em busca do novo já começou em "Jogo de Cena" (2007), seu trabalho anterior, no qual atrizes interpretam histórias de mulheres comuns, num palco de teatro. Em "Moscou", as histórias são substituídas pela peça "As Três Irmãs", na qual as protagonistas sonham em voltar à capital russa. Os atores misturam suas memórias e experiências ao texto, dificultando diferenciar a vida da ficção.

"Eu não sei até hoje o que é verdade", diz o diretor sobre os exercícios nos quais os atores falavam sobre imagens ou pessoas registradas em fotografias.

"Não trabalho no Google, graças a Deus. O Google não sabe qual é a verdade."

Nada de "making of"

Coutinho não dirigiu ninguém, pela primeira vez na carreira. E mal dava palpites. "Estava na mão dos outros, entende? É uma sensação estranha." Ele apenas propôs a empreitada ao Galpão, que topou mesmo sem saber que peça encenaria.

E ambos convidaram Diaz, diretor da Cia. dos Atores, que só tinha 18 dias úteis para os ensaios de uma peça de três horas, quando o normal são meses.

Houve também conflitos internos, mas todos civilizados, explica. O clima tenso, no entanto, não respinga no filme, que é muito mais um registro poético de atores trabalhando.
"Queria evitar pra burro o [estilo de filme de] "making of".

Nossas conversas [com diretor e atores] eram um troço tão deliberado e tão frio, que não me interessaram. Você sentiu falta?", pergunta o diretor, emendando: "Já ouvi pessoas reclamando, "ah, tinha que ter mais o processo, mais o Kiki [Diaz]".

Bom, não tem. Foi uma decisão difícil, mas não me arrependo." É justamente do improviso que vem sua cena favorita, a mais longa do filme, com seis minutos. Após o fim de um ensaio, o elenco debanda, mas uma atriz começa a chorar ao se sentar numa mesa. Suas colegas se aproximam, uma dá um copo de água, diz uma frase do texto, como se mantivesse o ensaio, e, por fim, uma atriz entoa o hino de Divinópolis (MG).

"Daí você me pergunta, "o que tem a ver com Tchekhov?" Pouco importa. Tudo pode."

Cenas como essa, incluindo uma coreografia às escuras ao som de Roberto Carlos e isqueiros, dão uma plasticidade a "Moscou" nunca vista nos filmes de Coutinho, mais centrados na oralidade. Teria então o diretor se rendido à beleza, palavra que tanto evita? "Talvez", diz. "São coisas, que você chama de beleza, muito mais devidas ao trabalho dos próprios atores, que criaram as coreografias, e do Enrique e do Jack [Cheuiche, iluminador]."

A ligação com a classe teatral vem de bem antes de "Jogo de Cena". Coutinho conta que assistiu a peças por 30 anos, mas abandonou tudo no final dos anos 70. "Acho que por causa do cigarro e de outras neuroses", diz o fumante há 50 anos. Mês passado, o tabaco foi motivo de outro inferno na vida do diretor, que foi à retrospectiva de sua obra no Museu de Arte Moderna de Nova York.

MOSCOU
Direção: Eduardo Coutinho
Produção: Brasil, 2009

(© Folha de S. Paulo)


Comentário

Longa é fiel ao espírito da peça de Tchekhov

BERNARDO CARVALHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

É inevitável a comparação de "Moscou", de Eduardo Coutinho, com dois outros filmes: "Jogo de Cena", do próprio cineasta -não apenas por ser seu documentário anterior e, devido a sua repercussão, fonte natural de expectativa quanto aos projetos subsequentes do diretor, mas por também tratar de teatro-, e "Tio Vânia na Rua 42", de Louis Malle, que também representa o ensaio de uma peça de Tchekhov.

Em ambos os casos, "Moscou" corre o risco de sair perdendo, numa visão apressada. O filme não almeja nem as surpresas teatrais de "Jogo de Cena" nem a precisão e a sutileza interpretativa de Malle. O surpreendente no longa é de outra ordem, menos evidente. E vem de uma analogia entre o projeto desse documentário e o entrecho da peça ensaiada, ambos fadados a um tipo de fracasso que é ao mesmo tempo a sua redenção e a sua beleza.

Apaixonado por "As Três Irmãs", de Tchekhov, o cineasta propôs a Enrique Diaz, um dos diretores mais originais do teatro brasileiro contemporâneo, trabalhar a peça com os atores do grupo Galpão, de Belo Horizonte. Em nenhum momento a proposta visava à montagem integral da peça, o que seria impossível em três semanas (tempo de duração das filmagens). A ideia era documentar os ensaios de uma peça que nunca estrearia. Essa situação -de um ensaio que não é ensaio, fingindo ser (a obra como o esforço de realização de uma obra que, já se sabe, não se realizará)- põe o filme em sintonia com o drama dos personagens diante da irrealização.

A peça conta a história de três irmãs e um irmão numa cidade de província, depois da morte do pai militar, tendo que lidar com a consciência progressiva da irrealidade de seus sonhos (voltar para Moscou, alcançar sucesso no amor e na vida profissional etc.), enredados na realidade medíocre e irreversível que os cerca e à qual tentaram em vão escapar.

Uma vez filmados, os métodos de ensaio do Grupo Galpão sob a direção de Diaz (incorporação da experiência e das histórias pessoais dos atores à construção dos personagens) parecem querer repetir os efeitos e os jogos de cena do documentário precedente de Coutinho, num tom menor, o que poderia dar a impressão de inércia e diluição. Mas a ambiguidade entre ficção e realidade já não é o centro das atenções.

Os atores podem trazer fotos pessoais, às quais se referem com nostalgia, como se fossem personagens. Um deles pode falar de Moscou, empunhando uma foto da cidade de sua infância, ao que tudo indica no interior de Minas. Outro pode se referir ao filho recém-nascido, diante da foto do próprio pai, como se fosse o personagem anunciando o nascimento do filho ao pai morto. Mas o principal não é a confusão entre a experiência pessoal dos atores e os personagens. Para quem está acostumado aos laboratórios de grupos teatrais contemporâneos, seria demasiado trivial.

"Moscou" cria uma analogia entre o projeto do filme e a sensação de vida (in)acabada dos personagens. Assim como a vida na província, o fracasso e a frustração, o esquecimento e o sentimento de não poder ir a lugar nenhum fazem deles, por oposição, personagens dramaticamente realizados e universais, é por meio de um projeto que nunca chegará a termo, um ensaio que nunca se realizará em uma montagem, que Coutinho arranca da peça o seu sentido. E, na irrealização deliberada do filme, representação de um processo que não terá fim nem conclusão, realiza o drama de um dos maiores textos do teatro universal.

BERNARDO CARVALHO é escritor, autor de "O Filho da Mãe" (Companhia das Letras)

(© Folha de S. Paulo)


Em Coutinho como Tchecov

Cineasta brasileiro se inspira no escritor russo para, num filme-ensaio, refletir sobre o cinema, o teatro e o jogo da realidade encenada

Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com

Poder acompanhar a construção lenta e gradual da obra de um autor continua sendo uma das melhores coisas da arte. No caso de Eduardo Coutinho, seu cinema (Cabra marcado para morrer, Santo forte, Babilônia 2000) firmou-se como o cinema brasileiro do registro, forçosamente rotulado de “documentário”. Recentemente, partiu para ensaios filmados que parecem questionar sua própria herança autoral. Isso nos leva ao curioso fracasso que talvez seja Moscou (Brasil, 2009), seu novo filme.

A possibilidade de Moscou ser uma falha não deve ser entendida como a de um fracasso comum. Não trata-se de um documentário objetivo que nada acrescenta à obra do realizador, ou que resvala para o ‘nada a declarar’ como discurso. Eduardo Coutinho parece estar além disso, como se à procura de uma busca.

Na verdade, se cada filme (ou obra) é uma busca, às vezes é importante registrar a busca, ou a tentativa, como o próprio filme. É um conceito que esse autor já vinha desenvolvendo a cada novo trabalho. Dessa vez, no entanto, ele documenta o processo de uma obra que não acontece.

Durante a projeção de Moscou, Coutinho parece estar nos trazendo uma caixa não com um filme dentro, mas com um paralelepípedo de dez quilos. E nos pede ansioso que olhemos para a pedra que ele achou na sua procura.

Se em Edifício Master (2003) ele traçava um panorama humano confinado às linhas arquitetônicas de um prédio, em Moscou ele parece despir-se dos personagens para investigar a arquitetura dramática de uma encenação pobre. Vaga sem pistas pela sua pesquisa num filme composto por imagens de um jogral mal filmado em planos estéreis.

Logo, o exercício de Moscou ficará restrito a um jogo puramente intelectual. É a estréia de Coutinho no exercício cerebral monótono e fora de controle, uma lombra bem mais atraente finda a sessão do que ao longo da mesma. Atraente pois um dos nossos grandes autores está livre para experimentar, e solto para tentar se entender, mesmo que a sua busca seja de interesse restrito para os muito poucos que tiverem a paciência.

Isso pode soar como um ponto positivo para alguns, mas certamente deve ser algum tipo de pesadelo momentâneo para esse autor dotado do talento para a clareza inteligente no filmar. Exigir paciência a partir de um exercício brechtiano sem frescor como esse é sensação frustrante na obra de alcance normalmente bem maior que é a obra de Eduardo Coutinho.

A aridez de Moscou para com as figuras que o habitam chama a atenção. No conjunto da obra, o filme é coerente com o anterior, Jogo de cena (2007), já uma reflexão sobre realismo e drama encenado, usando o teatro não apenas de maneira literal (palco, cortina, coxia), mas no seu sentido mais figurativo (a de uma mentira gerada, como o cinema também é).

Coutinho utiliza mais uma vez o procedimento de atores (Grupo Galpão, de Belo Horizonte) interpretando eles mesmos, e também personagens, nesse caso os de As três irmãs, de Anton Tchecov. O texto de 1901 é um dos mais fascinantes momentos do dramaturgo russo. A escolha de As três irmãs talvez seja sugestiva para conhecedores do trabalho de Coutinho. É sempre um enigma tentar enxergar o homem que faz os filmes, mas o texto de Tchecov deixa um sabor forte e duradouro de passagem do tempo, da satisfação inalcançável e uma ânsia de ser lembrado num futuro distante. Isso é abraçado com força em determinado momento na voz rouca de Coutinho sumindo em direção ao silêncio.

Já na casa dos 70, o cineasta inspirou em muitos a sensação de estar deixando seu réquiem quando do lançamento de O fim e o princípio, em 2005. A sensação volta a rondar Moscou. Naquele outro filme, ele conversava com idosos numa pequena comunidade do interior da Paraíba. Foi um filme de transição e de impasse, apontado por alguns como a repetição de um mesmo procedimento.

Em O fim e o princípio, Coutinho parecia flertar com a obra de Lars Von Trier em Dogville (2003). Um mapa emotivo da comunidade sertaneja seguia o mesmo tipo de design do mapa da comunidade no filme do cineasta dinamarquês, e agora é impossível não lembrar em Moscou da encenação de Von Trier via Brecht em Dogville e em Manderlay (2005).

A citação a Von Trier é útil ainda no sentido de trazer Coutinho para um trio de autores (Von Trier com Anticristo, Quentin Tarantino com Bastardos inglórios) do cinema que acabam de apresentar obras incomuns que podem ser vistas como fracassos especialíssimos que deixam cada um dos autores em encruzilhadas criativas que inspiram mais otimismo do que pessimismo.

No caso de Moscou, há um momento representativo na apresentação dos atores no início do filme. Temos a presença não só do diretor da peça, Enrique Dias, mas do próprio Coutinho, que parece estar substituindo Tchecov à mesa. Nesse encontro inicial, todos parecem estar indo a algum lugar. No final, suspeita-se que apenas Coutinho foi, saindo ileso de uma experiência que não deu certo, exceto pela pedra que disso resultou.

(© JC Online)


VÍDEO

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